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Thomas Mann, Evolução. Da «existência artística» ao humorismo - Coimbra, 1960, pp. 115 a 120

Humorismo e Ironia

(Colaboração numa discussão radiofónica - 1953)

 

Pois sim, meu caro Senhor Jancke, eu irei fazer os possíveis por o ajudar um pouco a esclarecer os conceitos que nomeou na introdução.

Percebi pelas suas palavras que quer saber como faço a distinção entre ironia e humorismo e que papéis estes dois elementos desempenham porventura na minha obra pessoal. Ora poder-se-ia muito bem ser-se tentado a considerar a ironia o princípio mais elevado que excede de longe o humorismo em dignidade e espírito. Penso num dito de Goethe, que sempre me fez profunda impressão. Ele diz a certa altura: «a ironia é o grãozinho de sal que vem dar sabor ao que está servido.» Umas palavras muito estranhas. Poder-se-ia concluir delas que é com o princípio da arte que Goethe faz quase concordar, coincidir a ironia. Poder-se-ia dizer – que daí se pode concluir que ele equipara a ironia àquela objectividade artística de que se ocupou toda a vida, que ele a equipara à distância que a arte toma do seu objecto, que a ironia é esta mesma distância, enquanto paira sobre as / 116 / coisas e de lá de cima lhes sorri, tanto embrulha e enreda nela o ouvinte ou o leitor. Poder-se-ia equiparar a ironia ao princípio artístico do apolíneo, tal é o termo estético; porque Apolo, «o que atinge de longe», é o deus do remoto, da distância, da objectividade, o deus da ironia – objectividade é ironia – e espírito artístico da épica; podê-lo-íamos tratar por espírito da ironia.

Ora permiti-me dizer o seguinte: terão notado já de palavras minhas ocasionais e privadas, que me sinto sempre um bocadinho aborrecido, quando a crítica fixa o meu trabalho pura e simplesmente no conceito de ironia e me considera inteiramente irónico, sem ao mesmo tempo ter em consideração o conceito de humorismo, que sempre no meu caso, segundo me parece, não se pode, nem deve, inteiramente suprimir.

Deixai-me exagerar as coisas: a ironia, segundo me parece, é o espírito da arte que, gostaria de dizer, arranca um sorriso intelectual ao leitor ou ao ouvinte, enquanto o humorismo produz o riso que brota do coração, – o que eu mais aprecio ainda como efeito da arte e que, como efeito da minha própria produção, com mais íntima satisfação aclamo do que ao sorriso erásmico provocado com a ironia. Devo dizer isto: – sabeis que tenho falado muito em público, durante a minha vida e foi sempre que o que eu estava a ler produzia na assistência uma risada cordial, que eu mais contente me achei e mais feliz me senti sobre o estrado. / 117 /

Não creio que na minha obra da juventude, os "Buddenbrooks", que de certo modo é fundamental para o que se seguiu, se encontre preponderantemente a ironia. Sempre é muito mais um livro de humorismo pessimista, desculpem a combinação talvez paradoxal, um livro cujas fontes e ingredientes não são apenas Schopenhauer e Wagner, o romance francês, russo e inglês, mas também e não em último lugar, o humorismo baixo-alemão, que se exprime na obra de Fritz Reuter (6), uma das primeiras impressões literárias que me coube em sorte e que se faz sentir fortemente neste livro.

 

Alegro-me sempre que se vê em mim menos um irónico do que um humorista e creio que não será difícil apontar o elemento humorístico na minha obra literária. Tome-se a personagem de Jacob da Tetralogia de José. Muito bem; trata-se de una personagem altamente patética e contudo está, indubitavelmente, para o sentimento de todos os leitores envolvida de um particular humorismo. Mesmo numa cena que em si e por si devia ser inteiramente trágica, como a da lamentação de Jacob pelo filho querido supostamente dilacerado, portanto na conversa com Eliezer, em que Jacob critica Deus e censura o Seu atraso moral, que fica atrás da evolução do coração humano, mesmo aí há humorismo, que não se pode confundir com ironia, é algo de essencialmente diverso. / 118 /

Ou tome-se outro exemplo, que agora mesmo me ocorre. É um dos novos capítulos das memórias do cavalheiro de indústria Felix Krull, uma cena em que um professor de ciências naturais ensina ao jovem pseudo-marquês que o belo e vistoso braço de mulher, pelo que ocasionalmente se é abraçado se se tem essa sorte, nada mais é que uma garra alada da ave primitiva e a barbatana peitoral do peixe, ao que o pretenso marquês responde: «Pois é, Senhor Professor, muito agradecido; para o futuro lembrar-me-ei sempre disso». Estão a ver, neste passo tem sempre havido gargalhadas cordiais na assistência; era um dos passos cujo efeito me causava a satisfação que um humorista sente, quando o seu público se ri.

Ora ainda estou a pensar em mais um exemplo. Pois bem, trata-se do romance do Dr. Fausto, sem dúvida nenhuma melancólico e gravíssimo. Acreditar-se-á que neste livro, também neste livro, se vieram meter furtivamente elementos humorísticos? Eles não vieram meter-se furtivamente, fui eu que os pus lá muito conscientemente, pois bem sabia quão necessário seria este elemento, precisamente neste livro. Estão a ver já a ideia de pôr a narrativa da vida do herói, o compositor Leverktün, na boca do bom humanista Zeitblom, ou de lho fazer sair pela pena, já esta coisa de exprimir o demoníaco pelo meio menos demoníaco possível, já esta ideia é uma invenção manifestamente humorística, com intuitos humorísticos que, pelo menos nas primeiras partes do / 119 / livro, amplamente se conservam, como creio. Dei-lhes assim de improviso, pois nós estamos a improvisar, três exemplos que talvez possam falar pela minha tendência humorística.

Ora eu já estou a falar há muito tempo, e quero ceder a palavra aos nossos amigos. Naturalmente estamo-nos a arriscar, estamos a conversar como se estivéssemos em casa e procuramos esquecer, e esquecemos realmente, que centenas e milhares de pessoas nos estão a escutar. Corremos tal risco, mas nós somos um trevo de quatro folhas que, segundo dizem, traz sorte e isto vai, portanto, acabar mal.

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Tem muita razão, faça o favor de desculpar que tão cedo o interrompa. Recordo-me precisamente agora de uma pequena história, a que sempre achei graça. É sobre o compositor Ditters von Dittersdort, que estava a conversar sobre Haydn com o Imperador José. O imperador perguntava a Ditters: «Ora diga lá: qual é a sua opinião sobre as composições de Haydn para música de câmara?» Ao que Ditters lhe responde: «Bem, majestade: que estão a causar sensação em todo o mundo e com toda a justiça.» O imperador pergunta-lhe depois: «Não acha que ele às vezes brinca de mais?» E torna Ditters: «Ele tem o dom de brincar, sem no entanto degradar a arte.» Ora eu só posso dizer: se por acaso brinquei com a língua, espero que nunca tenha degradado seriamente a arte, ao fazer isso. / 120 /

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Pois é, caro Doutor Weber, não é lá muito fácil, mas eu contava com tal intervenção e estive a pensar que passo poderia escolher, precisamente como exemplo de um brinco com a língua, o que a muitos não parecerá permitido e a muitos não pareceu permitido, mas a que achei graça quando o escrevi. Proponho-lhe ler um pequeno episódio – tal não demorará muito – do pequeno romano e "O Eleito" aquele episódio em que o Abade D. Gregório, do Convento das Necessidades (7), está na praia da ilhota normanda de S. Dunstan, à espera dos pescadores que ele tinha mandado e que, ao regressarem, encontram o infante real abandonado.

(Nachlese, pp. 166-169).

 
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NOTAS

(6) – O humorista épico meclemburguês Fritz Reuter (1810-1874), uma das maiores figuras da literatura regionalista alemã, inspirou em muito o português Aquilino Ribeiro.

(7)Not Gottes é a forma alemã do nome do convento, que no “Eleito" aparece também sob a forma latina Agonia Dei. O correspondente português mais próximo, aclarado o sentido de not por Agonia, é a tradução apresentada. Em apoio dela vem ainda Palácio das Necessidades, junto do qual existiu também um Convento das Necessidades, ambos erguidos por promessa de D. João V a Nossa Senhora das Necessidades. Uma alternativa aceitável para a tradução seria: Convento de Nosso Senhor dos Aflitos.

 

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