|
Moliceiro:
uma interpenetração barco-ambiente que vem da
fidelidade da forma à função a que a experiência o
destinou - navegar num ambiente de horizontes brumosos
ou soalheiros, de azul, de ria...
|
|
Dois
elementos o particularizam: a decoração pintada e a
extrema elegância e requinte formal das suas
«bicas».
|
|
Painel da
ré com tema religioso.
|
|
Painel da
proa com tema erótico.
|
|
Painel da
ré com tema do quotidiano.
|
|
Painel da
proa com tema religioso.
|
|
Painel da
ré com tema do quotidiano.
|
|
Painel da
proa com tema do trabalho.
|
|
Painel
pintado na face anterior do castelo da proa.
|
|
Painel da
proa com tema do quotidiano.
|
|
Mário Vaz
dos Santos (gavete), um dos últimos pintores de
barcos da Ria de Aveiro.
|
|
Painel da
ré com elementos pictorais não dependentes do tema
da legenda e que abandonam as estruturas tradicionais
da sua concepção.
|
|
Pintura de
elementos da face anterior do castelo da popa de um
mercantel.
|
|
Painel da
ré com pintura de tema histórico.
|
|
Pinturas
dos golfiões (homem e mulher) e da base da bica.
|
|
Painel da
proa com tema de trabalho.
|
|
Pormenor de
uma pintura na porta do castelo da proa.
|
|
Painel da
ré com pintura de significado patriótico.
|
|
Painel da
proa com tema de trabalho.
|
|
Elemento
floral na base interior da bica.
|
|
Marca
simbólica pintada no leme.
|
|
Painel da
ré com elementos pictóricos que abandonam as
estruturas tradicionais da sua concepção.
|
|
«...A
ria é um enorme pólipo com os braços estendidos pelo
interior desde Ovar até Mira. Todas as águas do Vouga, do
Águeda e dos veios que nestes correm para o mar encharcam
nas terras baixas, retidas pela duna de quarenta e tantos
quilómetros de comprido, formando uma série de poças, de
canais, de lagos e uma vasta bacia salgada. De um lado o mar
bate e levanta constantemente a duna, impedindo a água de
escoar; do outro é o homem que junta a terra movediça e a
regulariza. (...) Exploram a ria os mercantéis, que fazem o
tráfego da sardinha, os barqueiros que fazem os fretes marítimos,
os rendeiros das praias que lhe aproveitam os juncais, os
marnotos, que se empregam no fabrico do sal, os moliceiros,
que apanham as algas...» Raul Brandão, em «Os Pescadores»
1
— Moliceiro designa homens e barcos. Evoca a ria e a sua
paisagem. Os barcos ligam-se intimamente a elas e fazem
parte dos múltiplos factores que as caracterizam, por
existir uma concordância exacta, uma adequação perfeita
do seu desenho com as imposições do habitat onde funciona
e do envolvimento físico a que está atido: fundos de água
escassos, margens baixas, pouca ondulação, alternância de
vento com períodos de total calmaria, etc. Há uma
interpenetração barco-ambiente, que vem da fidelidade da
forma à função a que a experiência o destinou: navegar
num ambiente de horizontes brumosos ou soalheiros, de azul,
de ria, de canais, de lagoas, de esteiros com marinhas de
sal, juncos, nesgas de pinheirais e outros barcos, como
fundo.
Nesta
zona, as actividades produtivas tradicionais são:
agricultura, extracção do sal (em declínio), pesca,
apanha do moliço (em rápido desaparecimento). Os cursos de
água são fontes de sobrevivência e vias de comunicação
entre pontos, às vezes afastados dezenas de quilómetros.
Tal facto deu origem à concepção de embarcações
adequadas ao meio, por serem soluções funcionais para
necessidades específicas: transporte do sal, apanha de moliços,
captura e transporte de peixe e transportes fluviais.
Considerando
a sua ocupação, há três tipos clássicos de embarcações:
moliceiros, mercantéis e bateiras. Pelo carácter do
desenho, as dimensões e as afinidades de muitos
componentes, os dois primeiros são os mais significativos
da região. Os mercantéis são barcos pesados, destinados
essencialmente a cargas, em especial ao transporte do sal,
tomando nesse caso a designação de barco saleiro. Possuem
muitos traços comuns com os moliceiros mas distinguem-se
destes pela maior riqueza decorativa da pintura exterior, de
extrema simplicidade, e por um desenho de proa mais de
acordo com os padrões habituais. As bateiras são pequenos
barcos em geral destinados à pesca, formal e funcionalmente
diferentes dos anteriores.
2
— O moliceiro destinou-se à colheita e transporte do moliço
(termo que abrange genericamente as várias espécies de
vegetação da ria), produto de alto valor económico como
fertilizante das terras. Do desenvolvimento da agricultura
da zona, numa época de que se perdeu a notícia, surgiu uma
profissão — o moliceiro —, que apanha o moliço e
conduz o barco e criou-se a necessidade de um instrumento de
trabalho, o barco moliceiro, «uma alfaia agrícola» como
lhe chamou Luís de Magalhães. O moliceiro é um barco de
fundo chato, apropriado à navegação em águas baixas.
dotado de grande estabilidade. Quando carregado, (pode
atingir as cinco toneladas de carga) os seus bordos rasam a
superfície da água e em certas ocasiões ficam
praticamente submersos. Dois elementos essenciais o
particularizam: a decoração pintada de algumas superfícies
exteriores e a extrema elegância e requinte formal das
extremidades pontiagudas da proa e da ré, as bicas (peças
recurvadas que constituem os pontos mais elevados do barco)
que dão uma certa identidade (não diremos originalidade
por haver tipos de barcos noutros países com elementos
semelhantes) ao seu perfil. O comprimento total medido entre
as bicas é normalmente de 15,7 metros e a largura oscila
pelos 2,6 metros, dimensões que dão bem a ideia do seu
desenho esguio. Também se destaca o enorme leme,
justificado pelas necessidades da manobra.
Era
construído em estaleiros de povoações normalmente um
tanto afastadas da ria; os centros mais referenciados eram:
Murtosa, Vagueira e Salreu. O seu número decaiu
radicalmente nos últimos anos e já quase se não constróem.
Em Pardilhó há ainda dois construtores em laboração:
Mestre Henrique Ferreira da Costa e Mestre Agostinho
Tavares. Os moliceiros actualmente construídos são um
pouco mais curtos (12 metros), mantendo a mesma largura
aproximadamente. Alguns barcos destinam-se quase em
exclusivo ao transporte de junco. A frequência de
encomendas de moliceiros é pequena. A maior actividade dos
estaleiros reside na construção de bateiras para pesca na
ria e de arrastões e bateiras para pesca no mar. Estes
construtores trabalham na arte com entusiasmo e esperam,
apesar de tudo, vê-la continuada nos filhos ou moços
ajudantes que ali trabalham.
3
— Como referimos, um dos motivos que caracteriza este
barco e o torna importante para o estudo da pintura popular
em Portugal é a riqueza pictórica de alguns dos seus espaços.
Várias superfícies são normalmente pintadas com painéis
decorativos, com destaque para as zonas da proa e ré, onde
possui 4 painéis pintados exteriormente, dois de cada lado.
Há também pinturas interessantes, embora mais decorativas
e mais simples do que as exteriores, aplicadas noutros
locais, como a porta e a vedação anterior do castelo da
proa (espaço entre os dois lados internos da proa,
totalmente fechado por cima e pela frente, que serve para
abrigo dos tripulantes que ali dormem, cozinham e guardam
alimentos e apetrechos). Encontramos pinturas, geralmente um
homem e uma mulher, nos golfiões ou mãozinhas, como
popularmente são conhecidas as duas pequenas peças de
madeira colocadas sobre a cobertura do castelo da proa, que
servem para prender os cabos de amarração e colocar as
varas e os ancinhos (instrumentos de recolha do moliço).
Existe uma pintura, simétrica e quase sempre flora!, na
base interior da bica. O leme apresenta um elemento simbólico
significativo da marca do construtor: Mestre Henrique usa o
«sino saimão», pintado a verde e vermelho porque são as
cores da bandeira nacional; Mestre Agostinho usa um símbolo
circular dividido em quatro partes em que o branco e o verde
alternam; o contorno é vermelho. Encontramos ainda frisos
decorativos valorizando algumas zonas do espaço interior da
ré.
4
— A maior parte dos estudos divide a superfície pintada
dos painéis em: a) motivo principal; b) friso; c) espaço
da legenda (descrição do tema que presidiu à concepção
da pintura, escrita na parte inferior do motivo principal).
Este é o elemento privilegiado, pois nele os artistas
exprimem um reportório de imagens e acontecimentos de que,
na sua maioria, já não existe documentação. Conforme a
personalidade, os conhecimentos, o talento e os interesses
do pintor, os motivos adquirem significados diversos, que
adiante analisaremos, e são «emoldurados» por um friso
decorativo, cujos elementos se distribuem através de
conjuntos ornamentais geométricos (composições ondulantes
constituídas por combinações de semicírculos) ou
vegetalistas (flores e folhas). Estas «molduras» dos painéis
surgem, contrariam ente aos motivos principais, repetidas em
vários barcos, assegurando uma persistência que poderemos
considerar «estilo» ornamental. Quanto à técnica das
pinturas, há indicações de que tradicionalmente certas
características cromáticas lhes advinham do uso de tintas
obtidas «artesanalmente» no local, a partir de pigmentos
com cores escolhidas pelos artistas (técnica idêntica à
das pinturas dos jugos da região). Este processo assegurava
a obtenção de padrões coloridos não convencionais.
Actualmente, as pinturas são realizadas com tintas
industriais.
5
— Os motivos dos painéis são muito diversos. Poderemos
enquadrá-los em grandes áreas temáticas que, de acordo
com um levantamento que realizámos, distribuímos assim,
citando legendas que encontrámos:
a)
Temas religiosos («Santa Maria dos Moliceiros», «Assim se
forma um cristão», «S. Jorge lutando contra o dragão»);
b)
Temas históricos — designação tradicional — («Recordamos
o descobridor antigo português Pedro Alvares Cabra!»), a
que acrescentaremos um novo género, afim daqueles, que
designamos por pintura de significado patriótico («Sempre
defendi a Pátria», «Portugal vai indo bem», «Ainda
pobrezinho, mas glorioso na paz»);
c)
Temas de trabalho, os mais numerosos («Com o meu pregão me
faz lembrar a tradição», «A rainha das barinas» (sic),
«Eu pobre pastor da Ria de Aveiro», «Acabou a nossa faina
mulher», «Ai quem me dera ser nova para ajudar-te», «Vamos
mulher tratar da vida», «Ainda sou moliceiro de fama», «Sou
um grande marnoto da Ria de Aveiro», «Vai pastar para dar
mais leite»);
d)
Temas do quotidiano («Assim se passa o tempo», «Corro com
fraqueza», «Não me fujas em maré de festa», «Tu e eu
somos iguais», «Tem calma amigo», «Porque nascemos anões»,
«Ladra mas não mordas», «Vira Maria que eu toco sempre»,
«Os emigrantes em férias»;
e)
Temas eróticos — erotismo assente em regra num trocadilho
da legenda da pintura, que altera o sentido desta — («Ver
não mexer», «Os espreitas do estio», «Dar não dou só
vendo», «Aqui não tocas tu», «O meu mato não se corta»,
«Se eu cair serei peixe»);
f)
Finalmente, surgiram nos últimos tempos elementos picturais
que não se enquadram em qualquer designação anterior («No
silêncio do deserto», «A rainha das Flores», «Beira-Mar
és a minha paixão»), nem são dependentes de um tema, não
possuindo legenda e atingindo, por vezes, elevados graus de
abstracção em face da realidade.
6
— Que mais caracteriza esta manifestação maior da
pintura popular? Os estudos sobre a sua matéria e a prática
do levantamento pouco revelam sobre os artistas. O que
sabemos é que as pinturas teriam sido feitas pelos
construtores, segundo a sua imaginação. Quando os barcos
com o andar do tempo vão perdendo as pinturas, são então
os donos ou «habilidosos», que se dedicam nas horas vagas
ao conserto de embarcações, que as avivam por cima do traço
original. É conhecido na região um pintor, Jacinto Vieira
da Silva, natural da Torreira, que refaz totalmente as
pinturas, quer de moliceiros quer de outros barcos, não se
limitando a copiar as originais. Mais raramente, levam-nos
ao estaleiro, para ser o próprio mestre a retocar a pintura
ou fazê-la de novo. É nítida a constatação de expressões
bem definidas, quase estilos pessoais que, em muitos barcos,
assinalam a marca estética identificadora de alguns
artistas. Em alguns (os mais antigos) é evidente um domínio
técnico dos materiais utilizados, apoiado num conhecimento
exacto das formas e da sua integração em determinados espaços
e mesmo um apurado sentido do desenho e da composição. Sem
falarmos em influência da pintura erudita que não é
proeminente, existe uma mestria apurada em certas realizações.
Noutros casos, há uma criação ingénua cheia de
simplicidade, por vezes extremamente poética, onde a ausência
de conhecimentos formais é amplamente suplantada pela força
emocional e a profunda sinceridade que retrata o dia a dia
filtrado por uma observação atenta e amável das coisas
concretas, donde se desprende um encantamento, uma clareza,
uma alegria que transforma as pinturas em instantâneos
apaixonados de um quotidiano sensível, que comprova a ideia
dos pintores serem gente com ria, campo, paisagens e animais
bem perto de si.
7
— Nos últimos tempos, acompanhando a progressiva extinção
do barco moliceiro, nota-se, como se apontou, o afastamento
das pinturas em relação aos padrões temáticos habituais
e até o abandono das estruturas tradicionais da sua concepção.
A queda da utilização do barco, provocada pelas alterações
económicas da zona, conduziu ao quase desaparecimento dos
seus artistas pintores. Mas, nesta derradeira fase, os últimos
representantes de uma tradição que parece morrer
acrescentaram-lhe, imprevistamente, novas visões, novos géneros,
novos motivos. É natural. As mudanças radicais que
acontecem na «consciência estética» dos homens,
motivadas pelas transformações dos domínios económico e
social da vida; o aumento das imagens recebidas através dos
mass-media, a influência da emigração, as alterações
do meio ambiente provocadas pela industrialização e pela
urbanização, o declínio da agricultura, o desaparecimento
de certos tipos de produção ou a substituição de métodos
de trabalho, teriam que influenciar a aparição de novos géneros
de pintura. As suas características não poderão ser
subestimadas, em função da qualidade e dos valores «mais
autenticamente tradicionais. Muitos traços particulares e
originais têm vindo a ser incorporados. Algumas pinturas
estão a ser executadas por jovens ou pelos próprios donos
dos barcos, retintamente amadores, que trouxeram elementos
ainda mais espontâneos do que os dos artistas seus
antecessores (não falando em algumas cópias que, no
entanto, por serem raras não têm qualquer relevância) o
que, se diminuiu a qualidade dos padrões estéticos
tradicionais, acrescentou em alguns casos uma força emotiva
e uma autenticidade opostas a um relativo academismo, que
também chegava a acontecer. Estes novos géneros são,
finalmente, resultantes de uma interpretação diferente dos
factos da vida e das mudanças que alteraram por completo
certos hábitos e criaram novas formas para os exprimir.
Alguns são sem dúvida mais pobres na técnica e nos conteúdos,
quase o fim de um percurso; mas não deixam de trazer uma
contribuição renovadora à pintura de moliceiros, antes do
seu desaparecimento. Da publicação MoIiceiros, de
Diamantino Dias, editada pela Comissão Municipal de Turismo
de Aveiro, trabalho que, pelo menos, assegura uma «memória»
cultural sobre o assunto, extraímos a seguinte estatística
da evolução dos barcos existentes: 1935 — 1008; 1949 —
794; 1959 — 542; 1969 — 164. Informaram-nos recentemente
que, em 1979, a existência é de 23 barcos registados.
«E
nessa vastidão de águas tranquilas, nesse gigantesco pólipo
fluvial que por todos os lados estende os seus fluidos tentáculos,
entre a rede confusa dos esteiros e canais, bordados de
tamargueiras e de caniços, velas sem conta, velas às
dezenas, às centenas, vão, vêm bolinando em todos os
sentidos, e pondo no verde das terras ou no azul das águas
a doçura do seu deslizar silencioso e a graça da sua
silhueta branca». Luís de Magalhães em «A arte e a
Natureza em Portugal».
HÉLDER
PACHECO
|