A Nudez da Alma

A Rapariga que tinha nome de Flor

Eu era muito criança ainda, mas tenho bem viva na minha memória a sua figura: a rapariga com nome de Flor.

Todas as semanas ia a casa de meus pais vender pruma e carvão. Eram os combustíveis dos anos 30 e 40.

Era jovem, morena e tinha os olhos verdes que me faziam lembrar o mar de Agosto quando a minha mãe me levava à praia. Parecidos com o mar e não como o rio porque não eram calmos. Agora, quando me recordo dos seus olhos, vejo que essa inquietude, um vaivém de ondas do mar, iria ser a sua perdição.

Era bonita, esbelta e o cabelo ruivo e sempre despenteado armava-se em pequenos caracóis muito frisados que lhe ornavam a fronte e o pescoço.

Às vezes, quando tinha a cara suja de carvão, eu ainda a achava mais bonita. Os rapazes iam à janela espreitá-la. E quem não gostava de ver a rapariga que tinha nome de Flor?

Era jovem, magra e quando andava abanava a saia para cá e para lá. A saia estava atada à cintura com um cordel e a blusa, muito chegadinha ao corpo, tinha sempre falta de botões. E eu perguntava à minha mãe por que a rapariga, com nome de Flor, não tinha botões na blusa. Ao que minha mãe respondia que elas eram pobres. A minha mãe tinha muitos botões numa caixa e eu, quando não podia ir para a rua brincar com os meus amigos, entretinha-me a enfiá-los numa linha: nesta, os brancos; naquela os pretos e por aí adiante.

Um dia, enquanto eu fazia rosários de botões e a minha mãe tecia camisolas para nos vestir no Inverno, perguntei-lhe por que não dava daqueles botões à rapariga que tinha nome de Flor. Não obtive resposta. Hoje, sei todas as respostas às perguntas que fazia então.

Meu pai presenciava tudo isto e naquele jeito peculiar de levantar as sobrancelhas repetia:

– É uma desgraçada! É uma desgraçada!

O tempo passou... A pruma e o carvão foram substituídos pelo gás e pela electricidade. Deixei de ver a rapariga que tinha nome de Flor.

Já muito mais tarde, ouvi falar nela, isto é, falava-se dela. E as sobrancelhas do meu pai diziam como dantes: - É uma desgraçada!

Um dia, já casada e com filhos, vindo do mercado carregada de compras, reparo numa pobre mulher que me estende a mão e me chama:  – Menina!

Mal a reconheci. Era o que restava da rapariga que tinha nome de Flor. Falei com ela e perguntei-lhe como chegara até ali ...  – Foi a vida!

Primeiro cortejada, depois abandonada. Onde dormia? – Onde calhava! E comia... o que lhe davam. O mar dos olhos dela agora não tinha cor definida; até me pareceram um pouco amarelos. Já nada nela me fazia lembrar a rapariga que tinha nome de Flor e vendia pruma e carvão.

Do cabelo restavam apenas alguns fios brancos; os caracóis, farrapos que lhe escorregavam pelo rosto.

São os amigos, os poucos verdadeiros, que encontrou na vida que tratam dela. Já não abana a saia para cá e para lá porque não anda. E na blusa, agora, não falta nenhum botão.

Agosto de 2001