Capela de São Bartolomeu: O diabo à solta e os perdidos e achados

Prof. M. J. Carvalho - 10º grupo A

A pequena e singela capela de São Bartolomeu é um diminuto templo, de planta circular, sito na rua do mesmo nome que ficava, antigamente, no território da chamada Vila Nova, anexa à herdade da Granja de São Miguel (1). O minguado igrejório foi mandado edificar por André Dias Caldeira (2) e ficou concluído em 1568, conforme inscrição que sobrepuja a porta de entrada.

 

 

 

 

 

«O exterior diz já a composição arquitectónica: corpo pequeno, baixo e cilíndrico, coberto de cúpula hemisférica. Porta rectangular, de friso e cornija. Levanta-se ao lado da cobertura modesta sineirita, sobre pequeno maciço. Vêem-se neste mesmo, cobertos de cal, uns quatro ou cinco azulejos, sevilhanos, de princípio do século XVI.» (3)
O interior da capelinha é totalmente forrado a azulejos polícromos, lisbonenses, do século XVII. O retábulo é de oficina coimbrã, da época da fundação. (4)
Nos três nichos do retábulo abrigam-se outras tantas esculturas de pedra, representando três figuras muito caras ao imaginário litorâneo: Nossa Senhora da Boa Viagem, São João Baptista e São Bartolomeu. (5)
Nossa Senhora da Boa Viagem é a verdadeira mãe protectora de mareantes e pescadores, a quem se recorre nos momentos de aperto. A importância de São João pode avaliar-se, no litoral oeste de Portugal, pela grande quantidade de capelas e altares a ele dedicados. É o santo do solstício de Verão que, segundo Moisés Espírito Santo, cristianizou o deus solar fenício ou babilónico: «São João encontra-se associado a uma divindade popular fenícia que é o Sol, ao messianismo e místicas orientais.» (6)
A imagem de São Bartolomeu, o santo marinheiro, é das mais explícitas no que às influências orientais respeita. Olhando a imagem, podemos afirmar, mais uma vez com o referido antropólogo, que «o São Bartolomeu português é o Poséidon grego reinterpretado pelo povo; o Poséidon popular dos antigos Pelasgos e dos Fenícios, o senhor dos mares, pai dos ricos e antepassado de uma numerosa posteridade de marinheiros. [...] Os seus distintivos são um tridente ou uma espada na mão e, aos pés, um mostrengo que tanto pode ser um cão (misto de cão e de peixe), um golfinho a que chamam “búgio” ou um diabrete. Por vezes o mostrengo encontra-se atado às mãos do santo.
Encontramos imagens de São Bartolomeu em tudo idênticas às de Poséidon. As relações que o santo mantém com o mostrengo (que para alguns é o diabo) não são de conflito, mas de cooperação. O mostrengo é o lacaio ou mensageiro do santo.» (7) Santo e diabo de braço dado, sendo difícil perceber onde começa um e acaba o outro. Como diz o povo, «em dia de São Bartolomeu anda o diabo à solta». Haja respeitinho!...
Mas passemos a palavra ao saudoso João Sarabando, sempre atento às tradições populares aveirenses, que, depois de nos apresentar o São Bartolomeu de Sarrazola (Cacia), afirma:
«Por seu turno, em Aveiro, quando alguém se acha roubado ou perdeu um objecto e não lho entregam, vai igualmente bater à porta da capelinha de São Bartolomeu, na Beira-Mar, e diz três vezes:

(1) Cf. planta do século XVIII, intitulada «Averiensis Civit: Planipheri cum ipsius suburbis», que existe no Museu de Aveiro. Esta planta está reproduzida no Arquivo do Distrito de Aveiro, vol. 40, n.º 160 (1974), p. 251. (2) Poderá ser um André Dias que é identificado como arcipreste, num assento de baptismo da paróquia de S. Miguel. A.D.A. Baptismos de S. Miguel, Livro 1, Aveiro, 2 de Setembro, 1571. (3) GONÇALVES, A. Nogueira – Inventário Artístico de Portugal: Distrito de Aveiro. Zona sul. Lisboa: Academia Nacional de Belas Artes, 1959, p. 142. (4) Ibidem (5) Veja-se a interpretação, discutível ou polémica, mas nem por isso menos rica e propiciadora de diferentes abordagens, in ESPÍRITO SANTO, Moisés – Origens orientais da religião popular portuguesa, seguido de ensaio sobre toponímia antiga. Lisboa: Assírio & Alvim, 1988, passim. (6) Idem, 1988: 173. (7) Idem, 1988: 169-170. (8) [SARABANDO], J[oão] Vieira – Concelho de Aveiro: nótulas de etnografia e folclore. Aveiro e o seu Distrito. Aveiro: Junta Distrital de Aveiro. Nº 21 (1976) p. 55-56.

São Bertolameu
desprende o teu moço,
que faça guerra
àquilo que é meu.

Tais palavras devem ser proferidas ao bater da meia-noite e repetem-se, pela semana adiante, até que o objecto apareça. Ao mesmo tempo, é de obrigação deitar por baixo da porta a mais insignificante moeda que então correr. Em tempos, cinco réis. Agora, é obviamente, um tostão...» (8)
Hoje acabaram-se os tostões, teremos por isso de recorrer ao cêntimo, o mais pequeno submúltiplo do Euro.