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Sérgio Paulo Silva, Burro de Carga, 1ª ed., Estarreja, C.M.E., 2014, 20 pp.

 

Ouvi dizer que a única obra humana perceptível da Lua é a grande Muralha da China. Tudo o mais se esvai na distância...

Se tivéssemos uma escada de caracol (não, não poderia ser como a do David Mourão-Ferreira: é uma escada em caracol / e que não tem corrimão / vai a caminho do sol / e nunca passa do chão) que nos permitisse ir subindo, haveria um momento em que os concelhos de Estarreja e da Murtosa se misturariam no olhar.

Depois, mais alguns degraus, todo o Baixo Vouga seria uma mancha homogénea até se ir perdendo a origem do rio, lá pelas Terras do Demo, que igualmente nos fugiriam ao olhar. Ver de longe pode significar deixar de ver. A mim dá-me jeito não subir mais alto que a altura dum mastro de mercantel (acima, acima, gajeiro...), ter um olhar mais resvés sobre o meu meio. Claro, sem ignorar que mesmo a grande Muralha da China desaparece quando se sobe a outras luas.


Ao longo de toda a história da terra e da vida do bicho-homem, os rios foram sempre a grande estrada da Vida. Estradas maiores ou menores, calmas ou inseminadas pelo diabo, estreitas ou largas, foram sempre o embrião, o chão das primeiras raízes. E ainda é assim, sobretudo na América do Sul, à sombra do Amazonas ou do Orinoco, onde tribos de índios mal lograram romper a casca dos ovos postos por Adão e por Eva noutros imaginários do planeta. A história do Nilo ou do Volga, do Mississípi ou do Douro, mostram-nos isso à saciedade, gerando povoados, cidades, nações. Mesmo outros rios, não navegáveis, de diminuto caudal, operaram esse prodígio.

No nosso Distrito tivemos por bênção o Vouga. Muitos desses instantes iniciais de vida, como acontece pelo mundo fora em tantos rios, nunca cortaram o cordão umbilical. E eu dou por mim a soletrar palavras afectivas que carrego desde a infância da minha geografia sentimental: Travanca do Vouga, Macinhata do Vouga, Sever do Vouga, Pessegueiro do Vouga...

Se dúvidas houvesse daquela antiguidade, aí estavam, p. ex., as gravuras do Côa para nos falarem desse passado distante. Prodígio que este nosso rio jamais poderia ter urdido, já que quase sempre a sua cama foi mole para terminar num mar de lama. Contudo, onde a memória já não alcança, desde que um homem viu um tronco de árvore a boiar e outro o escavou, fazendo a primeira piroga, a conjugação de muitos acasos permitiram ao Vouga urdir a mais bela embarcação do país e uma das mais esforçadas, para além de ter estado na origem dessa outra tão emblemática embarcação que é o Varino.

Se recuarmos no tempo e mergulharmos muito para além dos primeiros registos fotográficos, vamos encontrar apenas caminhos e veredas, povoações ribeirinhas que partilhavam a vida com os animais e um mar de necessidades que constantemente desafiavam o poder do engenho humano. Para o exemplificar, poderíamos chamar a terreiro esse barco heróico que as gentes do Douro fizeram, o Rabelo. Mas é suficiente o que nos cabe no olhar... Nenhuma das embarcações características da Ria de Aveiro foi criada para recreio. Todas, desde as Chatas, da Pateira de Fermentelos, até ao Moliceiro, todas foram criadas para o trabalho e todas perfeita e sucessivamente adaptadas ao meio.

Qualquer incêndio começa sempre por um pequeno fogo. Um casal criou filhos crescei e multiplicai-vos e estes outros e mais outros. As diminutas povoações foram aumentando as necessidades de suporte às suas vidas, que se foram agigantando, e o engenho humano a tudo devia dar resposta.

As mais antigas imagens que conhecemos da Praia da Torreira ou da Costa Nova (uma imagem vale sempre mais que mil palavras) mostram-nos lugares de poucas casas, edificadas na proximidade da água, construções precárias, de madeira: os palheiros. Ao longo dos anos e à medida que as pessoas se fixavam e multiplicavam, também se foi modificando a geografia. O Vouga que, durante séculos, desaguava em mão espalmada, ganhou nova vida com o Rio Novo do Príncipe e a abertura da Barra, um pouco como a conhecemos hoje. Eram então profundas as águas e os rios navegáveis, mesmo os mais modestos, como o Antuã, ou os canais que serviam as povoações ribeirinhas, os esteiros. Às vezes ponho-me a pensar como um país tão pequeno, durante séculos habitado por gente iletrada, vivendo da agricultura, da pastorícia e de alguma pesca costeira, foi capaz de criar, entre tantas outras coisas, várias raças de cães únicas no mundo. O Castro Laboreiro, o Serra da Estrela, o Perdigueiro, o Rafeiro Alentejano, entre outras. E tudo apenas e só com o seu saber telúrico, cruzando os animais de que precisavam, observando as características, bom com bom, aperfeiçoando, melhorando sempre através de gerações, sem livros de registos, clubes de raça, sem provas e juízes carregados de sapiência para apontar caminhos aos labregos boçais. E penso que, com os barcos da Ria, a música foi exactamente a mesma: modificando sempre, adaptando sempre as embarcações aos ventos e às marés, à profundidade e às realidades das serventias.

Os palheiros eram construídos com madeira, material que resistia pouco à passagem dos anos e menos ainda aos incêndios, se algum braseiro lhes cheirava os óleos com que os tentavam tornar mais duradouros. E eram construídos com madeira, porque a região foi sempre muito pobre em materiais de construção. Não havia pedra e o tijolo sonhava ainda com melhores dias de disponibilidade e sobretudo de preço.
 

Centro de Avanca. Passavam carroças onde hoje passam milhares de carros.


Por esses anos iam-se rasgando os caminhos que, contudo, permaneciam vocacionados para os transportes movidos por gado, bovino ou cavalar, as carroças. Havia o comboio mas, mercadorias que deixava ou levava, tinham apenas as Estações como centro e os preços não se ajustavam às coisas menores e aos dinheiros que ninguém tinha.

Datam desses anos a construção de casas e de muros com adobes de saibro (já o disse noutro trabalho que, afamados, eram os adobes de Anadia) que perduraram nos anos e que ainda hoje se podem ver por todos os cantos de todos os nossos concelhos. E o transporte desses pesados blocos era feito pelo burro de carga que era o barco mercantel, que transportava igualmente as tais coisas menores, lenha, por exemplo. Não havia gás em botijas e a confecção de alimentos fazia-se fosse na casa mais pobre, fosse na mais rica com carvão e, sobretudo, com lenha. Na nossa imaginação de agora podem caber uma infinidade dessas coisas: as cebolas, que as gentes de Veiros iam vender para Aveiro, o buinho que nos chegava da Golegã...

Eram então pujantes as salinas de Aveiro e as muitas toneladas de sal aí produzidas iam para todo o lado, fosse pelos armazéns dos canais de Aveiro, fosse pelos de Estarreja ou do Carregal, em Ovar. E o seu transporte era feito pelo burro de carga que assim ganhou o nome por que também foi conhecido: barco saleiro.

Um filme de um passeio-convívio, feito em 1930 por jornalistas do "Diário de Notícias", mostra-nos o nosso barco a navegar no Vouga, junto à ponte de Pessegueiro...

O Mercantel era igualmente a embarcação ideal para o transporte de pessoas, pela sua dimensão, pela sua estabilidade que inspirava confiança e dava aos ocupantes melhor comodidade que o seu próximo, o moliceiro.

Romeiros do S. Paio. Mais de 50 pessoas a bordo...

Nas fotografias de antigas romagens ao S. Paio vêem-se, claro que se vêem, moliceiros com romeiros, mas era o Mercantel o eleito, o que ia sempre apinhado até já não haver o tal lugar para mais um. Assim também na travessia da Ria, entre os cais da Béstida e a Rampa, na Torreira, enquanto não foi construída a Ponte da Varela. Sobre dois mercantéis, emparceirados, foi engendrado um sólido estrado de grosso tabuado que suportava o peso de pessoas e viaturas, por vezes camionetas já de considerável dimensão. Os carros passavam do cais para o sólido estrado, em manobra que requeria perícia por ser sempre arriscada, mesmo que a ondulação não fosse forte, por dois tabuões de rijo eucalipto que se aplicavam no momento. A estrutura era rebocada por uma lancha que funcionava sozinha na passagem, quando não havia carros para passar e / ou o número de passageiros o não justificasse.

Nos meses de verão, quando tinha a família na Torreira e quando se atrasava na sua vida, meu pai, por vezes já com a noite fechada, por sinais de luzes requeria o serviço de travessia, a solo, que, obviamente, lhe saía onerosa. Essa brincadeira só era possível porque a Ria então, mesmo na maré baixa, tinha profundidade suficiente para uma navegação que se fazia sem sondas, sem o risco de encalhar, o que hoje desespera qualquer bateira de pesca ou de recreio.

A inauguração da Ponte da Varela foi em 1964, ano da morte anunciada do burro de carga. Por esses anos há muito já que as estradas estavam construídas, em paralelos, vulgares no dia a dia das pessoas e no tráfego que ia aumentando. Tinham surgido as primeiras empresas de camionagem, de grande comodidade, como a Rodoviária da Murtosa ou os Transportes J. Amaral, que facilmente colocavam qualquer mercadoria em qualquer sítio. Os pesados adobes foram substituídos pelos tijolos, mais leves, de mais fácil manejo e que permitiam a construção em altura. Nas casas iam aparecendo fogões a gás que dispensavam a lenha. O transporte automóvel fazia-se agora pela ponte da Varela pessoas, mercadorias... e a Rodoviária da Murtosa, que antes chegava apenas à loja da Alcina, na Béstida, transportava agora comodamente, até à Torreira, as pessoas e os seus carregos, fossem malas, fossem canastras de peixeiras.

Uma das primeiras camionetas da frota de carga TJA.

Nas lonjuras lamacentas da cidade dos ovos-moles as salinas estavam em declínio produzindo, de ano para ano, cada vez menos sal... Sem futuro à vista, a emigração para os Estados Unidos, para o Canadá ou Venezuela, aceleraram os abates e, desprovido da graciosidade dos moliceiros que o turismo ainda incentivava, o burro de carga, que tantos e tão variados serviços prestou às populações da Ria e do Vouga por muitas gerações, expirou.

Neste avançar pelo século XXI sobrevivem ainda, pela carolice de particulares ou com dinheiros das Câmaras, alguns barcos moliceiros. Do valoroso barco saleiro, de meu conhecimento, há dois, marrecos e amestrados, que entretêm os turistas nas águas recolhidas de Aveiro, e outro que navega ainda nos olhares dos que visitam o Museu Marítimo de Ílhavo. Perduram ainda em miniaturas artesanais, que decoram casas de praia, nalguns filmes, e em fotografias que o resguardaram no seu habitat, elas próprias amarelecendo e degradando-se como a memória de fundo raso, como é esta minha que por vezes não cuida do quanto é perecível.

A morte de um gigante. Ribeira da Aldeia, em Pardilhó.