Ouvi dizer que a única obra humana perceptível da Lua é a grande
Muralha da China. Tudo o mais se esvai na distância...
Se tivéssemos uma escada de caracol (não, não poderia ser como a do
David Mourão-Ferreira: é uma escada em caracol / e que não tem
corrimão / vai a caminho do sol / e nunca passa do chão) que nos
permitisse ir subindo, haveria um momento em que os concelhos de
Estarreja e da Murtosa se misturariam no olhar.
Depois, mais alguns degraus, todo o Baixo Vouga seria uma mancha
homogénea até se
ir perdendo a origem do rio, lá pelas Terras do Demo, que igualmente nos
fugiriam ao olhar. Ver de longe pode significar deixar de ver. A mim
dá-me jeito não subir mais alto que a altura dum mastro de mercantel (acima,
acima, gajeiro...), ter um olhar mais resvés sobre o meu meio.
Claro, sem ignorar que mesmo a grande Muralha da China desaparece quando
se sobe a outras luas.
Ao longo de toda a história da terra e da vida do bicho-homem, os rios
foram sempre a grande estrada da Vida. Estradas maiores ou menores,
calmas ou inseminadas pelo diabo, estreitas ou largas, foram sempre o
embrião, o chão das primeiras raízes. E ainda é assim,
sobretudo na América do Sul, à sombra do Amazonas ou do Orinoco, onde
tribos de índios mal lograram romper a casca dos ovos postos por Adão e
por Eva noutros imaginários do planeta. A história do Nilo
ou do Volga, do Mississípi ou do Douro,
mostram-nos isso à saciedade, gerando povoados, cidades, nações. Mesmo
outros rios, não navegáveis, de diminuto caudal, operaram esse prodígio.
No nosso Distrito tivemos por bênção o Vouga. Muitos desses instantes
iniciais de vida, como acontece pelo mundo fora em tantos rios, nunca
cortaram o cordão umbilical. E eu dou por mim a soletrar palavras
afectivas que carrego desde a infância da minha geografia sentimental:
Travanca do Vouga, Macinhata do Vouga, Sever do Vouga, Pessegueiro do
Vouga...
Se dúvidas houvesse daquela antiguidade, aí estavam, p. ex., as gravuras
do Côa para nos falarem desse passado distante. Prodígio que este nosso
rio jamais poderia ter urdido, já que quase sempre a sua cama foi mole
para terminar num mar de lama. Contudo, onde a memória já não alcança,
desde que um homem viu um tronco de árvore a boiar e outro o escavou,
fazendo a primeira piroga, a conjugação de muitos acasos permitiram ao
Vouga urdir a mais bela embarcação do país e uma das mais esforçadas,
para além de ter estado na origem dessa outra tão emblemática embarcação
que é o Varino.
Se recuarmos no tempo e mergulharmos muito para além dos primeiros
registos fotográficos, vamos encontrar apenas caminhos e veredas,
povoações ribeirinhas que partilhavam a vida com os animais e um mar de
necessidades que constantemente desafiavam o poder do engenho humano.
Para o exemplificar, poderíamos
chamar a terreiro esse barco heróico que as gentes do Douro fizeram, o
Rabelo. Mas é suficiente o que nos cabe no olhar... Nenhuma
das embarcações características da Ria de Aveiro foi criada para
recreio. Todas, desde as Chatas, da Pateira de Fermentelos, até ao
Moliceiro, todas foram criadas para o trabalho e todas perfeita e
sucessivamente adaptadas ao meio.
Qualquer incêndio começa sempre por um pequeno fogo. Um casal criou
filhos
–
crescei e multiplicai-vos
– e estes outros e mais outros. As diminutas
povoações foram aumentando as necessidades de suporte às suas vidas, que
se foram agigantando, e o engenho humano a tudo devia dar resposta.
As mais antigas imagens que conhecemos
da Praia da Torreira ou da Costa Nova (uma imagem vale sempre mais que
mil palavras) mostram-nos lugares de poucas casas, edificadas na
proximidade da água, construções precárias, de madeira: os palheiros. Ao
longo dos anos e à medida que as pessoas se fixavam e multiplicavam,
também se foi modificando a geografia. O Vouga que, durante séculos,
desaguava em mão espalmada, ganhou nova vida com o Rio Novo do Príncipe
e a abertura da Barra, um pouco como a conhecemos
hoje. Eram então profundas as águas e os rios navegáveis, mesmo os mais
modestos,
como o Antuã, ou os canais que serviam
as povoações ribeirinhas, os esteiros. Às
vezes ponho-me a pensar como um país tão pequeno, durante séculos
habitado por gente iletrada, vivendo da agricultura, da pastorícia e de
alguma pesca costeira, foi capaz de criar, entre tantas outras coisas,
várias raças de cães únicas no mundo. O Castro Laboreiro, o Serra da
Estrela, o Perdigueiro, o Rafeiro Alentejano, entre outras. E tudo
apenas e só com o seu saber telúrico, cruzando os animais de que
precisavam, observando as características, bom
com bom, aperfeiçoando, melhorando sempre através de gerações, sem
livros de registos, clubes de raça, sem provas e juízes carregados de
sapiência para apontar caminhos aos labregos boçais. E penso que, com os
barcos da Ria, a música foi exactamente a mesma: modificando sempre,
adaptando sempre as embarcações aos ventos e às marés, à profundidade e
às realidades das serventias.
Os palheiros eram construídos com madeira, material que resistia pouco à
passagem dos anos
e menos ainda aos incêndios, se algum braseiro
lhes cheirava os óleos com que os tentavam
tornar mais duradouros. E eram construídos com madeira, porque a região
foi sempre muito pobre em materiais de construção. Não havia pedra e o
tijolo sonhava ainda com melhores dias de disponibilidade e sobretudo de
preço.
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Centro de Avanca. Passavam carroças onde hoje passam milhares de
carros. |
Por esses anos iam-se rasgando os caminhos que, contudo, permaneciam
vocacionados para os transportes movidos por gado, bovino ou cavalar, as
carroças. Havia o comboio mas, mercadorias que deixava ou levava, tinham
apenas as Estações como centro e os preços não se ajustavam às coisas
menores e aos dinheiros que ninguém tinha.
Datam desses anos a construção de casas e de muros com adobes de saibro
(já o disse noutro trabalho que, afamados, eram os adobes de Anadia) que
perduraram nos anos e que ainda hoje se podem ver por todos os cantos de
todos os nossos concelhos. E o transporte desses pesados blocos era
feito pelo burro de carga que era o
barco mercantel, que transportava igualmente
as tais coisas menores, lenha, por exemplo. Não
havia gás em botijas e a confecção de alimentos fazia-se
– fosse na casa
mais pobre, fosse na mais
rica
– com carvão e, sobretudo, com lenha. Na
nossa imaginação de agora podem caber uma infinidade dessas coisas: as
cebolas, que as gentes de Veiros iam vender para Aveiro, o buinho que
nos chegava da Golegã...
Eram então pujantes as salinas de Aveiro e as muitas toneladas de sal aí
produzidas iam para todo o lado, fosse pelos armazéns dos canais de
Aveiro, fosse pelos de Estarreja ou do Carregal, em Ovar. E o seu
transporte era feito pelo burro de carga que assim ganhou o nome por que
também foi conhecido: barco saleiro.
Um filme de um passeio-convívio, feito em 1930 por jornalistas do "Diário
de Notícias", mostra-nos o nosso barco a navegar no Vouga, junto à ponte de
Pessegueiro...
O Mercantel era igualmente a embarcação ideal para o transporte de
pessoas, pela sua dimensão,
pela sua estabilidade que inspirava confiança e dava aos ocupantes
melhor comodidade que o seu próximo, o moliceiro.
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Romeiros do S. Paio. Mais de 50 pessoas a bordo... |
Nas fotografias de
antigas romagens ao S. Paio vêem-se, claro que se vêem, moliceiros com
romeiros, mas era o Mercantel o eleito, o que ia sempre apinhado até já
não haver o tal lugar para mais um. Assim também na travessia da Ria,
entre os cais da Béstida e a Rampa, na Torreira, enquanto não foi
construída a Ponte da Varela. Sobre dois mercantéis, emparceirados, foi
engendrado um sólido estrado de grosso tabuado que suportava o
peso de pessoas e viaturas, por vezes camionetas
já de considerável dimensão.
Os carros passavam do cais para o sólido
estrado, em manobra que requeria perícia por ser sempre arriscada, mesmo
que a ondulação não fosse forte, por dois tabuões de rijo eucalipto que
se aplicavam no momento. A estrutura era rebocada por uma lancha que
funcionava sozinha na passagem, quando não havia carros para passar e / ou
o número de passageiros o não justificasse.
Nos meses de verão, quando tinha a família na Torreira e quando se
atrasava na sua vida, meu pai, por vezes já com a noite fechada, por
sinais de luzes requeria o serviço de travessia, a solo, que,
obviamente,
lhe saía onerosa. Essa brincadeira só era possível porque a Ria então,
mesmo na maré baixa, tinha profundidade suficiente para uma navegação
que se fazia sem sondas, sem o risco de encalhar, o que hoje desespera
qualquer bateira de pesca ou de recreio.
A inauguração da Ponte da Varela foi em 1964, ano da morte anunciada do
burro de carga. Por esses anos há muito já que as estradas estavam
construídas, em paralelos, vulgares no dia a dia das pessoas e no
tráfego que ia aumentando. Tinham surgido as primeiras empresas de
camionagem, de grande comodidade, como a Rodoviária da Murtosa ou os
Transportes J. Amaral, que facilmente colocavam qualquer mercadoria em
qualquer sítio. Os pesados adobes foram substituídos pelos tijolos, mais
leves, de mais fácil manejo e que permitiam a construção em altura. Nas
casas iam aparecendo fogões a gás que dispensavam a lenha. O transporte
automóvel fazia-se agora pela ponte da Varela
– pessoas, mercadorias...
– e a Rodoviária da Murtosa, que antes chegava apenas à loja da Alcina,
na Béstida, transportava agora comodamente, até à Torreira, as pessoas e
os seus carregos, fossem malas, fossem canastras de peixeiras.
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Uma
das primeiras camionetas da frota de carga TJA. |
Nas lonjuras lamacentas da cidade dos ovos-moles as salinas estavam em
declínio produzindo, de ano para ano, cada vez menos sal... Sem futuro à
vista, a emigração para os Estados Unidos, para o Canadá ou Venezuela, aceleraram os
abates e, desprovido da graciosidade dos moliceiros que o turismo ainda
incentivava, o burro de carga, que tantos e tão variados serviços
prestou às populações da Ria e do Vouga por muitas gerações, expirou.
Neste avançar pelo século XXI sobrevivem ainda, pela carolice de
particulares ou com dinheiros das Câmaras, alguns barcos moliceiros. Do
valoroso barco saleiro, de meu conhecimento, há dois, marrecos e
amestrados, que entretêm os turistas nas águas recolhidas de Aveiro, e
outro que navega ainda nos olhares dos que visitam o Museu Marítimo de
Ílhavo. Perduram ainda em miniaturas artesanais, que decoram casas de
praia, nalguns filmes, e em fotografias que o resguardaram no seu
habitat, elas próprias amarelecendo e degradando-se como a memória de
fundo raso, como é esta minha que por vezes não cuida do quanto é
perecível.
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A
morte de um gigante. Ribeira da Aldeia, em Pardilhó. |
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