Era
uma vez um caçador que tinha um cão perdigueiro. Esse caçador vivia nos
arredores da cidade, numa casa que era nova, porque estava sempre por
acabar, só com massas grossas por cima dos tijolos, sem pintura nenhuma,
os portões escancarados para a rua, porque não tinha portões nenhuns:
ainda haviam de ser encomendados. As pessoas que passavam na rua olhavam
para dentro e viam bidões e tractores, alfaias e bidões, bidões e baldes
de plástico, tudo espalhado pelos cantos. Algumas ficavam a pensar que o
Gomes Ferrugem, que era assim que o caçador se chamava, trabalhava muito
e não tinha vagar para arranjar as coisas; outras diziam que o Farruje
era um bruto, um boçal, que tinha a casa transformada num pardieiro só
porque queria, porque não tinha brio nenhum. Para lá das mangueiras
estendidas pelo chão fora, quem passava via lá ao fundo uma figueira
grande, muito mais antiga que a casa do Farruje e, debaixo da sua vasta
copa, um bidão de ferro deitado e sem tampa, onde dormia o velho
perdigueiro preso a um cadeado. Ao lado do bidão estavam uns caqueiros
virados, onde o cão comia e bebia. Quando a água se virava, o pobre
ficava a seco e lá estava esquecido, sobretudo quando não era o tempo da
caça, porque o Gomes Ferrugem parava pouco por casa, ora ocupado nas
suas lavouras, ora ocupado no café do senhor Jaime.
Num
dia qualquer passaram umas pessoas que deitaram um olhar distraído para
o pátio da casa e seguiram adiante, sem se darem conta da tarefa que ele
tinha em mãos. Se tivessem deitado um olhar mais demorado e indiscreto,
teriam notado que o Farruje estava a fazer, com tábuas aproveitadas de
paletes, uma cabana para um cão, e teriam pensado que, finalmente, na
velhice, o perdigueiro teria uma casa, um abrigo, um aconchego. Mas, se
tivessem deitado um olhar mais indiscreto e demorado, teriam acabado por
notar que um cachorro perdigueiro desafiava o velho cão para a
brincadeira sob a copa imensa da figueira amiga, e que a cabana se
destinava precisamente ao inocente brincalhão.
Muitas
(ai quantas!), muitas vezes para ver bem não basta olhar. Teriam
reparado nisso e, se tivessem passado por lá no dia seguinte, teriam
visto o cachorrinho preso por um cadeado novo, perto do velho
perdigueiro, já sem vontade de brincar, aflito com a coleira,
desesperado com a corrente, enquanto o dono se demorava ocupado talvez
nas suas lavouras ou no Café do Jaime, distante dos seus ganidos, da sua
aflição.
Encafuado no seu latão, o velho perdigueiro dormitava e ia espreitando o
cachorro, vendo como ele se esgotava lutando e como, cansado, se
imobilizava, abandonando-se, de olhar estúpido, à fatalidade. Se alguém
nesse momento tivesse avançado pelo pátio, não seria recebido pelas
ladras do velho perdigueiro, que não arremeteria quanto a corrente lho
permitisse. Encafuado no seu triste cardenho, o velho cão perdia-se em
recordações, via no desespero do cachorro a sua própria e longínqua
infância e o coração mirrou-se-Ihe de pena.
Passaram-se alguns anos. Nada sabia destas coisas a Dona Alice, uma
senhora de cabelos brancos, que trabalhava a dias para a família Neves,
que tinha uma casa numa cidade do interior, muito distante da
propriedade de Gomes Ferrugem. Nada sabia mas acabou por ficar a saber
por um momento de acaso feliz.
A Dona
Alice raramente via o dono da casa, Alberto Neves, que era funcionário
dum banco e tinha uma cadela perdigueira de fina estampa, muito famosa
pelas suas qualidades. O senhor Alberto era caçador, mas durante a
semana estava sempre no trabalho, vinha sempre tarde. Embora as
obrigações da velha senhora fossem com a roupa e com a cozinha, tinha a
seu especial cargo a cadela e o cão, que agora estava preso numa jaula,
enquanto a cadela criava a sua ninhada.
Uma
tarde, assim já pelo final da tarde, a D. Alice tinha já todas as suas
tarefas cumpridas. Faltava-lhe apenas tratar da cadela. O pior é que a
cadela não tinha consciência das horas da D. Alice e estava refastelada
no meio do pátio a dar de mamar aos cachorros. Apesar de já estarem
grandinhos, de já comerem comida normal, os bacorinhos – porque pareciam
bacorinhos – não davam trombadas nas mamas da mãe, mas faziam pressão
com as patas para que o leite morno lhes escorresse pelas goelas
lambareiras. Pelos anos que tinha, a D. Alice já tinha presenciado
muitas vezes cenas daquelas mas, como gostava muito de animais,
sentou-se ali à beira a descansar, dizendo com os seus botões "depressa
acaba a jantarada e vai cada um para seu canto". Mas muito se engana
quem cuida e mais se enganou quem cuidou: a cadela, que adorava a sua
cachorrada mais que a coruja da lenda, lembrou-se de contar à sua prole
uma história de família, para ver se eles adormeciam e a deixavam ir dar
uma volta em paz.
–
Aposto que nenhum de vós sabe porque é que o vosso pai se chama Vadio! –
disse ela enquanto deitava uma olhadela. Nenhuma cauda se moveu, mas a
cachorrada, subitamente curiosa, abocanhou com maior sofreguidão os
mamilos entumecidos.
–
Pois, então, vou-vos contar, mas não quero ouvir barulho a comer. Isso é
muito feio! Prestem atenção!... Quando eu era nova e solteira, vivia
sozinha nesta casa, com todos os mimos só para mim, mas era feliz
sobretudo com as crianças, que eram estouvadas como eu. Depois, eles
foram para a escola e eu própria também comecei a ganhar juízo, a
assentar as minhas maneiras com as lições que o dono me dava. Tornei-me
adulta, mas eles nem tanto. Continuavam, volta e meia, a desafiar-me,
mas eu já não me excedia. Assim, iam para dentro mais cedo fazer os
deveres e eu ficava de atalaia à casa como qualquer cão que se preza. Um
dia não os vi e, de repente, o sossego foi quebrado por uma grande
agitação. Dentro duma grande caixa de cartão traziam o vosso pai, ainda
a dormir da anestesia, a língua toda de fora num canto do focinho, as
pernas com talas e um funil de plástico amarrado ao pescoço, que parecia
um vaso onde a cabeçorra oscilava como uma estranha flor sonâmbula.
Puseram-no na jaula vazia, com uma lâmpada de aquecimento, e lá ficou
durante muito tempo a recuperar. A mim só me era permitido cheirar e
ver. E eu via o pobre a tentar caminhar com as talas e a comer e beber
com o estorvo do funil, que espalhava a comida e entornava a água,
sempre com os miúdos a fazerem de enfermeiros. Foi por essa altura que
conheci o nome por que o chamavam: Vadio.
A
passo de caracol, o Vadio foi ficando melhor, mas completamente bom
nunca ficou, já que ficou manco. Quando o libertaram do funil, começou a
comer melhor e, já sem talas, apesar de manquejar, era um lindo
perdigueiro.
Assim
nos conhecemos e assim fizemos amizade, mas só passado algum tempo é que
o vosso pai me contou o que lhe tinha acontecido e me falou do seu
passado, um passado mirabolante.
Pouco
mais tinha que a vossa idade quando foi desquitado da mãe e levado para
uma casa, onde vivia um perdigueiro velho que ele gostava de aborrecer,
à falta de irmãos com quem brincar. O perdigueiro vivia miseravelmente
num bidão de ferro carcomido, preso a um cadeado, enquanto ele andava à
solta fazendo quanta asneira lhe passava pela cabeça curiosa e
brincalhona, até que um dia o dono lhe fez uma cabana e o prendeu junto
do cão velho. De todas as maneiras, com todas as forças se tentou
libertar, mas acabou por se habituar e foi crescendo na ilusão dos
momentos de liberdade que o dono lhe dava para o ensinar a trazer coisas
às suas mãos, que ora lhe davam um afago, ora lhe davam a recompensa
duma casquinha de queijo. Já mais crescido, em vez de procurar e trazer
a bola de trapos, passou a procurar codornizes, o que era para ele uma
festa inebriante, uma festa que lhe fazia borbulhar o sangue e
enfeitiçar o nariz pelo meio das ervas à procura da pequena ave que,
finalmente descoberta, lhe fugia voando, mais veloz que as suas pernas.
Com
essas corridas vieram os primeiros castigos, mas também as primeiras
aventuras com o perdigueiro velho, que não corria pelo campo fora e se
deixava ficar estático, mostrando ao dono que sabia que a codorniz
estava ali.
Iam
sempre juntos depois que começou o tempo da caça. O barulho dos tiros
não o assustava e o que ele mais queria era apanhar a caça que o velho
abocanhava. Como era mais ligeiro e se tornou mais expedito, começou ele
a ser o primeiro a apanhar as peças de caça, já que o velho perdigueiro,
depois dos momentos iniciais, se arrastava muito pelos montes sem poder
com as pernas.
No
regresso duma caçada, o seu cansado parceiro, quando já ambos estavam
de novo acorrentados, segredou-lhe:
–
Estou acabado, já não presto para nada. Um dia destes, o Farruje vai-me
abandonar num sítio qualquer ou dá-me um tiro e deixa-me a apodrecer no
monte. Vai fazer de mim o mesmo que fez com o cão velho que vivia aqui
no latão, quando eu era da tua idade. Se puderes, quando puderes,
procura outras terras, talvez outro dono, o mundo inteiro, mesmo que
deixes de caçar, mesmo que tenhas que conhecer privações e dificuldades.
Se aqui ficares, serás sempre um escravo, passarás fome e sede, frio e
abandono. Eu já pouco tenho a esperar, mas tu podes ainda escolher a tua
vida.
O
vosso pai ficou calado e não respondeu, pensando que o parceiro velho
lhe dizia aquilo por despeito, por ele ter apanhado nesse dia duas
perdizes antes que ele adivinhasse bem onde tinham caído. Mas, alguns
dias depois, viu o velho ser levado preso a uma corda, ficando o cadeado
a enferrujar e a apodrecer como o bidão. Nos dias de caça que se
seguiram procurou-o entre os outros cães que trilhavam os campos, mas
não mais teve dele qualquer notícia. E percebeu.
Entretanto, chegou o tempo do defeso, que para o vosso pai passaram a
ser longos dias sem ver ninguém, às vezes sem comida, às vezes sem água,
semanas e meses para ali arrumado a distrair-se com as moscas. E
recordou o mestre desaparecido, as suas últimas palavras que de pai
seriam e jamais dum invejoso.
Ia-se
aproximando já o tempo de nova época de caça e o tal Gomes começou a
trazer-lhe mais comida, talvez dum restaurante, porque trazia muita
coisa misturada que ele não podia comer, coisas que azedavam e atraíam
ratazanas que, quando percebiam que o vosso pai estava mergulhado no
sono, lhe iam pilhar a gamela. Ganhou-lhes semelhante raiva que, quando
podia, passava-lhes os dentes. Morriam algumas, mas logo outras vinham
desse exército inesgotável que é o mundo dos ratos.
Numa
noite em que o vosso pai velava, duas (duas mais...) ratas grandes
vinham do pátio a correr, em saltinhos miúdos, roubar-lhe restos do
gamelo e ele saltou-lhes com fúria, esquecido que estava preso ao
cadeado. A violência do salto e o esticão foram tão fortes que a coleira
se abriu, deixando-o solto. Deu uma volta pelo pátio e olhou para o seu
sítio, pardieiro de más recordações e, sem pensar duas vezes, saiu pelo
portão, que não havia nem tinha sido encomendado, para o mundo, estrada
fora, em cada passo apagando o seu passado.
De
terra em terra andou matando a fome a vasculhar no lixo ou salivando-se
à porta de restaurantes, donde sempre saía uma alma mais caridosa ou uma
cozinheira triste como ele, e dormia onde calhava, no aconchego dos
matos ou no vão de qualquer escada. Fez matilha com outros desamparados,
envolveu-se em bulhas e bebia a água das chuvas ou dos riachos com que
deparava no seu deambular. Caminhou com carroças de ciganos e como eles
foi um apátrida, até que um dia, numa terra que ainda mal conhecia, se
viu na berma duma estrada cheia de trânsito. Assustado, tentou fugir,
mas foi logo atropelado. Foi tudo muito rápido. Apanhou a pancada da
camioneta e ficou ali no meio da estrada, atordoado, em grande
sofrimento. Tinha um rasgão no lombo e as pernas partidas. Tentou
arrastar-se, mas não conseguiu. Os carros que vinham apercebiam-se dele,
travavam, afrouxavam, desviavam-se e seguiam, abandonando-o à sua sorte,
deixando-o no seu sofrimento e desespero. E o que ele mais queria era
que outro carro o esmagasse, para que o sofrimento acabasse ou que algum
dos condutores parasse e lhe desse um tiro de misericórdia. Mas todos
prosseguiam, desviando o olhar, e o fim demorava-se, arrastava-se...
Na
confusão do trânsito, avançava a carrinha do colégio. O motorista, como
todos os condutores, afrouxou para se desviar daquilo, mas alguns miúdos
gritaram:
–
Pare! Pare!
O
motorista, surpreso, sem pensar, parou e, num instante, o vosso pai
viu-se rodeado de crianças, o trânsito bloqueado já com alguns
impacientes a buzinar.
Contra
a vontade do motorista, pegaram no desgraçado, que já só queria era
morrer, e foram logo para o veterinário. O médico, quando aquela malta
lhe entrou pela porta, carregando o triste que já mal abanava a cabeça,
cancelou logo as consultas todas e gritou para a enfermeira:
–
Rápido, já para a sala de operações.
– E a
ficha?.. – Balbuciou a moça.
– Não
há tempo a perder! – e, dirigindo-se aos rapazes, perguntou enquanto o
carregava para a mesa – como se chama o bicho? De quem é? Quem é que
paga?
Como
nenhum esperava por semelhantes perguntas, as respostas ficaram
engasgadas até que foram saindo:
– O
cão é vadio.
– O
quê?
–
Vadio...
– Não,
o cão é nosso.
–
Sim... Sim... É nosso. Pagamos todos.
E
acenavam com a cabeça, mesmo sabendo que não tinham dinheiro nenhum. Mas
foi assim que o vosso pai ficou com o nome de Vadio, que não era nome,
era condição, mas o médico não tinha percebido. Foi assim...
Rangeu
o portão nos gonzos.
– D.
Alice, a senhora ainda aqui está?!
–
Ainda! Ainda! Estou a dar de comer à cadela e já me vou embora. Olhe os
pequenos... Como dormem! Atrasei-me a ouvir a história que ela lhes
contou para os adormecer.
– A
ouvir o quê? Oh D. Alice!... Olhe que o tempo em que os animais falavam
já lá vai há muitos anos...
– Pois
fique sabendo que está enganado. Todos os animais falam! É preciso é
saber ouvi-los; e isso é que não é para todos. Saber ouvir os animais,
mesmo quando estão calados, é uma ciência... ouviu?! Até amanhã!
E lá
se foi embora a D. Alice, toda empertigada, mas com um brilho de
felicidade nos olhos e a alma cheia duma estranha voz, uma daquelas
vozes que nem todos conseguem escutar.
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