Ontem, 1980

Nos 75 anos da Fábrica Aleluia

 

Também havia barro em Aveiro. E também aqui, desde tempos remotos, os homens o tiraram dos seus poços, trabalharam-no, modificaram-no na roda pobre do oleiro. Fizeram-no peças artísticas; fizeram-no malga, cântaro, ou púcaro; fizeram-no pão-de-açúcar e tijolo; e fizeram-no cerâmica. E de tal forma o barro aqui veio sendo trabalhado que, na tradição cerâmica do País, já desde o século XVI, Aveiro vem marcando uma relativa importância.

1905 - Fábrica Aleluia, nos Santos Mártires.

Mas o oleiro veio a ser absorvido pela indústria que foi surgindo também no sector e também em Aveiro, e que tendia e tendeu para a louça, para o ramo industrial - para o “barro civilizado”. Só que aqui, em Aveiro, o artista nunca foi totalmente absorvido e das inúmeras fábricas, maiores ou menores, que vieram existindo e morrendo na cidade, nenhuma houve, nunca, em que da respectiva produção não saíssem, a par com as louças de carácter utilitário e os azulejos, as peças de faiança artística. De entre todas essas fábricas, quer pela sua maior produção qualitativa de que nos restam hoje, felizmente, bastantes exemplares quer pela sequente importância que vieram a ter na continuada indústria local, destacam-se especialmente as Fábricas do Cojo, no século XVIII, e a Fábrica da Fonte Nova, no século XIX.(1)

E foi já nos princípios do século XX que um grupo de cinco operários daquela última (a firma “Carlos Melo & Irmão”, que entrara em decadência e cuja falência se avizinhava), após conseguir capital emprestado, se constituiu em sociedade e fundou uma nova fábrica do género louças e azulejos. Estávamos no dia 14 de Janeiro de 1905, conforme rezam as notas do notário aveirense Manuel Cação Gaspar. E no dia 6 de Junho desse mesmo ano, num pequeno forno quadrado de chama direita, de cerca de 20 metros cúbicos, que fora construído num pequeno e modesto armazém sito no Largo dos Santos Mártires, - a fábrica foi “oficialmente” inaugurada - é que se desenfornou a primeira cozedura.

1955 - Fábrica Aleluia, no Cais da Fonte Nova - Vista aérea - 1955.

Dez meses depois, porém, nas notas do notário Dr. Joaquim Simões Peixinho, de 24 de Abril de 1906, regista-se a dissolução da sociedade; e dos seus componentes iniciais um único tomava a si todo o activo e passivo da mesma: o operário-artista-pintor João de Pinho das Neves Aleluia.

Completaram-se no ano findo de 1980 os 75 anos das Fábricas Aleluia. Passaram despercebidos.

“Cinquenta anos de luta, de canseiras, de esperança meio século consumindo vidas dedicadas - obrigam-nos a deter um momento para colhermos do Passado a lição proveitosa que só o passado pode dar” dizia-se na contracapa do programa geral das comemorações do cinquentenário das Fábricas Aleluia (2), que se efectuaram em 6, 7, 8 e 9 de Outubro de 1955. Tão perto e tão longe! Então todo o Aveiro, que as conhecia, viu-as, ouviu-as e sentiu-as ainda mais abertas, mais perto de si, mais orgulhosamente mas: é que, para além das retrospectivas e das exposições, foi mostrado a todos o trabalho do dia a dia e a produção de então, em que o artístico continuava a ter o seu insubstituível e importante lugar; e é que foram também as múltiplas realizações das secções culturais dos empregados da Fábrica Aleluia. Foi vida. E tudo se deteve naquela Aleluia do então presente ante os cinquenta anos passados de Aleluia. Mas, foi ontem.

Quem recordou agora, nos seus 75 anos de existência, as labutas de João Aleluia (e, justo também referi-lo, da sua maior auxiliar, sua mulher, D. Ana da Conceição Aleluia) e as dificuldades financeiras que suportou para erguer, manter e projectar a sua fábrica já que capital não o tinha e, por isso, sempre se teve que socorrer de empréstimos?

Já em 1911, depois de liquidado ao amigo e prestamista Domingos Leite, que, aliás, como amigo sempre o incentivou, os encargos com o empréstimo da fundação, ei-lo que, com novo empréstimo do mesmo amigo, compra a propriedade da Fonte Nova. É que a fábrica nos Santos Mártires já era acanhada. Mas na sua produção, à base da louça doméstica que se destinava principalmente à Beira Alta e dos azulejos, havia uma marcada faceta artística; e logo desde a primeira fornada nunca deixaram de existir as jarras, os painéis, os pratos decorativos o artista João Aleluia e os seus oleiros-operáriosartistas nunca deixaram descansar os pincéis.

A dívida foi paga em 6 anos. E a fábrica nos Santos Mártires, que dispunha já de força a vento um moinho construído por Manuel João Branco, da Quinta do Picado, referido em inventário em 1915 com o valor de 50$00 e que em 1916 produziu cerca de 6.000$00 com um quadro de pessoal de 19 pessoas cujos salários foram de 2.362$534, começou, pode dizer-se, a ser transferida em Janeiro de 1917 para a Rua da Fonte Nova. Com efeito, e com um novo empréstimo ainda do mesmo amigo, iniciou-se a construção da primeira oficina ampla. Casa de fornos e dois fomos quadrados - do mesmo sistema mas de 43 metros cúbicos cada um. Um moinho, sito na estrada da Gafanha, que funcionava com as correntes da Ria, foi adquirido e transferido para a Fonte Nova de 7 de Março a 29 de Abril de 1918. A primeira fornada das novas instalações saiu em 8 de Setembro de 1917; no entanto, e até esta data, a fábrica nos Santos Mártires esteve sempre em laboração, nunca tendo sido suspensa, portanto, a sua produção.

Estes, os alicerces que João Aleluia construiu. Mas não só. Porque os alicerces foram-no verdadeiramente a escola de operários-artistas que naturalmente criou e manteve sempre renovada, com a qualidade humana que lhe permitiu ver abrir outras fábricas similares à sua, que fechariam pouco tempo depois (Empresa de Louças e Azulejos, Ldª, Empresa Olaria Aveirense Ldª, para além da velha Fábrica da Fonte Nova, que se reanimou depois de uma modesta e difícil vida, mas que viria também a desaparecer).

E João Aleluia venceu. Pela qualidade da sua produção e pela sua produção artística.

A Aleluia evoluiu. Apetrechou-se. Engrandeceu. Continuou a impor-se pela qualidade. Com ela, e sempre, a produção artística: os painéis, as peças. Aleluia. Ontem, 1980, 75 anos.

Aleluia hoje? S.A.R.L.

JOÃO AFONSO

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NOTAS:

(1) - Da Fábrica da Fonte Nova são os azulejos que têm vindo a ser reproduzidos na contracapa deste Boletim, existentes na Estação dos Caminhos de Ferro de Aveiro, datando do primeiro quartel do nosso século, e que constituem um excelente documento do Património Aveirense dos princípios do século. - Nota da Redacção.

(2) - Fábrica Aleluia — 50 anos  —1905-1955. Programa das Comemorações do Cinquentenário. Nos dias 6, 7, 8 e 9 de Outubro de 1955. Deste programa são extraídas as duas gravuras que ilustram o presente artigo e cujas legendas são respeitadas.

Destacava-se do programa, entre outros: uma palestra subordinada ao tema “O Homem e o Barro”, palavras do Dr. ALBERTO SOUTO, Director do Museu Regional de Aveiro, Sócio da Associação dos Arqueólogos Portugueses e da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnografia ditas pelo Dr. David Cristo”; e exposições sobre louças, artes plásticas e fotografias (dia 6);

Sessão Comemorativa e Sarau (dia 7);

Abertura da Fábrica ao público; etc. Nota da Redacção.

 


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