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Sérgio Paulo Silva, No rasto da memória, 1ª ed., Estarreja, 2007, 80 págs.

 

Era uma vez um caçador que tinha um cão perdigueiro. Esse caçador vivia nos arredores da cidade, numa casa que era nova, porque estava sempre por acabar, só com massas grossas por cima dos tijolos, sem pintura nenhuma, os portões escancarados para a rua, porque não tinha portões nenhuns: ainda haviam de ser encomendados. As pessoas que passavam na rua olhavam para dentro e viam bidões e tractores, alfaias e bidões, bidões e baldes de plástico, tudo espalhado pelos cantos. Algumas ficavam a pensar que o Gomes Ferrugem, que era assim que o caçador se chamava, trabalhava muito e não tinha vagar para arranjar as coisas; outras diziam que o Farruje era um bruto, um boçal, que tinha a casa transformada num pardieiro só porque queria, porque não tinha brio nenhum. Para lá das mangueiras estendidas pelo chão fora, quem passava via lá ao fundo uma figueira grande, muito mais antiga que a casa do Farruje e, debaixo da sua vasta copa, um bidão de ferro deitado e sem tampa, onde dormia o velho perdigueiro preso a um cadeado. Ao lado do bidão estavam uns caqueiros virados, onde o cão comia e bebia. Quando a água se virava, o pobre ficava a seco e lá estava esquecido, sobretudo quando não era o tempo da caça, porque o Gomes Ferrugem parava pouco por casa, ora ocupado nas suas lavouras, ora ocupado no café do senhor Jaime.

Num dia qualquer passaram umas pessoas que deitaram um olhar distraído para o pátio da casa e seguiram adiante, sem se darem conta da tarefa que ele tinha em mãos. Se tivessem deitado um olhar mais demorado e indiscreto, teriam notado que o Farruje estava a fazer, com tábuas aproveitadas de paletes, uma cabana para um cão, e teriam pensado que, finalmente, na velhice, o perdigueiro teria uma casa, um abrigo, um aconchego. Mas, se tivessem deitado um olhar mais indiscreto e demorado, teriam acabado por notar que um cachorro perdigueiro desafiava o velho cão para a brincadeira sob a copa imensa da figueira amiga, e que a cabana se destinava precisamente ao inocente brincalhão.

Muitas (ai quantas!), muitas vezes para ver bem não basta olhar. Teriam reparado nisso e, se tivessem passado por lá no dia seguinte, teriam visto o cachorrinho preso por um cadeado novo, perto do velho perdigueiro, já sem vontade de brincar, aflito com a coleira, desesperado com a corrente, enquanto o dono se demorava ocupado talvez nas suas lavouras ou no Café do Jaime, distante dos seus ganidos, da sua aflição.

Encafuado no seu latão, o velho perdigueiro dormitava e ia espreitando o cachorro, vendo como ele se esgotava lutando e como, cansado, se imobilizava, abandonando-se, de olhar estúpido, à fatalidade. Se alguém nesse momento tivesse avançado pelo pátio, não seria recebido pelas ladras do velho perdigueiro, que não arremeteria quanto a corrente lho permitisse. Encafuado no seu triste cardenho, o velho cão perdia-se em recordações, via no desespero do cachorro a sua própria e longínqua infância e o coração mirrou-se-Ihe de pena.

Passaram-se alguns anos. Nada sabia destas coisas a Dona Alice, uma senhora de cabelos brancos, que trabalhava a dias para a família Neves, que tinha uma casa numa cidade do interior, muito distante da propriedade de Gomes Ferrugem. Nada sabia mas acabou por ficar a saber por um momento de acaso feliz.

A Dona Alice raramente via o dono da casa, Alberto Neves, que era funcionário dum banco e tinha uma cadela perdigueira de fina estampa, muito famosa pelas suas qualidades. O senhor Alberto era caçador, mas durante a semana estava sempre no trabalho, vinha sempre tarde. Embora as obrigações da velha senhora fossem com a roupa e com a cozinha, tinha a seu especial cargo a cadela e o cão, que agora estava preso numa jaula, enquanto a cadela criava a sua ninhada.

Uma tarde, assim já pelo final da tarde, a D. Alice tinha já todas as suas tarefas cumpridas. Faltava-lhe apenas tratar da cadela. O pior é que a cadela não tinha consciência das horas da D. Alice e estava refastelada no meio do pátio a dar de mamar aos cachorros. Apesar de já estarem grandinhos, de já comerem comida normal, os bacorinhos – porque pareciam bacorinhos – não davam trombadas nas mamas da mãe, mas faziam pressão com as patas para que o leite morno lhes escorresse pelas goelas lambareiras. Pelos anos que tinha, a D. Alice já tinha presenciado muitas vezes cenas daquelas mas, como gostava muito de animais, sentou-se ali à beira a descansar, dizendo com os seus botões "depressa acaba a jantarada e vai cada um para seu canto". Mas muito se engana quem cuida e mais se enganou quem cuidou: a cadela, que adorava a sua cachorrada mais que a coruja da lenda, lembrou­-se de contar à sua prole uma história de família, para ver se eles adormeciam e a deixavam ir dar uma volta em paz.

– Aposto que nenhum de vós sabe porque é que o vosso pai se chama Vadio! – disse ela enquanto deitava uma olhadela. Nenhuma cauda se moveu, mas a cachorrada, subitamente curiosa, abocanhou com maior sofreguidão os mamilos entumecidos.

– Pois, então, vou-vos contar, mas não quero ouvir barulho a comer. Isso é muito feio! Prestem atenção!... Quando eu era nova e solteira, vivia sozinha nesta casa, com todos os mimos só para mim, mas era feliz sobretudo com as crianças, que eram estouvadas como eu. Depois, eles foram para a escola e eu própria também comecei a ganhar juízo, a assentar as minhas maneiras com as lições que o dono me dava. Tornei-me adulta, mas eles nem tanto. Continuavam, volta e meia, a desafiar-me, mas eu já não me excedia. Assim, iam para dentro mais cedo fazer os deveres e eu ficava de atalaia à casa como qualquer cão que se preza. Um dia não os vi e, de repente, o sossego foi quebrado por uma grande agitação. Dentro duma grande caixa de cartão traziam o vosso pai, ainda a dormir da anestesia, a língua toda de fora num canto do focinho, as pernas com talas e um funil de plástico amarrado ao pescoço, que parecia um vaso onde a cabeçorra oscilava como uma estranha flor sonâmbula.

Puseram-no na jaula vazia, com uma lâmpada de aque­cimento, e lá ficou durante muito tempo a recuperar. A mim só me era permitido cheirar e ver. E eu via o pobre a tentar caminhar com as talas e a comer e beber com o estorvo do funil, que espalhava a comida e entornava a água, sempre com os miúdos a fazerem de enfermeiros. Foi por essa altura que conheci o nome por que o chamavam: Vadio.

A passo de caracol, o Vadio foi ficando melhor, mas completamente bom nunca ficou, já que ficou manco. Quando o libertaram do funil, começou a comer melhor e, já sem talas, apesar de manquejar, era um lindo perdigueiro.

Assim nos conhecemos e assim fizemos amizade, mas só passado algum tempo é que o vosso pai me contou o que lhe tinha acontecido e me falou do seu passado, um passado mirabolante.

Pouco mais tinha que a vossa idade quando foi desquitado da mãe e levado para uma casa, onde vivia um perdigueiro velho que ele gostava de aborrecer, à falta de irmãos com quem brincar. O perdigueiro vivia miseravelmente num bidão de ferro carcomido, preso a um cadeado, enquanto ele andava à solta fazendo quanta asneira lhe passava pela cabeça curiosa e brincalhona, até que um dia o dono lhe fez uma cabana e o prendeu junto do cão velho. De todas as maneiras, com todas as forças se tentou libertar, mas acabou por se habituar e foi crescendo na ilusão dos momentos de liberdade que o dono lhe dava para o ensinar a trazer coisas às suas mãos, que ora lhe davam um afago, ora lhe davam a recompensa duma casquinha de queijo. Já mais crescido, em vez de procurar e trazer a bola de trapos, passou a procurar codornizes, o que era para ele uma festa inebriante, uma festa que lhe fazia borbulhar o sangue e enfeitiçar o nariz pelo meio das ervas à procura da pequena ave que, finalmente descoberta, lhe fugia voando, mais veloz que as suas pernas.

Com essas corridas vieram os primeiros castigos, mas também as primeiras aventuras com o perdigueiro velho, que não corria pelo campo fora e se deixava ficar estático, mostrando ao dono que sabia que a codorniz estava ali.

Iam sempre juntos depois que começou o tempo da caça. O barulho dos tiros não o assustava e o que ele mais queria era apanhar a caça que o velho abocanhava. Como era mais ligeiro e se tornou mais expedito, começou ele a ser o primeiro a apanhar as peças de caça, já que o velho perdigueiro, depois dos momentos iniciais, se arrastava muito pelos montes sem poder com as pernas.

No regresso duma caçada, o seu cansado parceiro, quan­do já ambos estavam de novo acorrentados, segredou-lhe:

– Estou acabado, já não presto para nada. Um dia destes, o Farruje vai-me abandonar num sítio qualquer ou dá-me um tiro e deixa-me a apodrecer no monte. Vai fazer de mim o mesmo que fez com o cão velho que vivia aqui no latão, quando eu era da tua idade. Se puderes, quando puderes, procura outras terras, talvez outro dono, o mundo inteiro, mesmo que deixes de caçar, mesmo que tenhas que conhecer privações e dificuldades. Se aqui ficares, serás sempre um escravo, passarás fome e sede, frio e abandono. Eu já pouco tenho a esperar, mas tu podes ainda escolher a tua vida.

O vosso pai ficou calado e não respondeu, pensando que o parceiro velho lhe dizia aquilo por despeito, por ele ter apanhado nesse dia duas perdizes antes que ele adivinhasse bem onde tinham caído. Mas, alguns dias depois, viu o velho ser levado preso a uma corda, ficando o cadeado a enferrujar e a apodrecer como o bidão. Nos dias de caça que se seguiram procurou-o entre os outros cães que trilhavam os campos, mas não mais teve dele qualquer notícia. E percebeu.

Entretanto, chegou o tempo do defeso, que para o vosso pai passaram a ser longos dias sem ver ninguém, às vezes sem comida, às vezes sem água, semanas e meses para ali arrumado a distrair-se com as moscas. E recordou o mestre desaparecido, as suas últimas palavras que de pai seriam e jamais dum invejoso.

Ia-se aproximando já o tempo de nova época de caça e o tal Gomes começou a trazer-lhe mais comida, talvez dum restaurante, porque trazia muita coisa misturada que ele não podia comer, coisas que azedavam e atraíam ratazanas que, quando percebiam que o vosso pai estava mergulhado no sono, lhe iam pilhar a gamela. Ganhou-lhes semelhante raiva que, quando podia, passava-lhes os dentes. Morriam algumas, mas logo outras vinham desse exército inesgotável que é o mundo dos ratos.

Numa noite em que o vosso pai velava, duas (duas mais...) ratas grandes vinham do pátio a correr, em saltinhos miúdos, roubar-lhe restos do gamelo e ele saltou-lhes com fúria, esquecido que estava preso ao cadeado. A violência do salto e o esticão foram tão fortes que a coleira se abriu, deixando-o solto. Deu uma volta pelo pátio e olhou para o seu sítio, pardieiro de más recordações e, sem pensar duas vezes, saiu pelo portão, que não havia nem tinha sido encomendado, para o mundo, estrada fora, em cada passo apagando o seu passado.

De terra em terra andou matando a fome a vasculhar no lixo ou salivando-se à porta de restaurantes, donde sempre saía uma alma mais caridosa ou uma cozinheira triste como ele, e dormia onde calhava, no aconchego dos matos ou no vão de qualquer escada. Fez matilha com outros desamparados, envolveu-se em bulhas e bebia a água das chuvas ou dos riachos com que deparava no seu deambular. Caminhou com carroças de ciganos e como eles foi um apátrida, até que um dia, numa terra que ainda mal conhecia, se viu na berma duma estrada cheia de trânsito. Assustado, tentou fugir, mas foi logo atropelado. Foi tudo muito rápido. Apanhou a pancada da camioneta e ficou ali no meio da estrada, atordoado, em grande sofrimento. Tinha um rasgão no lombo e as pernas partidas. Tentou arrastar-se, mas não conseguiu. Os carros que vinham apercebiam-se dele, travavam, afrouxavam, desviavam-se e seguiam, abandonando-o à sua sorte, deixando-o no seu sofrimento e desespero. E o que ele mais queria era que outro carro o esmagasse, para que o sofrimento acabasse ou que algum dos condutores parasse e lhe desse um tiro de misericórdia. Mas todos prosseguiam, desviando o olhar, e o fim demorava-se, arrastava-se...

Na confusão do trânsito, avançava a carrinha do colégio. O motorista, como todos os condutores, afrouxou para se desviar daquilo, mas alguns miúdos gritaram:

– Pare! Pare!

O motorista, surpreso, sem pensar, parou e, num instante, o vosso pai viu-se rodeado de crianças, o trânsito bloqueado já com alguns impacientes a buzinar.

Contra a vontade do motorista, pegaram no desgraçado, que já só queria era morrer, e foram logo para o veterinário. O médico, quando aquela malta lhe entrou pela porta, carregando o triste que já mal abanava a cabeça, cancelou logo as consultas todas e gritou para a enfermeira:

– Rápido, já para a sala de operações.

– E a ficha?.. – Balbuciou a moça.

– Não há tempo a perder! – e, dirigindo-se aos rapazes, perguntou enquanto o carregava para a mesa – como se chama o bicho? De quem é? Quem é que paga?

Como nenhum esperava por semelhantes perguntas, as respostas ficaram engasgadas até que foram saindo:

– O cão é vadio.

– O quê?

– Vadio...

– Não, o cão é nosso.

– Sim... Sim... É nosso. Pagamos todos.

E acenavam com a cabeça, mesmo sabendo que não tinham dinheiro nenhum. Mas foi assim que o vosso pai ficou com o nome de Vadio, que não era nome, era condição, mas o médico não tinha percebido. Foi assim...

Rangeu o portão nos gonzos.

– D. Alice, a senhora ainda aqui está?!

– Ainda! Ainda! Estou a dar de comer à cadela e já me vou embora. Olhe os pequenos... Como dormem! Atrasei-me a ouvir a história que ela lhes contou para os adormecer.

– A ouvir o quê? Oh D. Alice!... Olhe que o tempo em que os animais falavam já lá vai há muitos anos...

– Pois fique sabendo que está enganado. Todos os animais falam! É preciso é saber ouvi-los; e isso é que não é para todos. Saber ouvir os animais, mesmo quando estão calados, é uma ciência... ouviu?! Até amanhã!

E lá se foi embora a D. Alice, toda empertigada, mas com um brilho de felicidade nos olhos e a alma cheia duma estranha voz, uma daquelas vozes que nem todos conseguem escutar.

 

 
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