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Sérgio Paulo Silva, Espreita aqui, 1ª ed., Estarreja, C.M.E., 2014, 80 pp.

 
   

Festa que se prezasse, borga tesa, não dispensava a participação de cantadores ao desafio que, no geral, não eram conhecidos por terem travão na língua... À festa do S. Paio, a grande festa dos povos do Baixo-Vouga, acorriam cantadores e cantadeiras de toda a parte que animavam as viagens da travessia e o arraial, gente que burlava a noite em rusgas, onde a música e o repentismo não conheciam folga. Como o velho Marques Sardinha, a Barbuda, a Guida Rei ou o cavador da Bairrada, Manuel Alves (quem não conhece Ó que Belas Melancias...?). No alto Minho ainda trinam esses mestres do improviso mas aqui, tendo desaparecido, não é de estranhar a popularidade de Quim Barreiros, da Rosinha ou do Canário & Amigos. Muitas das mensagens que estão nos painéis estão nas cantigas desta tropa, só que desenhadas e pintadas, por vezes com requintes de pinturas naïf que bem poderiam ter brotado dos pincéis de Albino José Moreira, Ivone, Eufigénio ou outros ilustres herdeiros do Douanier Rousseau que Picasso tanto apreciava.

Não tendo aprofundado, creio que, entre os pintores dos últimos anos, apenas o José Manuel Oliveira se entrega à pintura e lamento que os demais dela não tivessem feito também ocupação, mesmo que secundária nas suas vidas, paixão de serão ou de aborrecidos domingos que fosse.

Acontecia que, de uns anos para os outros, os temas eram repetidos. Na mesma embarcação, a testemunhar pelas matrículas. Uma, duas vezes... O tema do galo conheceu (pelo menos!) seis versões. É obra! Não me fujas em maré de festa: a coisa estava bem apanhada, sim senhor.

A festa seria a do S. Paio, muito provavelmente. E bem conhecemos o aforismo em voga nos velhos tempos: quando o pobre come galinha, um dos dois está doente... Portanto só para parturiente combalida ou festa rija se sacrificava o cantador que não sendo devoto e vendo o caso mal parado (talvez ainda não tivesse escrito o Engraçado Testamento do Galo, que se haveria de vender a 1$00 nos arraiais da Sr.ª da Saúde, na Sr.ª da Alegria, nas areias do S. Paio...) se punha a salvo, para onde a patroa não lhe botasse a manápula... Repetiam-se, porque lhes tinham achado graça, porque o poviléu tinha gostado e, quando se gosta, repete-se o prato, por a ideia não ajudar ou vá-se lá saber porquê. E, se o tema era recorrente, restava apreciar o novo desenho, a destreza do pintor o que já não era pouco e bico calado: ai não tinhas dado por ela? Então vê lá se agora me abres esses olhos antes de ires por aí à róla a olhar para o que não deves...

O dramático disto tudo é que, desaparecendo os barcos, desaparecem as pinturas e ninguém se interessa por espreitar para um quadro vazio.
     

À Ria restam ainda os derradeiros moliceiros e como a malícia e a brejeirice são um poço sem fundo, poder-se-ão ainda vir a conhecer novos momentos de excelência para o apetite voyeur. Se eu tivesse um moliceiro em vez da bateira com que às vezes vou à pesca, haveria de mandar pintar o mais belo dos piropos (olá, minha estrêla, queres cometa?), talvez usasse a malícia do meu colega de liceu (o seu melro já tem lã?), e haveria de me lembrar de mim mesmo (p'ra burro velho erva tenra) e duns bonecos que eu cá sei que dão sempre brinde quando se puxa o cordelinho...

De tudo vai, entretanto, ficando a memória resguardada. O Museu Marítimo de Ílhavo, Ana Maria Lopes, Clara Sarmento, e tantos outros por aí espalhados, deram contributos preciosos. A designer Andreia Figueiredo alinhou nesse exército fazendo uma exposição no Museu da Cidade de Aveiro. Dei por ela quando um acaso me fez conhecer o seu cartaz, que achei uma maravilha, e obviamente fiquei-me a roer por não ter sabido atempadamente do evento. Não sei o que mostrou mas imagino, com facilidade, que não a tenha sentido nem completa, nem definitiva. Os que amam a Ria e as nossas coisas têm, no eterno ciclo das marés, o ensinamento materno e sabem como o seu tentacular leito é inconstante. Sim, vamos esperar que a Fénix renasça das cinzas, neste ou em qualquer ano do porvir. Entretanto fica uma amostra. Só para provar. Para saciar maiores apetites não sou eu que tenho mesa cabonde.