Guardo
com ternura muitas recordações da minha infância. Mas são os
momentos passados na companhia da minha Avó que mais vezes afloram
ao meu pensamento.
A minha Avó tinha o mesmo nome que eu tenho; e também muitas pessoas
lhe chamavam como hoje me chamam: – Dona Maria.
Eu sou a mais nova de sete irmãos e fui sempre a mais fraquita de
todos; por isso eram poucos os dias de Inverno em que não estivesse
doente. Ainda hoje, o tempo chuvoso e frio me afecta negativamente.
Passava, por isso, muitos dias em casa e fazíamos companhia uma à
outra.
Então, naquelas manhãs mais frias (o aquecimento ainda não fazia
parte dos nossos hábitos) eu sentava-me na cama e envolvia pernas e
pés num cobertor da "serra", hoje felpudo, hirsuto, comparado com a
maciez envolvente dos cobertores e edredões dos nossos dias. Depois
de tudo arrumado e feitas as suas orações em frente ao oratório onde
guardava os Santinhos da sua devoção, ela vinha sentar-se junto de
mim, numa cadeira que era só dela, manejando habilmente entre os
dedos as quatro agulhas com que tecia as meias. O aroma a sabonete
que exalava das roupas de minha Avó misturava-se com o odor
característico daqueles cobertores e ainda hoje as minhas narinas os
recebem juntamente com as ondas da memória.
A minha Avó tinha uma memória prodigiosa e as histórias sucediam-se
numa morna cadência que me embalava.
Hoje a T. V. substitui as avós e as crianças já não adormecem
docemente porque as histórias que escolhem para elas são demasiado
activas e violentas.
Da inumerável quantidade de histórias que a minha Avó sabia e a cuja
narrativa dava uma verdadeira interpretação de actriz, eram "Os
Milagres de Santo António" as mais bonitas. E eu chorava quando
Bernardo decepava o pé com que tinha batido na mãe ou regozijava de
alegria quando o Santo salvava o próprio pai da morte na forca,
dizendo em tribunal: " Eu não vim acusar culpados, mas sim salvar
inocentes".
Hoje, também eu já sou avó. Mas nada se repete como então. As minhas
netas não ouvem histórias de santos porque também não passam o
Inverno em casa, doentes. Os antibióticos e outros "antis" que agora
nos receitam, resolvem tudo em três tempos. As crianças de agora têm
já o seu dia muito ocupado; não podem estar doentes porque é urgente
chegar ao décimo segundo ano, é urgente entrar na faculdade; é
urgente acabar o curso; é urgente queimar as fitas e fazer
doutoramento; é urgente ficar de "canudo" na mão à espera de um
emprego que, por vezes, só existe no imaginário. Andam numa roda
viva e quase não têm tempo para brincar. E, se algum tempo lhes
sobra, brincam às escolas ensinando inglês ou dançando "ballet". As
bonecas já não são bebés de trapo ou pasta de papel e muito menos
louça fina. São as "Barbies", esbeltas, alimentadas a alface e tudo
nelas é esguio, as pernas, os braços, os cabelos... Mas não servem
para brincar. São de enfeitar e coleccionar. Já viram como as
crianças pegam nelas? Acaso as abraçam como nós fazíamos às nossas?
Bom, é o progresso! O tempo é como o relógio: nunca anda para trás,
nem bate as horas que já bateu.
Por isso, hoje, é mais difícil ser avó. Não podemos repetir o mesmo
milagre de Santo António duas vezes. Temos de entrar no ritmo de
vida dos nossos netos, acompanhá-los, conhecer os nomes dos seus
ídolos, adoptar os gostos que eles perfilham, entrar no turbilhão do
corre-corre das famílias de hoje. Porque se assim não fizermos,
vamos para a prateleira fazer companhia à "Barbie".
A avó
C.L. Maria das Dores
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