A Nudez da Alma

Ao Senhor Bernardo

Chamava-se Bernardo. Apelidos? Não tinha. Nunca os ouvi. Cartões que o identificassem? Não tinha. O que o identificava era o cheiro característico do cigarro que se espalhava pela casa toda. Eu gostava de o ver enrolar pacientemente os cigarros e depois deitava a língua de fora, lambia a mortalha e colava-a. Estava pronto. Antes de começar a fumar, tossia sempre. Todo ele cheirava ao cigarro, do boné às botas.

Quando às três horas tocava à campainha, já sabíamos: era O Senhor Bernardo. Dantes, dávamos a honra de Senhor e Senhora, até aos mais humildes, desde que fossem mais velhos. Entrava então o Senhor Bernardo e cortava alguns cavacos com uma machadinha – pumba! pumba! – para justificar o jantar.

Às seis horas, a mãe descia com o seu jantar. Eu sempre achei que o jantar do Sr Bernardo cheirava melhor que o nosso. Depois de comer e beber o seu copito de vinho, cumprimentava de boné na mão e ia embora:  "Até amanhã!".

Nunca soube onde ele morava. Era lá para o outro lado do rio. Devia ser um daqueles "buracos" onde ainda hoje dormem os "sem abrigo". Um dia, adoeceu. Foram chamar o meu pai que logo correu a buscá-lo numa ambulância. Por isto, penso que não tinha família. Fui vê-lo uma vez ao asilo, onde recolhiam os velhinhos que viviam sós. Não cheirava a tabaco, nem nunca mais na nossa casa se ouviu a machadinha a fazer: Pumba! Pumba! Pumba!

Julho de 2000