É perigosamente
fácil falar de JOÃO SARABANDO, como aliás é fácil falar de coisas ou
almas grandes, que a todos se impõem como faróis de rumo ou como gotas
de orvalho capazes de, só com vê-las, matarem a sede dos mais
sequiosos.
Talvez por isso,
aceitei, em plena aleluia de júbilo, a oportunidade que me foi dada
para estar aqui, junto de vós e dele, sem me sentir estranho.
É que JOÃO SARABANDO foi, durante o quase meio século da nossa vivência comum, aquele
que considerei e, em saudade considero, o meu melhor Amigo.
E importa explicar
porque saio do costume no emprego de «melhor» em vez de «maior».
É que o «maior»
retrata o tamanho que na realidade tinha essa ligação, mas o «melhor»
vai mais longe, exprimindo profundeza de qualidade sem deixar de
significar grandeza de uma medida-padrão, só possível de avaliar com a
alma e os sentimentos.
JOÃO SARABANDO foi,
era e ainda é o meu melhor Amigo, até com a valorização sublime de o
ser também de vários outros a quem por igual se dava no esplendor das
suas qualidades de homem que parecendo, por vezes, isolado, se
entregava ao comum que sentia fazer parte de si.
Eu sei que essas
circunstâncias, na parte em que me dizem respeito, podem fazer-me
resvalar no escorregadio pendor do elogio fácil, mais ditado pelo
coração agradecido que pela justa e equilibrada apreciação da sua
valia imensa, sempre encarcerada numa modéstia quase doentia e, por
isso mesmo, destruidora da enorme dimensão como Homem, homem de corpo
e alma inteiros que, por dar-se totalmente aos outros, como já
apontei, se diminuía perante o juízo de todos à medida que estes o
viam cada vez maior.
A sua vida cabe
bem, apesar de enorme pelo seu significado e valia, naquele conceito
que UNAMUNO tinha, ao dizer, com a simplicidade nele de certo modo
rara:
«Hay vidas que son una enseñanza.»
que o mesmo será
afirmar ter sido JOÃO SARABANDO, pela forma como passou pelo mundo, um
ensino, um ensino verdadeiro em que só não aprendiam quantos desprezam
o exemplo como a mais preciosa das pedagogias e consideram o degrau da
cátedra como criador de valores dos que nela se sentam e não raro
estoiram como o sapo da fábula.
JOÃO SARABANDO
dava-se às causas que adoptava como suas por as julgar do povo de que
fazia parte e no qual, quando se integrava, e era sempre, jamais usava
os bicos dos pés para se evidenciar, embora não desdenhasse o aspecto
intelectual da corrida para a frente, em mostra de pressa que
importava aproveitar para mais cedo chegar ao «Mundo melhor» que veio
a constituir a preciosa sentença de ordem que o seu grande Amigo e
Camarada, MÁRIO SACRAMENTO, veio a ditar no seu testamento e tanto e
tão bem marcou toda uma vida de comunhão, de ambos e dos muitos que
com eles, nesta terra de Aveiro, deram exemplo e justificação à divisa
nobiliárquica de «berço da liberdade» que ostenta em seu brasão de
cidadania.
E justifica-se,
inteiramente, que eu venha aqui, conhecedor que sou de muitos dos
momentos da pessoa de JOÃO SARABANDO, contar, anedoticamente ou quase,
alguns deles que possam servir para ilustrar, com o perfume das coisas
vividas, a tal «enseñanza» de que falou UNAMUNO.
E o «anedoticamente»
em nada diminuirá a altura do seu ensino, tanto mais quanto nele era
verdade axiomática a inversa do velho conselho do «olha para o que eu
digo, não olhes para o que eu faço» já que, em JOÃO SARABANDO, o que
ele fazia em nada contrariava o que dizia pois a sua personalidade era
inteira e insusceptível de confundir o que dizia com o que não fazia
ou, na inversa, o que fazia com o que não dizia.
O todo moral e
cívico que era, só não se impunha porque visceralmente contrário ao
corte das liberdades a efectuar em quem pensasse de maneira diferente
da sua.
Era exemplo vivo de
sinceridade total que só beliscava e, mesmo assim, muito ao de leve,
quando ela pudesse constituir injúria a quaisquer respeitáveis
posturas, enraizadas no tempo, embora aqui e ali inçadas de joios
malignos atentatórios do próprio homem, irmão dos homens e não lobo.
Mas o curioso e
significativo em JOÃO SARABANDO não era o ser, o parecer ou o fazer
diferente dos outros, mas o fazer, o ser e o parecer diferente de si
com o que julgava, e com que razão, ofender mais os outros que a si
próprio.
E recordo, lá bem
para trás no tempo, um episódio de amigos, ele e eu, ali adiante,
noite já fechada, no ambiente perfumado das tílias gigantes do Jardim
Infante D. Pedro, em que lhe dei conta — foi a primeira pessoa a dela
tomar conhecimento... — da minha intenção de publicar um livro que
pretendia ser de poesia e tinha por título «Ecos do mesmo grito».
Eu li-lhe, à luz de
um candeeiro da iluminação pública, um pequeno poema que começava com
estes três simples e despretensiosos versos, ecos do grito que daria
nome ao livro:
«Sou como sou.
Não me digam
Que é preciso mentir».
Pois tanto bastou
para que ele, o JOÃO SARABANDO, para além de conselhos amigos que a
sua sensibilidade ditava, se pronunciar pela identidade total entre o
que eu escrevera e ele pensava e, consequentemente, entre o que todos
dizemos, o que somos e o que fazemos!
Era, assim, o JOÃO
SARABANDO!
E quase sinto medo
ou até vergonha de, ao falar dele, não me ficar por factos de vivência
comum que nada tiveram de raros e foram sempre ou quase, partilhados
com outros do mesmo ou próximo sonho.
Mas o medo está,
precisamente, no pudor de não me julgar merecedor de uma tão profunda
comunhão, tão de eleição ele era em sua pureza, bondade e coerência,
que é como quem diz, fidelidade a si próprio.
E não resisto à
tentação, apesar de me sujeitar a juízos que vejam, nas minhas
palavras, um aproveitamento que, em meu proveito, faça das qualidades
dele, do JOÃO SARABANDO, esse inigualável Amigo que hoje nos reúne
aqui e por certo continuará a reunir quando o saborearmos pela leitura
da sua obra, hoje aqui lançada, não às feras da crítica, mas aos
corações e à saudade dos que o conheceram ou venham a ler, o dador de
mais uma bondade.
E é porque não
tenho forças avonde para resistir, que aqui vos trago umas tantas
pinceladas da inteireza de carácter, da imensa bondade, do aveirismo
seguro e sem bolores, e da extensão do seu amor ao Homem de todos os
homens, ou seja àquele elo que a todos une como vencilho da parábola
dos vimes.
E não obedece a
qualquer ordem de precedência o que vos vou dizer, tão igual sempre
foi a linha que na vida de JOÃO SARABANDO uniu os momentos e as
atitudes de toda ela.
Um dia fôramos
quatro amigos, de longada até S. Macário, «essa altaneira montanha
donde quase se avista o redondo do nosso pequeno mundo» e onde se pode
«encher a alma de horizontes sem muralhas limitadoras deles» porque
«lá em cima, é o céu que comanda, porque tudo, mesmo os mais atrevidos
fragueados, não são mais que pequenas borbulhas que apetece coçar em
alívio de comichões de infinito».
Lá bem no alto,
havia uma pequena, simpática e nada agressiva capelinha em intenção do
Orago, a que eu e o Pinto da Costa, em nossa irreverente intenção de
avaliar, sorrindo, a rijeza laica de JOÃO SARABANDO, tivemos a
intenção, só isso, de acender uma vela que levávamos bem escondida e
só lá mostrada no momento do seu sacrifício ante o atentado do fósforo
ou do isqueiro carrasco.
Como velho viciado
da fotografia, em reforço da memória dos olhos, quis fixar o momento a
que os horizontes quase ciclópicos que nos envolviam dariam uma
majestade panteísta em que, nós todos nos sabíamos bem integrados.
Pois não consegui,
apesar das habilidades e truques de que lancei mão, convencer o
SARABANDO a deixar-se fotografar de vela na mão, em louvor de S.
Macário, nosso padroeiro do momento e mago de toda aquela maravilha
envolvente!
— Não! Não! Não! O
que iriam dizer os que me vissem em acto que não corresponderia ao que
sou e sempre tenho sido?
Quase se zangou o
bom do Amigo e nós, os Cardiais-Diabos daquela Cúria ambulante de
encantos da natureza naquele trono esmagador em toda a sua empolgante
beleza, tivemos de desistir, embora não fosse pequeno o trabalho de o
convencer, ao JOÃO SARABANDO, de que era mera brincadeira de «oficiais
do mesmo ofício» e idêntica fé!
É que, com o
SARABANDO, sacerdote de bondade, com certas verdades não se brinca e
ele não queria estar nem que o vissem em acto que não correspondia à
verdade de si.
Mas há um outro
pedaço do JOÃO SARABANDO que é uma das tais significativas pinceladas
da sua personalidade bondosa, e que entendo dever trazer para aqui,
enroupada com os atavios da praxe ou nua em sua singela mas
significativa verdade, como a apresentei em palestra que tive a honra
de fazer no Conselho Distrital do Porto, da Ordem dos Advogados, em 4
de Janeiro de 1995, ainda o JOÃO SARABANDO era o farol aceso dos seus
Amigos.
E, para não me
atraiçoar, aqui fica com o respeito devido às mesmas palavras, então
proferidas:
«Eu tenho um muito
querido Amigo a quem o Destino dotou de alguns bens de fortuna mas que
nem de longe se podem comparar, em quantidade e qualidade, àqueles que
tem na alma bondosa e no aprumo de uma conduta cívica de primeira
apanha.
Entre esses bens,
os materiais, tem umas casitas modestas com inquilinos ainda mais
modestos mas que, como quase sempre sucede, não são da mesma valia e
não raro se mostram com exigências descabidas e, pior ainda, tentando
abusar do espírito bondoso daquele meu Amigo.
Muitas vezes ele se
abria comigo, referindo que as rendas, quase todas baixas,
dificilmente davam para as despesas de conservação, chegando, num dos
casos, a contar-me que, para uma porta nova que um inquilino exigia,
para a sua casa, seriam precisos dois anos e meio de rendas, aliás nem
sempre pontualmente pagas.
Mas o que mais
punha o meu Amigo fora de si — e isso muito raramente sucedia... — era
o não pagamento pontual das rendas e as simultâneas e atrevidas
exigências dos caloteiros.
Um dia apareceu-me,
no escritório, muito sério e de cenho carregado, a dizer-me que desta
vez tinha que ser.
Ia pôr acção de
despejo contra o seu inquilino F... que, além de ter rendas atrasadas
de mais de ano, ainda se atrevia a dizer, na «tasca» que frequentava,
ser o meu Amigo um mau senhorio que nem mandava pôr uma porta nova no
cabanal da casa.
Aceitei a
incumbência profissional, foi passada procuração bastante, mas logo
preveni o Amigo de que, a partir daquele momento, só eu mandaria, nos
passos a dar.
Mandei chamar o
relapso a quem expus as intenções do despejo. Ouvi dele as descabidas
e até atrevidas justificações mas disse-lhe, em tom firme e decidido,
que a acção seria proposta se não pagasse as rendas em atraso, no
prazo máximo de oito dias.
Lá saiu a resmungar
e de tal maneira que comecei, desde logo, a preparar a petição
inicial, aliás sem dificuldades de maior.
Três ou quatro dias
depois, apareceu-me o «homenzinho» com o mesmo ar arrogante e
atrevido, a dizer-me que vinha pagar as rendas.
Desconfiei mas ouvi
com atenção o que ele tinha para dizer e, sobretudo, fazer, colocando,
em cima da secretária, as notas do Banco de Portugal correspondentes
ao débito.
Mas a minha
curiosidade era maior que o recato e, sempre desconfiado, comecei a
desfiar o rosário das minhas dúvidas, tanto mais quanto ele me havia
dito das suas dificuldades em arranjar o dinheiro.
Consegui,
finalmente, que ele deitasse cá para fora, a chave do enigma:
— Foi o senhor JOÃO
SARABANDO que me deu o dinheiro para eu vir pagar as rendas que eu lhe
devia. Mas o senhor doutor não diga que eu lhe disse, senão, para as
próximas vezes, ele é capaz de não me dar...
Era assim o meu
Amigo e foi a esta nossa bela profissão que eu fui buscar a consolação
de o conhecer, tão profundamente, no lado bom que todos temos e nele
quase é o inteiro de si».
Este episódio é bem
o retrato não de uma alma gémea de JOÃO SARABANDO, mas dele próprio,
contado ao vivo da saudade e da certeza de uma verdade vivida. E se
não alma gémea é porque para gémeos são precisos pelo menos dois e
ele, o JOÃO SARABANDO era, na grandeza da sua alma, único!
E, já agora, para
não abusar mais da vossa paciência, a justificar que qualquer Cícero
de entre vós me atire a seta do bem conhecido e soberbo
«Quo usque tandem abuteris...»
Vou ler umas
quantas curtas passagens do meu livro «Memória de Aveiro, em forma de
saudades» a lançar dentro de poucos dias, neste mesmo lugar, altar da
cultura da nossa terra, por certo merecedor de bem mais do que aquilo
que lhe vou dar.
Digo eu, nesse
livro de saudades, englobando os dois grandes amigos MÁRIO SACRAMENTO
e JOÃO SARABANDO:
«Neste desfilar de
saudades do que vivi, importava encontrar dois nomes que fossem factos
e que, pela sua presença e acção, constituíssem marcas permanecendo
para além do material desaparecimento e pudessem encerrar, sem parar,
esta referência ao Aveiro que vivi.
E não foi difícil
encontrá-los apesar de na morte a que ambos chegaram, já, haver uma
separação de muitos anos com a particularidade aparentemente insólita
de o primeiro ter sido compensado pela sua permanência no segundo,
tanto metades eram do mesmo todo cívico, intelectual e moral.
Trata-se, como é
bom de ver, do MÁRIO SACRAMENTO e do JOÃO SARABANDO a que quero juntar
a convicção em que me encontro de os considerar a ambos e neste meio
século que levo de Aveiro, como as figuras determinantes e mais
influentes dos passos que dei, dos sonhos que tive e do pouco que dei
aos outros que, comigo, eram a cidade a que me acolhi e soube
acolher-me como se dela fosse a minha raiz».
«E é altura de
trazer de novo o SARABANDO, já que é quase sacrilégio falar de Aveiro
ou aveirenses, de coração ou de nascença, sem ir buscar o Sarabando e
até trazê-lo pela mão e pelas palavras do seu maior e mais admirado
amigo, o MÁRIO.
Estes comunistas de
Aveiro e, por certo, de muitos outros lugares, têm uma cola
especialíssima que os une e defende e que, nos casos apontados, lhes
não destrói a qualidade de amigos e companheiros, camaradas até, de
outros acenares ideológicos».
É tempo de terminar
mas, para o fazer, vou procurar entre as palavras que, pelos tempos
fora, o JOÃO SARABANDO me mereceu, algumas que sinto serem o seu mais
simples e melhor retrato, ou, pelo menos, aquele de que se julga capaz
este pintor desajeitado que sou e que tracei no LITORAL, já lá vão
muitos anos e quase desencadeou um ciclone nas nossas relações, tão
ofendido ele se mostrou com tais traços de verdade, em sua natural e
quase doentia modéstia:
«Se me pedissem — e
não poderia ser de um qualquer o pedido... — que definisse João
Sarabando, diria ser ele uma vera quadra popular de bondade, a rimar,
na boca do povo, com liberdade e tangida pela lira de um coração capaz
de dar aos inquilinos o dinheiro que ele, como senhorio, havia de
receber, evitando o despejo».
Perdoem o tempo que
vos fiz perder, mas tenho para alegar e como desculpa o facto de ser
traiçoeiro o falar de JOÃO SARABANDO tanto ele tem de sedução que nos
leva a nunca mais querer acabar depois de o termos começado a fazer.
Pudesse eu, em
minha pobreza, não desmerecer da riqueza do que ele foi como Homem,
como Cidadão, como Artista e devoto desta terra de Cagaréus e
Ceboleiros que foi a sua.
Vamos lê-lo!
Costa e Melo -
10/06/1997 |