O ARRAIS GABRIEL ANÇÃ — «LOBO-DO-MAR» DA TERRA DOS ÍLHAVOS

Por JOÃO SARABANDO

Se vivo fosse, Gabriel Ançã teria completado 117 anos no passado dia 8. Que, dizendo bem, os heróis não morrem. E o Arrais da terra dos Ílhavos além de herói era santo. Santo laico, já se vê. Destes santos extraordinários que, existindo aos milhares, não estão contudo, nos altares.

Fala-se, invariavelmente, na braveza do mar. Pois Gabriel Ançã era mais bravo do que o próprio Oceano. Mil vezes lutou com ele e mil vezes o venceu. Mais ainda: arrancou cento e três vidas preciosas aos seus tentáculos esverdeados e gigantescos, quando a morte já punha a mesa, com a toalha negra para o festim...

— Ah! mar! mar! Que tu, todo, não cabes dentro do meu cachimbo! — increpou certo dia o Arrais ao ver que as ondas, numa imprevista arremetida, tinham vindo molhar umas roupas que cuidara a recato na areia.


O arrais Gabriel Ançã (Busto de Abel Salazar)

Criado à beira das planícies marinhas — planícies que não raro se transfiguraram em alterosas e crespas montanhas — sabia nadar como um peixe. No seu tempo, fosse no Tejo ou na costa de Aveiro, ninguém lhe levava a palma a fender as vagas. Gabriel Ançã pode e deve ter sido, inclusivamente, como o primeiro grande campeão português da benemérita modalidade desportiva. Pelo menos, como campeão a título honorário...

Vizinho do mar, estudou-lhe as insídias, aprendeu a dominá-lo, a desferir-lhe golpes. A breve trecho, e sem cerimónia nenhuma, já o tratava por tu. Contava apenas dúzia e meia de primaveras quando, fazendo companhia ao patrão Joaquim Lopes, ajudou a salvar os náufragos de uma barca inglesa encalhada no Bugio.

Belo e forte, tostado e decidido, houve-se com tal coragem que logo ali o famoso patrão profetizou:

— Ó Ançã, tu botas homem!

E é que botou, botou um filantropo admirável, um servidor da Humanidade.

Em Abril de 1923, Gabriel Ançã, que conhecera D. Maria II e D. Pedro V, que falara com D. Luís, que teve a honra de ser recebido por D. Carlos, foi abraçado, efusivamente, em Lisboa, no decurso de uma luzida homenagem aos «lobos-do-mar», por António José de Almeida, então Presidente da República. O amplexo dos dois homens de bem, do timoneiro da nau do Estado e do arrais dos barcos de meia-lua, arrancou a mais quente e prolongada das ovações. É que, aos olhos do público, eternamente justo, Portugal acabara de saldar com amor o amor votado ao próximo pelo Ílhavo humilde e glorioso.

Na Costa Nova, ergue-se um monumento singelo ao Arrais Ançã. Bem hajam os que levantaram aquele altar. Só é pena que, ao longo das estações, a pequena e castiça praça quede praticamente às escuras. Salvo nas noites luarentas — e são incomparáveis ali essas noites — os visitantes da formosa praia quase não podem dar pela existência da memória em honra do Arrais. O pormenor, no entanto, será de importância somenos. Nas laudas da História avulta, realmente, imperecivelmente, o nome de Gabriel Ançã. Nas laudas da História e no coração das gentes ribeirinhas — para quem o herói é um paradigma.

Que foi santo, quer dizer, que foi bondosíssimo? Mas ninguém o duvida. Basta que possuía — como disse Américo Teles —, notável museólogo ilhavense que toda a «vila-maruja» justamente venera — uma alma de criança. Ora a alma das crianças é sempre imareada, diamantina como estrelas...

De resto, José Simões Bixirião, num magnífico artigo publicado aquando da morte do Arrais, deu-nos a medida exacta dessa grandeza de alma:

«Havia uma coisa que muito o preocupava e fazia sofrer imenso. Era a triste sorte dos velhos pescadores que jaziam nos seus casebres sem terem pão para comer, porque já não tinham forças nos braços para remar, nem nas pernas para, ao menos, se mexerem a atar cordas no arrastar das redes. E, então, o nosso Arrais, confrangido por ver os seus irmãos do mar sem pão para comer, se tinha lugar, na remendagem das redes, para dois velhinhos, logo empregava nesse serviço seis ou oito. E depois, já /página 6/ menos amargurado e enquanto a sua companha descansava, ele ia às do Norte ou do Sul, e até às da Vagueira e S. Jacinto, e, dizia para os outros arrais:

— Na minha companha já tenho tantos velhos, mas na minha terra ainda há tantos sem pão. Preciso que mos «arrumem».

E, se conseguia o que desejava, que consistia em dar pão a todos ou quase todos os inválidos, a sua alegria era enorme e manifestava-a pagando o alborque...»

Há 117 anos que nasceu o Arrais, vai para 32 que fechou os olhos da cor do mar... Mas, «porque foi um santo sem saber que o era» — como escreveu Junqueiro do Ti Zé-Senhor —, porque foi um herói sem jactâncias — «salvar não é favor, é grande honra» —, maior altura atinge o seu atlético vulto, uma altura descomunal, maior do que a do farol de Aveiro — ou de Ílhavo — com os seus sessenta metros e pico.

Torga afirmou, num dos volumes, que o «litoral português devia formar uma província à parte, esguia, fresca e alegre, só de areia e espuma». Gabriel Ançã, filho do povo, desse povo sublime ainda que tanta e tanta vez incompreendido se não vilipendiado, é um símbolo perene de todo o nosso litoral, da tal província sonhada pelo Poeta.

Numerosos escritores, oradores e artistas — Luís de Magalhães, Cunha e Costa, Rocha Martins, António de Cértima, Jaime de Magalhães Lima, João Carlos Celestino Gomes, Maia Alcoforado, Abel Salazar e outros, outros muitos — fixaram o perfil do invencível e cândido Arrais. Vários desses retratos são maravilhosos, mereciam ser enfeixados delicada, terna, amoravelmente, num volume bio-iconográfico. Publicá-lo, equivaleria a levantar outro monumento, formoso monumento, ao «herói do mar» da terra ilhavense, das terras da velha Ibéria que o Oceano enlaça. A Ideia já surgiu, mas é ainda sonho. Oxalá se corporize.

O busto do Arrais, que ilumina estas esmaecidas, embora votivas regiões, é uma obra-prima de Abel Salazar, existente nessa vera galeria de preciosidades artísticas e etnográficas que enforma o Museu Municipal de Ílhavo. Museu sem preço da gesta popular, museu que urge defender.

No trabalho de Abel Salazar, o Arrais lendário revive gloriosamente. Aquilo não é argila — mas carne, osso e espírito. Irradiando força e bondade, decisão e serena valentia, o Gabriel Ançã do sábio professor constitui, ao fim e ao cabo, um retrato perfeito do nosso homem do mar.

Começámos por escrever com entranhada adoração do ílhavo imorredoiro e bom, e, inadvertidamente, viemos a falar, do mesmo modo, de um artista excelso e não menos bondoso. Mas, que os leitores nos perdoem o termos deixado correr a pena ao sabor do coração...

JOÃO SARABANDO, in: “O Norte Desportivo” de 8 de Janeiro de 1962, pp. 3 e 6.


 

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