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              Pobres moleiros, tristes, solitários, 
                           
              Quebra-se a roda, já não moem pão». 
                                         
              Adolfo Portela, Poema das Águas
              
               
              O concelho de Águeda
              abrange uma grande área repartida entre a serra e a planície. A
              parte montanhosa fica «toda ela ao nascente, para as bandas de
              Belazaima, Agadão, Castanheira, Préstimo, Macieira de Alcoba, e
              ainda Macinhata do Vouga, abrangendo tudo uma estreita faixa do
              concelho, de norte a sul. As restantes regiões são todas de
              configuração mais ou menos plana, com pequenos outeiros e cabeços,
              quer em cadeia, quer isolados, os quais se estendem na direcção
              nascente poente e acompanham os três principais rios do concelho
              — Vouga, Águeda e Cértima» (1).
               
              
                
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                   | 
                  
                     Exemplar de
                    uma atafona em Ois da Ribeira, em perfeito estado de
                    funcionamento.  | 
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              Três rios!...
              Mas outros há em rede por toda a parte do concelho, mais ou menos
              caudalosos, em cujas margens, e por benefícios das suas águas, o
              campo frutifica exuberantemente e o moinho, obra sublime de uma
              experiência popular de séculos, se ergue aqui e ali, a rodar
              noite e dia, transformando o milho, o trigo e outros cereais em
              alvo lençol de farinha que, mais tarde, no pequeno forno de cada
              lar, se tornará pão.
              
               
              Milho, trigo,
              centeio, eis a trindade que, desde sempre, constituiu a base
              alimentar, mais ou menos sólida, da boa gente do malhão. Para
              tanto, basta folhear as páginas amarelentas, com cheiro a pó e a
              bolor, e ameaçadas pela traça, de alguns documentos do Arquivo e
              Biblioteca Municipal de Águeda, para nos apercebermos disso.
              
               
              «De todo trigo
              çemteo çevada milho paymço avea ou de farinha de cada um delles...
              se pagara quando se tirar pera fora...» (2). Assim nos fala
              eloquentemente o foral de Ois, Espinhel e Fermentelos. O mesmo
              sucede com o de Segadães, de 20 de Março de 1516, onde, a dado
              passo, se afirma que os seus «doze cazaes e meyo» pagavam «deiradegas
              seis alqueires de trigo... e outros tanto de milho do monte»; os
              de Travassô «cada hum dos doze cazaes eiradegas seis alqueires
              de trigo, e outros seis de milho»; os «dous cazaes e meyo» de
              Eirol, «igualmente ametade deIles de quatro hum e outra ametade
              de cinco hum»; os «quatro cazaes» de Cabanões «pagam
              deiradega trez alqueires de trigo e outros tres de milho e de fogaça
              seis alqueires de trigo»; e, finalmente, «os quatro cazaes e
              quarto» de Oronhe «pagam por emprazamentos por prazos novos
              deiradega trigo trez alqueires, de milho outros trez e davea
              outros trez, de fogaças... de trigo cinco» (3). Na vila de Casal
              de Álvaro e seu termo, lavraram-se, em 1817, «de trigo cento e
              quinze alqueires», «de centeio... tresentos e vinte e oito
              alqueires», de «milho... mil novecentos e quarenta alqueires»
              de «cevada... vinte alqueires», de «trigo... sincoenta
              alqueires» (4). 
              
                
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                  Moinho de água de
                    Macieira de Alcoba. | 
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              Por seu lado, ao
              terceiro quesito que, pela Junta da Reforma dos Forais, foi
              expedido e remetido à Câmara de Assequins, esta, em sessão de 4
              de Março de 1826, respondeu que «o foral diz haverem na villa
              vinte cazaes e meyo, de que manda pagar cada hum pela vélha dés
              algres de trigo a saber quatro de eiradega quejando o
              lavrar o lavrador na Eira e seis de fogaça pelo Natal, e quatro
              de aveia, e quatro de milho tãobem de Eiradega» (5). E logo se
              acrescenta: «Em lugar dos des alqueires de trigo pela vélha, pagão-se
              seis e meio pela medida nova ora corrente. Em lugar de quatro de
              aveia e quatro de milho, pagão se dois e meio de cada espécie
              pela nova certo desde tempo immemorial porque já se acha
              mencionado no ultimo Tombo precedente». Nas Chãs partia-se «o pão
              e o milho de seis e sete». No Gomoal e Cortinhal partia-se [o pão]
              «e o milho de quinto». Na Giesteira os trez casais pagavam cada
              «hum alqueire de trigo». Na Maçoida havia um casal que pagava
              também «hum alqueire de trigo».
              
               
              No entanto, e
              apesar das muitas referências ao trigo, não se deve inferir daí
              que o concelho de Águeda era muito farto de cereais. Com efeito,
              depois de cuidadosamente analisadas todas as respostas dadas aos
              19 quesitos vindos da Junta da Reforma dos Forais depara-se-nos
              uma realidade bem diferente: uma situação verdadeiramente
              angustiante. Os trabalhadores agrícolas que não podiam pagar
              aquele cereal pela sua manifesta carência adquiriam-no fora ou,
              então, pagavam, em dinheiro, o equivalente ao seu valor. Isto
              mesmo se pode constatar na leitura da resposta ao quesito n.º
              17:
              
               
              «O trigo sabido
              que se paga não he ordinariamente produção da terra obrigada,
              porque / este País he pouco predomínio de trigo.
              
               
              Os lavradores se
              vem na necessidade / de pagar os foros ao Senhorio por alto preço».
              
               
              E logo se
              acrescenta que «a sua redução a milho serviria de alivio aos Póvos».
              
               
              Contra tal
              exploração se levantaram os lavradores através dos Oficiais da
              Câmara. Da resposta ao quesito n.º 9 (Qual é a obrigação
              proveniente de Forais que mais vexa os Foreiros?) saiu a seguinte
              informação:
              
               
              «Primeira: As
              excessivas Reções principalmente / de quatro sendo pagas sem
              deduzir a semente / e mais despezas de cultura desanimando-se os /
              lavradores com receio de fazerem as despezas / que são certas,
              sendo incerto o seu lucro. / E por isso os lavradores deste
              concelho e em seu / nome os officiais da Camera humildemente /
              suplicão a Vossa Magestade Imperial e Real a / Graça de ordenar
              que as Rações sejão pagas de / duzidas as despezas da cultura
              ou que para / a sua compençassão se deixe metade dos frutos /
              aos lavradores izenta da ração.
              
               
              «Segunda: A
              obrigação de levar ao Seleiro do Senhorio he outro vexame para
              os Povos. Pois / ainda que esta condução não paressa muinto /
              trabalhoza, Rezultão della graves inconvenientes, porque os
              lavradores ordinariamente se / esquessem de o fazer e são depois
              violentados / a pagar os frutos a dinheiro por preços excessivos.
              O senhorio mesmo ou seu / Rendeiro he nisto prejudicado pela falência
              / de muintos devedores pobres; quanto alias / se tivesse cobrado
              as Rações logo depois da / colheita por caza dos lavradores,
              como se / pratica com o Dízimos não teria sofrido tais falencias.
              
               
              Ao menos para
              evitar / o Excesso do preço dos frutos exigido pelos Ren / deiros
              seria justo declarar-se que estes somen / te os podessem cobrar
              pela tarifa da Camera.
              
               
              «Terceira — A
              obrigação da cobrança dos foros por ca / beceis (6) trienais
              que cobrando os dos Lavra / dores os serem por inteiro ao saleiro
              do senho / rio, he outro grande vexame que tem o / cazionado a Ruína
              de varios Lavradores /
              
               
              Tal obrigação
              não he imposta na / Letra do Foral. / O Senhorio he que tem
              imposto no seu Tombo. / Mas o Senhorio ou seu Rendeiro po / dia
              com facilidade cobrar os foros juntamente com as Rações da mão
              de cada la / vrador» (7).
              
               
              Por toda a
              parte, ao longo dos rios, ribeiros, corgas e regatos se foram
              levantando moinhos de água, de um, dois ou mais rodízios, sem
              esquecer as atafonas, também chamadas moinhos de sangue, ou os
              moinhos de vento, ainda que muito mais raros. Destes, pouco ou
              nada resta. Apenas os nomes que deram a certos locais continuam a
              recordar a sua presença em tempos mais ou menos recuados.
              
               
              Raríssimas são
              também as atafonas, moinhos domésticos puxados por muares, bois
              ou cegos (8) Destas, descobrimos um belíssimo exemplar em Ois da
              Ribeira, apta, se porventura fosse caso disso, a recomeçar
              eficazmente o seu trabalho de outrora.
              
               
              Qual a diferença
              que vai da atafona ao moinho ou azenha?
              
               
              Di-no-lo o Dr.
              José Leite de Vasconcelos pela boca de D. João de Portugal, de
              Campo Maior: «...a atafona é um engenho muito simples, montado
              dentro dum casebre e movido por tracção animal, como se usa para
              tirar as águas dos poços e nas noras das hortas. (9).
              
               
              Este primitivo
              engenho de fazer farinha já, em 1919, estava em vias de extinção
              e como ele a arte de atafoneiro, que teve um certo prestígio nos
              primórdios da nossa nacionalidade, prolongando-se até pelos
              tempos fora, como aliás, o atesta a existência, no Arquivo
              Municipal de Lisboa, do Regimento dos Atafoneiros, inserido na
              colecção de regimentos de Duarte Nunes de Leão, de 1572 (10).
              No princípio do século XVI só na cidade de Lisboa havia 264
              atafonas as quais, juntamente com os 300 moinhos do seu termo, ao
              avaliar pela sua maquia, moíam em cada dia quase quatrocentos
              moios de trigo.
              
               
              No entanto,
              apesar de numerosos e de serem examinados, os atafoneiros não
              formavam corporação e havia até penas muito pesadas contra as
              suas infracções. Na verdade, «por uma provisão de 10 de Maio
              de 1542, D. João III autorizou que a Câmara de Lisboa pudesse
              aplicar as seguintes penalidades ao atafoneiro que defraudasse os
              que lhe entregavam trigo para moer: quando o atafoneiro desse
              menos farinha do que a devida, seria exposto no pelourinho à
              vergonha, onde estaria duas horas em exposição; e pela reincidência
              se lhe aplicariam 70 açoites, e por este facto não podia ser
              mais atafoneiro» (11).
              
               
              O moinho de água
              é bem mais complexo. A sua origem perde-se no tempo, não
              havendo, quanto a este problema, grande unanimidade de opiniões.
              
               
              Para Jean Gimpel,
              os primeiros forem construídos provavelmente por volta do final
              do século II a.C., acrescentando que a mais antiga referência se
              encontra na obra de Estrabão, onde se assinala a existência de
              um exemplar em Cabira, no palácio de Mitrídates, rei do Ponto. Aí
              o encontraram os exércitos vitoriosos de Pompeu, no ano 63 a.C. Só
              entrou em Roma no fim do século I antes da nossa era, sendo muito
              melhorado pelos engenheiros romanos, que conseguiram sextuplicar o
              seu rendimento (12). Quem primeiro descreveu o seu mecanismo foi o
              engenheiro romano Vitrúvio, no seu Tratado de Arquitectura (Livro
              X).
              
               
              Quando teriam
              chegado à Península Ibérica?
              
               
              Alberto Sampaio
              afirma que «dada a completa ausência deles, é de supor que os
              cereais continuaram a ser moídos nas mós antigas, enquanto não
              foram importados os novos moinhos de água, que não tardaram
              muito» vulgarizando-se «rapidamente, em consequência da abundância
              de correntes aproveitáveis para este fim. (13). A sua presença
              durante a monarquia visigótica é-nos atestada pelo Código que
              legisla a respeito deles (14).
              
               
              As azenhas,
              segundo Viterbo e outros autores, só deveriam ter aparecido por
              volta do século X, dada a sua proveniência árabe. O mesmo autor
              afirma que no «Livro X dos Testamentos de Lorvão, n.º 67,
              68 e 72 se faz menção de moinhos d’água na ribeira de Forma,
              junto de Coimbra deixados ou comprados pelo mosteiro no tempo do
              abbade Primo» (15).
              
               
              Não temos
              conhecimento, se bem que se indique no mapa militar que consultámos,
              de qualquer azenha em actividade, facto que já não acontece com
              os moinhos de água. Por toda a parte ainda se encontram bastantes
              em plena laboração, podendo citar-se, entre outros, os do
              Garrido, Sabugueiro, Pisão e, ainda há pouco, os do Pousadoiro,
              em Aguada de Cima, os de Belazaima, Castanheira, Macieira de
              Alcoba, Aguada, Espinhal, etc. Aqui encontrámos um pertencente ao
              senhor Joaquim, operário metalúrgico, que nos informou que as mós
              pertenceram a uma atafona de Perrães. É um moinho quase
              totalmente restaurado por ele, onde se encontram ainda todas as
              dependências dos seus últimos proprietários: uma pequena divisão,
              já em ruínas, para habitação, um forno ainda a ser utilizado
              pelo actual proprietário e em bom estado de conservação.
              Segundo o senhor Joaquim, este moinho deve ser muito antigo,
              porque durante a restauração se encontrou uma data do início do
              século XIX.
              
               
              Muitos já
              desapareceram, quer por morte dos que os utilizavam, quer ainda vítimas
              da concorrência dos progressos da técnica moderna (16), e com
              eles, para sempre, se entretanto não se olhar bem a sério pela
              protecção desta singular arquitectura de produção popular, a
              figura bucólica do moleiro ou da moleirinha, outrora inspiradora
              de versos admiráveis como o são, por exemplo, estes de Guerra
              Junqueira:
              
               
                                   
              «Pela estrada plana, toc-toc-toc, 
                                   
              Guia um jumentinho, a velhinha errante. (17).
              
               
              Que as pessoas
              responsáveis pelo pelouro autárquico não se esqueçam desta
              riqueza cultural, que dificilmente outros concelhos ainda terão
              em tão grande quantidade e não contribuam para que os versos de
              A. Portela constituam o quadro final de todo este património
              cultural com tão larga expressão na linguagem popular através
              de expressões, tais como, moinho de palavras, lutar contra
              moinhos de vento, levar a água ao seu moinho, águas passadas não
              movem moinhos, etc. 
              AMÉRICO BARATA
              FIGUEIRA
              
               
              _____________________________ 
              
               
              BIBLIOGRAFIA
              E NOTAS
              
               
              (1)
              — Adolfo Portela, Águeda, 1964, p.
              5.
              
               
              (2)
              — Foral de Ois, Espinhal e Fermentelos, in Arquivo do Distrito
              de Aveiro, Vol. IX, 1943, pp. 34-43.
              
               
              (3)
              — Certidão do Foral da ViIIa de Segadães, in Actas das Sessões
              de Arrancada, Concelho do Vouga, flls. 1-12 v.
              
               
              (4)
              — Autto de Camera para declaração dos frutos que se lavrarão
              na VilIa de Cazal d’Alvaro e seu termo..., de 14 de Março de
              1817, fl. 44.
              
               
              (5)
              — Auto de Camera e Resposta q. esta deu aos Quezitos sobre o
              Foral de Assequins, fl. 26v, iri Actas da Camara de Assequins,
              (4.3.1826).
              
               
              (6)
              — Cabecel ou casal encabeçado, segundo Viterbo, era o nome que
              se dava ao «casal ou prazo fatiosim que, dividido por muitos ou
              alguns colonos, um só, a que chamam cabeceira, cabeça ou cabecel
              é obrigado in solidum a responder pela pensão e foros, cobrando
              os dos mais pessoeiros e, entregando-os, ele só ao direito
              senhorio».
              
               
              (7)
              — Auto de Camera e Resposta q. esta deu aos Quezitos sobre o
              Foral de Assequins, fIs. 29-30.
              
               
              (8)
              — Amador Arrais, IV, cap. 22, p. 319: «...há entre atafonas de
              mãos em que os cegos ganham de comer»; Carta de D. Henrique a
              favor de Tristão Teixeira, in Magalhães Godinho, Documentos
              sobre a expansão portuguesa: «E outrossim me praz que o tido
              Tristão haja para si todos os moinhos que houverem na parte desta
              ilha [Madeira] de que assim tenho cargo que ninguém faça aí
              moinhos senão ele ou quem a ele aprouver e nisto se não entenda
              mó de braço que a faça quem quiser não moendo a outrem e não
              faça atafona»; Banha de Andrade, Atafona, in Enciclopédia
              Luso-Brasileira de Cultura, VoI. II, col. 1698; Raul Brandão,
              Ilhas Desconhecidas, p. 44: «Olho para... os bois que passam com
              solenidade e que vão moer pão nas atafonas»; etc.
              
               
              (9)
              — José Leite de Vasconcelos, Etnografia Portuguesa, Vol. VI, p.
              8.
              
               
              (10)
              — Banha de Andrade, Atafona, in Enc. Luso-Brasileira de Cultura,
              VoI. II, col. 1699.
              
               
              (11)
              — ATAFONEIRO, in Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira,
              Vol. III, p. 612.
              
               
              (12)
              — Jean Gimpel, A Revolução Industrial na Idade Média. Publicações
              Europa-América, Lisboa, 1976, p. 13; Jean Cousin, A República
              Romana, in Roma e Seu Destino, Edições Cosmos, Lisboa, 1964, p.
              81.
              
               
              (13)
              — Alberto Sampaio, Estudos Históricos e Económicos. «As
              VilIas do Norte de Portugal., (voI. 1.º), Lisboa, 1979, pp.
              85-88.
              
               
              (14)
              — H. da Gama Barros, História da Administração em Portugal
              nos Séculos XII a XV. Lisboa, 1950, T. IX, p. 30.
              
               
              (15)
              — Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, Elucidário, VoI. I, p.
              697.
              
               
              (16)
              — Segundo informações do senhor Joaquim lá se encontram em
              Espinhel alguns pequenos moinhos eléctricos em casas
              particulares. 
              
               
              (17)
              — Guerra Junqueiro, A Moleirinha, in Os Simples.
              
              
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