Rangel de Quadros, Aveirenses Notáveis. Aveiro, 1ª edição, Aveiro, Câmara Municipal de Aveiro, 2000, (Revisão de J. Gonçalves Gaspar), pp. 400-408.


Manuel José Mendes Leite
(1809-1887)

II

Nasceu em 18 de Maio de 1809. Era filho de D. Teresa Tomásia Leite, descendente de uma família de comerciantes daqui e de não pouca importância, e de Bento José Mendes Guimarães, que também se dedicava ao comércio e que era do concelho do nome do seu último apelido. Este indivíduo viera para Aveiro, sendo muito criança, e foi caixeiro da casa comercial da família daquela de quem depois foi esposo; nos negócios da mesma casa teve parte desde certa época, sendo por aquela família sempre tratado com muita estima.

Manuel José Mendes Leite estudou as primeiras letras com Frei Joaquim de Santa Rita, religioso do convento de Santo António, desta cidade. Esse convento, em virtude de um legado e de um subsídio da Câmara Municipal, era obrigado a sustentar uma aula de primeiras letras, como então se chamava a instrução primária.

Em fins de 1817, o aveirense, de quem estou falando, começou a frequentar a aula de gramática e língua latinas com José Lucas de Sousa da Silveira, natural desta cidade e eminente preceptor da mesma língua, da qual também Mendes Leite ficou sendo um profundo conhecedor. Em 1822, foi a Coimbra, acompanhado por seu pai, e ali, na Universidade, sem precisar da mínima recomendação, fez / pág. 401 / exame daquela disciplina, a que também andava anexa a gramática portuguesa. Escusado será dizer que obteve a aprovação de nemine discrepante e mereceu os elogios dos seus examinadores.

No ano imediato frequentou lógica, com o Dr. Francisco Inácio de Mendonça e, no de 1823 a 1824, frequentou retórica e história, disciplinas que então andavam anexas, com o Padre Manuel Xavier Pinto Homem.

Em Outubro de 1824, matriculou-se no primeiro ano de leis, como então se chamava à Faculdade de Direito. Cursou os dois primeiros anos dessa Faculdade sem incidente notável e dando sempre grandes provas de inteligência e de muito regular aplicação.

Em 1826, o senhor D. Pedro, primeiro imperador do Brasil, enviou para os portugueses uma Carta Constitucional, que por ele foi outorgada e mandada jurar e cumprir. Muitos dos mancebos, que frequentavam as aulas da Universidade e de outras escolas superiores e secundárias, aplaudiram festivamente a nova forma do Governo e aclamaram a Dinastia do outorgante. Para isso não faltavam motivos.

Uns desses mancebos já tinham, como suas famílias, recebido alegremente a Constituição, que havia sido efeito da evolução de 1820. Outros achavam que a nova Constituição, fundada na Carta, lhes traria meios de um viver mais próspero. Mas não poucos amavam mais as lides escolares e a sujeição aos lentes, do que as lides bélicas e as aventuras que elas proporcionam aos que empunhavam as armas, ou em defesa da pátria ou em defesa de um ideal político. Logo se manifestaram opiniões diversas; umas a favor da nova forma de Governo, outras favoráveis ao antigo Regime.

Mendes Leite, com um grande número dos seus companheiros no estudo, não só se manifestou a favor daquela causa, mas, como eles e em defesa dela, empunhou as armas. Por isso, no fim do ano lectivo de 1826 a 1827, não obteve aprovação no acto. Decerto, concorreu para tal a falta de aplicação e o desassossego moral e físico, pois nem lhe faltava talento, nem era de recear qualquer vindicta, porque permanecia ainda a forma de Governo, a que Mendes Leite era afecto.

Em princípios de Maio de 1828, achava-se em Aveiro, quando aqui o Batalhão de Caçadores n.º 10 e alguns paisanos, capitaneados pelo desembargador Joaquim José de Queirós, levantaram os gritos revolucionários contra o Governo estabelecido. Foram ao convento do Carmo, onde se achava o cofre com o dinheiro das obras da barra e do mesmo dinheiro tomaram posse, sob o pretexto de ser destinado às despesas de uma causa, que proclamavam legítima e que traria a Portugal grandes prosperidades e venturas. Mendes Leite deixou logo Aveiro e marchou para Coimbra, onde alguns académicos também se haviam revoltado contra o Governo. Ali se organizou, em 16 daquele mês, o chamado Batalhão Académico, para defender os princípios, proclamados naquela revolta. Mendes Leite ficou pertencendo ao mesmo Batalhão.

/ pág. 402 / Este e quase todos os corpos militares, partidários da revolta, foram mal sucedidos e tiveram de fugir da pátria, procurando refúgio no exílio para assim evitarem o castigo, que as leis daquele tempo haviam de aplicar-lhes. Mendes Leite e os seus companheiros emigraram para a Galiza, aqui chegando em 6 de Julho. Em 7 de Setembro, desembarcou em Plymouth. Em 28 de Março de 1829, ele e os seus companheiros foram riscados perpetuamente da Universidade.

A história de Mendes Leite, desde então até se concluir a guerra entre os partidários do primeiro imperador do Brasil e os do príncipe português, que foi expulso em 1834, é quase tão semelhante à dos seus companheiros de armas, que escusado será referi-la. No entanto, direi que ele na causa, que defendia, mostrou-se sempre denodado e nunca deixou de tratar bem os adversários, se com eles se encontrava fora dos combates.

Ele e os seus companheiros sofreram trabalhos, doenças e privações, mas praticamente muito aprenderam e se ilustraram, adquirindo mesmo direitos a empregos e a postos militares. Mendes Leite, porém, não se aproveitou do ensejo de adquirir nem uns nem outros e sempre recusou as veneras e os títulos, que muitos avidamente solicitaram e facilmente adquiriram. Em virtude do decreto de 18 de Março de 1833, aproveitou-se unicamente da vantagem de ser novamente admitido às aulas da Universidade e de não ser obrigado ao acto, que deveria fazer em 1828, se a revolta, em que tomou parte, não concedesse esse privilégio a todos os que formaram o Batalhão Académico. Em Outubro de 1834, foi continuar a sua formatura, a qual concluiu em Junho de 1836.

Em Setembro mesmo ano, promovida por alguns liberais, houve uma incoerente revolução, que daquele mês tomara o nome. Mendes Leite foi um dos que perfilharam os princípios, que na mesma revolução haviam sido proclamados.

Em 16 desse mês e no mesmo ano, foi despachado secretário-geral do Governo Civil do Distrito de Aveiro, lugar que com muita proficiência exerceu até Junho de 1838, ano em que, por motivos políticos, pediu a sua exoneração.

Em 1839, foi eleito para o cargo de presidente da Câmara Municipal deste concelho. No mesmo ano foi eleito comandante do batalhão da Guarda Nacional, aqui organizado.

Em 22 de Março de 1840, foi eleito deputado pelo círculo de Aveiro. Na mesma lista figuravam os nomes de José Estêvão Coelho de Magalhães, de Aveiro, Filipe José Pereira Brandão, de Estarreja (ambos bacharéis formados em direito) e Manuel Maria da Rocha Colmieiro, proprietário, natural e residente em Esgueira, subúrbios de Aveiro. Todos ficaram eleitos; porém, Manuel José Mendes Leite foi quem obteve mais votos.

Em 25 de Maio, foram abertas as Câmaras. Mendes Leite e José Estêvão logo se declararam hostis ao Ministério. Perfilhando os princípios da revolução, que do mês de / pág. 403 / Setembro tomara o nome, resolveram fundar um jornal diário com o título de “Revolução de Setembro”, cujo primeiro número saiu em 22 de Junho desse mesmo ano de 1840. Os seus fundadores foram também os seus redactores principais. Nenhum, porém, assinava os artigos, o que foi pena, porque seria hoje muito curiosa a separada colecção dos artigos, podendo-se assim apreciar tanto as belezas do estilo e a maneira como os seus princípios políticos. Mais tarde, outros indivíduos escreveram no mesmo jornal, tornando-se mais notável António Rodrigues Sampaio, que por isso e por muito tempo foi conhecido pelo nome de Sampaio da Revolução.

Em 10 de Fevereiro de 1842, foi proclamada novamente a Carta Constitucional, a qual não estava em vigor desde que havia sido jurada a Constituição de 1838 e que era um misto da mesma Carta e da Constituição de 1821. Desde que essa nova Constituição fora jurada pela soberana (4 de Abril de 1838) até aquela data, deram-se não poucas alterações políticas e não poucas manifestações populares, promovidas pelos chefes dos diversos partidos e em diversas localidades. Escusado será aqui apontá-las; sabem-se pela história e a sua total narração não será mister para uma especial biografia.

Mendes Leite pronunciou-se contra a restauração da Carta a contra o decreto que, dissolvendo a Câmara dos Deputados, mandava que novas eleições houvessem de fazer-se em 9 de Junho desse ano. Claro está que os eleitos deveriam todos ser da feição do Ministério, que era puramente cartista e presidido por António Bernardo da Costa Cabral, depois conde e mais tarde marquês de Tomar. Os afeiçoados ao Ministério foram denominados cartistas ou cabralistas. Os contrários tinham diversas denominações, mas geralmente eram conhecidos por setembristas, pois quase todos defendiam os princípios da incoerente revolução de Setembro.

Essa facção, porém, não era formada só pelos setembristas puros, mas por alguns cartistas dissidentes e até por vários sectários do antigo Regime e do príncipe, proscrito em Maio de 1834. Era, pois, um partido formado de elementos heterogéneos e de indivíduos que haviam sido antagonistas, tanto na imprensa como nos campos da batalha. Essa coligação deu origem a um jornal, que dela tomou o título. As eleições fizeram-se, mas com grandes violências e não menores violências se fizeram nas eleições suplementares, que no ano imediato se efectuaram.

Os chefes dessa coligação trataram de promover uma revolta contra o Governo. Os setembristas e os seus correligionários fizeram ao Ministério uma grande guerra, tanto nas Câmaras, como na imprensa, e prepararam-se para a fazerem com as armas na mão. Por isso, tratavam de subornar alguns corpos militares, tanto da capital e não menos da província. Mendes Leite era um dos chefes dessa incoerente rebelião.

Em princípio de 1844, essa rebelião tornou-se mais exaltada e mais declarada, dando em resultado, no dia 4 de Fevereiro, o pronunciamento militar em Torres Novas, no qual José Estêvão muito se salientou. Essa revolta foi sufocada e não conseguiu a  / pág. 404 / queda do Ministério. Também a não conseguiu o pronunciamento de 8 de Abril do mesmo ano; em 28 desse mês, na praça de Almeida, o conde de Bonfim teve de capitular e muitos dos revoltosos tiveram de emigrar e não poucos tiveram de procurar as terras do exílio. Esses, com raras excepções, haviam jurado a Carta e por ela havia pelejado. Então revoltaram-se contra o Ministério, que procurava manter-se à sombra da mesma lei fundamental.

Mendes Leite, depois de percorrer diversas terras, esteve em Paris, na rua Laffite, n.º 20, tendo por companheiro José Estêvão, seu íntimo amigo desde a infância e também companheiro em todas as lides políticas, nas quais sempre confraternizaram.

Em 15 de Abril de 1846, levantou-se no Minho uma sublevação popular, a que se deu o nome de Patuleia. Ao princípio, não se lhe ligou importância; o mesmo nome de Patuleia assim o indica. Dizia-se que era, apenas, uma algazarra de patulas, ou pato las; isto é, gente rústica e sem cotação nas opiniões políticas. Também se lhe deu o nome de Maria da Fonte, nome que não passava de um mito ou de um emblema revolucionário.

As coisas, porém, tomaram maior vulto e os emigrados, aproveitando o ensejo, voltaram à pátria. Mendes Leite foi um deles. Houve a batalha de Torres Vedras e deram-se diversos combates. A mesma intervenção estrangeira, que havia concorrido para a expulsão de D. Miguel, veio então em auxílio da augusta filha do primeiro imperador do Brasil. O trono dela estava periclitante; não faltava quem optasse ou pela república ou pelo regresso do príncipe proscrito. Pela convenção de Gramido, em 24 de Junho de 1847, acabou a Patuleia e os contrários à Carta houveram de sujeitar-se a ela e mais tarde tornaram a festejá-la, achando-a muito boa e muito liberal.

O que Mendes Leite e José Estêvão passaram, desde que chegaram à pátria até à convenção, pertencente à história daquela malfadada época. Bastará, porém, dizer que Mendes Leite e outros partidários da augusta filha do primeiro imperador do Brasil estiveram presos na torre de S. Julião, onde no dia 2 de Junho desse ano de 1847, esteve alteada a bandeira inglesa! Ele e seus companheiros haviam sido aprisionados por uma esquadra da nação britânica, quando, em 31 do mês antecedente, tentavam desembarcar na barra do Porto, para se unirem às forças da Junta que, em nome da rainha, se havia organizado na segunda cidade do reino. Seguiu-se a esse e a outros acontecimentos a convenção de Gramido, para que influiu a intervenção estrangeira.

No ano imediato e por causa de uma conspiração política, de muito pouca importância e que talvez não passasse de uma pura invenção do Ministério presidido pelo Duque de Saldanha, foi Mendes Leite preso e encarcerado no Limoeiro, em 17 de Junho, donde saiu em 4 de Novembro seguinte, depois de ter sido pronunciado sem fianças, mas obtendo na Relação a anulação da pronúncia. A mesma sorte tiveram outros verdadeiros ou supostos conspiradores.

/ pág. 405 / Em 1851, houve a incoerente revolta, chamada Regeneração, na qual Saldanha, que até então era um grande defensor do partido cabralista, se mostrou inimigo intransigente do conde (depois marquês) de Tomar, seu correligionário; pôde assim derrubá-lo do poder. Mendes Leite, como José Estêvão e outros liberais exaltados, apoiou o movimento revolucionário; isso talvez concorresse para que, em 16 de Novembro do mesmo ano, fosse eleito deputado pelo círculo de Aveiro.

Em 10 de Março do ano imediato, propôs que, nos crimes políticos, não fosse aplicada a pena de morte, ficando assim ampliado o parágrafo 18 do artigo 145 da Carta Constitucional. Essa proposta, posto que tivesse muita oposição, foi aprovada, mas não por grande maioria.

Em 24 de Junho do mesmo ano (1852), foram dissolvidas as Câmaras. Procedendo a novas eleições, Mendes Leite saiu deputado pelo círculo de Aveiro, com os dres. Francisco António de Resende, de quem já se falou no início deste capítulo, e José António Pereira Bilhano, prior da freguesia de Ílhavo e, mais tarde, arcebispo de Évora.

Em 1856, saiu deputado por este círculo com Carlos Bento da Silva e o Dr. José Luciano de Castro, que também chegaram ao cargo de ministros. Por decreto de 14 de Março de 1860, foi nomeado governador civil do Distrito de Aveiro.

Tendo, porém, caído o Ministério em Agosto do mesmo ano, pediu em 15 de esse mês a exoneração de tal cargo, para o qual seria nomeado o Dr. Basílio Cabral Teixeira de Queirós Júnior.

Em Julho de 1861, começou a publicar-se aqui o jornal “Districto de Aveiro”, em oposição ao Governo e ao “Campeão da Províncias”, que defendia o Ministério presidido por António José de Ávila, depois duque de Ávila e Bolama. Mendes Leite foi um dos fundadores desse jornal, como o foram Bento de Magalhães, José Crispiniano da Fonseca e Brito, Bernardo Xavier de Magalhães, Manuel António Loureiro de Mesquita, Filipe Luís Bernardes e outros que seguiam a política de José Estêvão, que também concorrera para a fundação do mesmo jornal.

Em 4 de Novembro de 1862, faleceu José Estêvão e, portanto, ficou vaga a cadeira de deputado que ele ocupava.

Em 1 de Março de 1865, foi Mendes Leite eleito deputado por este círculo, tendo por seu antagonista António José da Rocha, natural de Ílhavo, que na magistratura judicial ocupava um lugar importante. Mendes Leite, apesar de ser oposto ao Governo, venceu por grande maioria, especialmente na assembleia que, nesta cidade, se efectuou na igreja da Misericórdia.

Em 11 de Setembro de 1864 e pelo partido do Governo, saiu deputado por Aveiroo Teve por seu antagonista Manuel Firmino de Almeida Maia, que, apesar de estar na oposição, ainda obteve um grande número de votos, em quase todas as assembleias.

/ pág. 406 / Em Maio do ano imediato e tendo caído o Ministério, foi dissolvida a Câmara dos Deputados. Em Julho, efectuaram-se novas eleições, sendo eleito por este círculo o mesmo Manuel Firmino, como governamental. Mendes Leite havia sido indigitado para deputado oposicionista, mas, por combinação amigável, desistiu da candidatura e patrocinou a do seu colega e amigo Bento de Magalhães, que não obteve maioria em nenhuma das assembleias e perdeu por quase seiscentos votos.

Durante seis anos, esteve Mendes Leite quase completamente retirado da política, posto que sempre afecto ao partido histórico e depois ao regenerador. O facto de ser um dos fundadores e colaboradores principais do “Districto de Aveiro” não deixou de causar-lhe desgostos, por ser um jornal criado quase exclusivamente para defender a política partidária de José Estêvão.

Mendes Leite, em 29 de Setembro de 1871, foi novamente nomeado para o cargo de governador civil deste Distrito, depois de ser telegraficamente consultado por António Rodrigues de Sampaio, que então era ministro do Reino e que havia sido seu colega na redacção da “Revolução de Setembro”, por cujo motivo era conhecido pelo nome de Sampaio da Revolução. Por motivos políticos, pediu a sua exoneração em 28 de Abril de 1877.

Em 6 de Fevereiro do ano imediato, foi novamente eleito para o mesmo cargo e, em 25 de Julho de 1879, também novamente e a seu pedido, obteve a sua exoneração. Em 30 de Janeiro de 1881, voltou a exercer o cargo de governador civil, que exerceu até Fevereiro de 1886.

Nos princípios de Junho do ano imediato, quando eu tinha a minha residência em Estarreja, vim a Aveiro e encontrei-me com Manuel José Mendes Leite, na rua dos Mercadores, muito perto da arcada da Praça. Cumprimentámo-nos e estranhei o encontrá-lo tão magro, abatido e tristonho, muito acabrunhado e sem a sua natural jovialidade de outrora. A isto me respondeu, meneando tristemente a cabeça:

— Então que quer, meu amigo? São os setenta e oito.

— Mas — repliquei-lhe — quantos indivíduos têm essa idade e estão bem dispostos e vivem de perfeita saúde!

— E os trabalhos? E os desgostos? E os desenganos? E as ingratidões?

Nada mais lhe pude responder. Apertou-me afectuosamente a mão e despedimo-nos com uma simples cortesia.

Em 20 de Agosto do mesmo ano (1887) e após uma doença, que poucos dias o retivera no leito, acabou os seus dias este aveirense na sua casa da quinta do Seixal, desta cidade. Eram quase cinco horas da tarde; pouco antes, havia recebido respeitosamente o sacramento da Extrema-Unção e outros socorros espirituais.

O cadáver de Mendes Leite foi acompanhado ao cemitério por grande número de indivíduos, sem distinção de classes, nem posições, nem opiniões políticas. Pouco antes, estivera depositado na capela da Madre de Deus, situada defronte da casa onde falecera o mesmo indivíduo; ele próprio era o proprietário dos dois edifícios.

/ pág. 407 / Mendes Leite morreu, como bom cristão, pois, apesar das suas fragilidades como homem, não era descrente e nunca deixou de frequentar os templos e de assistir muito respeitosamente às solenidades religiosas. O seu enterro foi católico. Junto ao seu cadáver foram pronunciados alguns discursos.

Mendes Leite era muito erudito e inteligente. Sabia perfeitamente a língua latina, falava correctamente a francesa e traduzia a língua inglesa com prontidão e desembaraço. Como jurisconsulto, sabia detalhadamente as leis, antigas e modernas, e teria sido um grande advogado, se desejasse e precisasse disso para adquirir meios. Se tivesse seguido a magistratura e não lhe faltassem a vida e a saúde, poderia chegar a elevados cargos. Se fosse ambicioso e quisesse fazer da política uma indústria, poderia ter chegado a ministro, sem que para isso mendigasse favores. E nisso e por mais de uma vez se falou, posto que não oficialmente.

Também não lhe faltavam meios nem aptidões para ser par do reino, ou electivo ou por nomeação. Ele, porém, seja dito em abono da verdade, tendo-se sacrificado, por mais de uma vez, pelas suas opiniões políticas, preferia a tudo o remanso na sua casa da Rua Larga... ou na sua quinta do Seixal, onde muito se dedicava à floricultura e à plantação de árvores frutíferas.

Como tinha feito muitas viagens, tanto no país como no estrangeiro, as suas conversas tornavam-se sempre interessantes e instrutivas, quando versavam em assuntos que a tais viagens se referiam.

Serviu em diversas confrarias, chegando ao cargo de juiz na do Santíssimo Sacramento, da freguesia da Vera-Cruz, em 1851.

Promoveu a construção de um teatro no quartel de S. Domingos, para o que abonou importantes quantias. Para indemnizar-se, teve de ficar com quase todos os materiais, quando o teatro foi desmanchado. Emprestava-os de muito boa vontade a algumas companhias ambulantes, que acidentalmente aqui vinham dar algumas récitas.

Além de outros cargos sociais e políticos, que serviu sempre com desinteresse, prontidão e honradez, foi por diversas vezes substituto do juiz de Direito, provedor da Misericórdia, presidente da Associação Comercial e director da Caixa Económica; desta foi um dos fundadores e, em cumprimento dos serviços desse estabelecimento, não poucas vezes se privou de algumas distracções. Também, por mais de uma vez, foi conselheiro de Distrito e procurador à Junta Geral.

Teve inimigos pessoais e políticos, que lhe causaram não poucos desgostos; havendo tido ocasiões para deles se vingar, jamais o fez, o que prova quanto o seu coração era magnânimo. Infelizmente deixava-se convencer por falsos amigos, que o comprometeram em alguns dos seus actos e que não pouco o obrigaram a grossos dispêndios que, por mais de uma vez, lhe desfalcaram os seus valiosos haveres.

/ pág. 408 / Nos últimos tempos, vivia concentrado e muito modestamente; e, nas suas refeições, era extremamente frugal e muito parco. Os recursos, que lhe davam os seus haveres, concorreram para que, em certas épocas, não passasse de um simples proprietário.

Muito dado à leitura, apreciava as obras de Rebelo da Silva, especialmente os Fastos da Egreja, que ele lamentava houvessem ficado só nos dois primeiros volumes. Também era entusiasta das obras de Camões.

Alguns discursos no Parlamento e não poucos artigos, publicados na “Revolução de Setembro”, no “Campeão do Vouga” e no “Districto de Aveiro”, foram, apenas, os frutos das suas aptidões literárias e da sua vasta inteligência; foi pena que a tão pouco se limitassem. Com os seus recursos intelectuais, poderia ter sido um grande literato e deixar obras, que mais notabilizassem o seu nome. Os seus entusiasmos pela política deixaram de concorrer para que Mendes Leite não figurasse mais nas lides literárias. No entanto, faria um grande serviço à sua memória quem publicasse a colecção desses discursos e desses artigos, com as respectivas indicações.

O mesmo se pode dizer dos artigos de José Estêvão e de Bento de Magalhães, cujas biografias ficam nos lugares competentes.

Mendes Leite, por ter prestado relevantes serviços à causa do primeiro imperador do Brasil, teve diversas condecorações e muitas mais teria, se quisesse, mas todas recusou; assim como poderia chegar a elevados postos, como muitos dos seus companheiros naqueles serviços e nas revoluções, que se seguiram a 1834.


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