Acesso à hierarquia superior.

Documentos

A PROCISSAO DE SANTA JOANNA

(NOTAS SOBRE O JOELHO)

Dia alegre de sol. De todas as bandas, por estas estradas claras que desembocam na pittoresca cidade do Vouga, – a Veneza lusitana, chamada, – ranchos de aldeãos em trajos domingueiros, afluem em ondas, logo de manhãsinha, espalhando-se pelos quatro cantos da cidade, enquanto a procissão não sae p'r'á rua.

Aveiro, hoje, tem um aspecto desusado de gala. Pelas janellas, rostos sorridentes inclinam-se; ouve-se um chalrar estridulo; anda no ar uma musica festiva, um zumbido de romaria, que parece ennovelar-se n'esta atmosphera translucida e azul, fazendo-nos correr nas veias, mais apressado e fogoso, um sangue rutilo de folgança jovial.

Borda do rio abaixo, até ás Pyramides, quer pelo lado da Ponte da Dobadoira quer pelo Rocio inundado de sol, grupos passeiam, os que não couberam em Jesus, na antiquíssima egreja rendilhada, e que por este calor, que parece sahir de um forno a arder, preferiram a alegre brisa que vem do mar e que refresca o corpo como um suave banho de delicia.

E’ curiosissima esta cídadesinha clara, por um dia d'estes. Aproveito a occasião da festa de egreja para vêr aspectos. As marinhas de sal, em quadrados regulares, luzem ao sol, separadas da estrada que vae dar à Gafanha e d'ahí á Barra, por um renque de tramagueiras verde-escuras. Dizem que ha abundancia de sal, este anno, – que me parece de bom augurio para este povo morno, que só é expansivo em familia, ou quando diz mal da vida alheia.

Parece um grande taboleiro de jogo, esta vasta extensão das marinhas que se desenrolam a perder de vista, com reflexos que cegam. E’ preciso attender bem ás leis do equilíbrio para se conseguir andar pelas Iinhas divisorias. Venho d'ali encantado; e, se não fosse o dever profissional, eu seguiria de bom grado estrada adiante, n'aquelle silencio do dia alto, até á Barra, que fica a uns cinco kilometros, Mas nao ha remedio senão retroceder. Volto outra vez pelas Pyramides, que ficam como sentinellas á entrada de um lago onde a ria desemboca, espraiando-se, ramificando-se em dois braços – um que vae desaguar ali perto, ao mar; o outro que é a continuação do Vouga lá p'ra cima, p'rás serranias da Beira Alta. Demoro-me ainda um pouco sobre a Ponte da Dobadoira, assim chamada porque a ria forma debaixo do arco redemoinhos perigosos, por onde os barcos devem passar com o maximo cuidado, p'ra não correrem o risco de ir ao fundo. Este ponto é realmente bonito. Domina-se todo o bairro novo do Matadouro, com a capella dos Santos Martyres ao fundo, no canto de lá, encostada aos arvoredos; e na margem d'esse braço da ria, que se mette pelas terras dentro, um moinho sem velas, parado e morto, estende no ar os braços descarnados, n'uma desolação de silencio.

Dou uma pequena volta á cidade, pela Corredoira acima, até Jesus. Suffoca-se. As ruas estão cheias de gente. Há um rumor longinquo de povo que ondula, n’uma ancia de arranjar um bom lugar á frente, para vêr melhor. A procissão este anno promette ser luzida. Melhor. Não perdi o meu tempo.

Que, de resto, eu não o tinha perdido e considero-o até já muito ganho pelo que tinha visto de pittoresco até est’hora.

Silencio. Parece que começam a sahir as irmandades porque vejo cabeças debruçadas para a frente, na rua, em todo o percurso, e pela janellas, d'onde pendem colgaduras de damasco, ricas e lindas, em verdade. Ageito-me um pouco mais para vêr tambem; acotovelo os meus visinhos, que não se impacientam. Abro um sorriso agradecido.

Já vejo, já vejo. Effectivamente, a procissão começa a desfilar. Não posso fixar precisamente a ordem porque vae. É imponente, é o que sei dizer. Fluctuam ao vento da tarde as opas das confrarias e abrem claros na multidão as sobrepelizes dos padres. D'algumas janellas atiram flores. E’ o pallio que passa, agitando os seus doirados que reluzem. O povo ajoelha, reverente e contricto. Ergo então um pouco a cabeça e tiro para a minha vista um aspecto bizarro de toda aquella gente com a espinha dobrada e olhos postos no chão, como se o resplendor da mitra e da custodia a cegasse.

E’ então que consigo descobrir ao longe o andor de Santa Joanna princeza, ondulando gravemente, com a grande capa de setim cahindo para traz, em longas pregas. Faz-se um movimento. Vae longe o pallio. Ha um desabafo; começa-se a conversar em volta de mim. Falla-se muito no sr. Bispo-conde que veio de Coimbra de proposito assistir aos festejos.

– Aquillo é que é um pedaço d’um homem! Diz ao meu lado uma mulhersinha, com um ar unctuoso de quem lambe os beiços.

E é. Vejo-o lá adiante, dominando toda aquella maré cheia de cabeças.

Mas a palestra continua, animada, como se estivéssemos em família, á meza, depois de comido o primeiro prato regado pelo primeiro copo de bom vinho. A festa da natureza, cá fóra, tambem era bem bonita e com um leve toque religioso que descia da atmosphera, onde pareciam correr fumos de incenso.

A procissão vae já a dobrar a esquina para a rua Direita; já se não vê o andor da Santa, nem o pallio; apenas as sobrepelizes dos padres abrem claros na multidão e as opas das confrarias fluctuam.

Nas janellas, conversa-se, ri-se. O povo começa a agitar-se p’ra seguir o radiante cortejo. Deixo o meu poiso. Estou a suar em bica.

Linda coisa, palavra, esta procissão annual. Trago impressões de um grato encanto. Em verdade, penitenceio-me aqui publicamente por ter suspeitado um lado peior á festa. Pois, não senhores; pittoresca e brilhante. Aveiro fica com um logar aparte no meu coração agradecido.

*

A’ noite, muito á pressa, vejo o primeiro aspecto fantastico da illuminação veneziana, que se reflecte no canal cheio de treva, como a bocca aberta de um abysmo. E’ estonteante. Dá vontade de perder o comboio e ficar aqui. Ouço ao longe as primeiras notas da musica que vae começar a percorrer as ruas. Pula-me a alma.

…E metto pelo Côjo, direito á estação, sentindo ainda, muito longinqua, vibrante como uma ironia, a phylarmonica que ataca valentemente os preludios de uma marcha.

Em Aveiro, aos 17 de maio.

TOBIAS

In semanário ilustrado “Branco e Negro”, n.º 7, Ano I, Lisboa, 24 de Maio de 1896.

 

  22-02-2014

 

Página inicial

 

Página anterior

Página seguinte