O título está intencionalmente no plural, porque esta tragédia não é só
do "Silvina", mas também do Egas Salgueiro, das Empresas de Portugal e
do Mundo. E tanto mais que se tratava de um navio de madeira construído
no ano de 1919 pelos Estaleiros Bolais Mónica para a Companhia Aveirense
de Navegação e Pesca, inicialmente com o nome de
Águia.
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Bota-abaixo do lugre Águia nos estaleiros Bolais
Mónica, na Gafanha da Nazaré, em 1919.
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Convém aqui frisar que, embora não sendo da EPA à data do incêndio e
naufrágio, em 1941, pertenceu em tempos ao Sr. Egas Salgueiro.
O
dia 21 de Maio de 1941, último domingo do mês, era o segundo dia das
aflições do pessoal embarcado no "Silvina". Na véspera, José Cachim,
capitão do navio, avisara os barcos que navegavam na zona para que
redobrassem de cuidados, porque um dos seus marinheiros havia ficado
perdido num dóris no meio do nevoeiro. Agora, cerca das 7:40, era
anunciada na rádio que o barco estava com incêndio a bordo. E os
momentos de aflição vividos pelo comandante e tripulação eram facilmente
adivinhados pelos barcos que ouviam os pedidos de socorro. Todos estes
momentos de angústia podem ser facilmente vividos através das palavras
de Jorge Simões, no livro Heróis do Mar, Viagem à Pesca do Bacalhau,
do qual aqui reproduzimos uns curtos excertos:
«Subitamente, soou pela rádio uma voz que traduzia espantosa
aflição e angústia, uma voz que gritou, enrouquecida:
«Chamada geral! Chamada geral a todos os navios!... Daqui o
“Silvina”, o capitão do “Silvina”!... Tenho o navio a arder!... E não
tenho posição!...»
Todas as conversas cessaram de uns navios para os outros.
Emudeceram as bocas, os olhos ficaram esbugalhados de pavor perante a
visão sinistra do “Silvina” em chamas.
E logo outro pensamento mais sombrio perpassou no espírito de
todos nós. O capitão José Cachim não tinha posição e há quatro dias que
o nevoeiro lhe não deixava tirar o ponto. Podia calcular vagamente por
onde andara esses dias. Mas, de facto, não sabia onde estava.
O que isto significa para um navio com fogo a bordo, debaixo
do nevoeiro, só pode verdadeiramente ser compreendido por quem se
encontra nestas paragens. Um pavor!... (… … …)
Ao angustioso apelo do capitão do “Silvina” responderam
imediatamente numerosos barcos. Anunciou-se logo:
«Vamos suspender, vamos em teu socorro. Vamos todos, todos os
navios de motor. Mas diz-nos alguma coisa, qualquer indicação do sítio
onde te encontras.»
Entrecruzaram-se, depois, múltiplas comunicações que faziam
estremecer e vibrar os amplificadores:
«Atenção! Chamada urgente!...Chamada geral!... O “Silvina”
está a arder!»
«Suspendam, suspendam todos, vão acudir ao “Silvina”, ao
capitão José Cachim!...»
Às oito menos dez minutos voltou a fazer-se ouvir a mesma voz,
enrouquecida e chorosa:
«O “Silvina” está perdido, perdido… o meu rico navio!... Não
posso fazer nada. Mandei já saltar os homens para os botes. O fogo está
a chegar ao convés, atinge o mastro do traquete. O meu rico navio!...
Todo a arder… perdido.» (… … …)
Aconselharam dos outros barcos:
«Allô, “Silvina”!...Allô “Silvina”!...É preciso ter calma .Tem
calma, José!...»
E logo, ainda, de outros lugares:
«Se não te aguentas, abandona o navio. Leva “Fog-Horn’s” nos
botes e as espingardas, para dares sinal.»
E sucederam-se as indicações, os conselhos, as promessas de
que todos estavam a suspender, para irem à procura da “companha”.
Mas o capitão do “Silvina”, desesperado, afirmava pela rádio:
«Não tenho posição, não tenho posição… O mastro do traquete
está a arder, quase a cair!... Não consigo salvar nada… Meu Deus! O meu
rico navio!» (… … …)
No “Gronelândia” o sino de bordo tocava a rebate,
desesperadamente, chamando a "companha" que arriara apesar da névoa e do
mar picado. A peça instalada à proa disparava tiros de quando em quando,
no reboar surdo que o nevoeiro abafava.
Estavam em aprestos de largar o “Júlia IV”, o “Santa Maria
Madalena”, o “Santa Maria Manuela”, o “D. Dinis”, o “Alcion” e o “São
Rui”.
Mas idêntica e angustiada interrogação era feita por todos:
«Onde estaria… onde parava o “Silvina”?»
Algures no “Grande Banco”, cuja superfície é maior que a do
nosso Portugal. Sabia-se lá!...
(… … …)
Às oito horas e dez minutos − apenas três quartos de hora,
pouco mais ou menos, após o início da tragédia
− voltou a soar a voz cada vez mais enrouquecida e entrecortada
pelos soluços, do capitão do lugre que o azar transformara numa fogueira
gigantesca a baloiçar ao cimo das vagas:
«Toda a companha está nos botes. O navio, o meu rico navio,
está pronto. Eu estou sozinho a bordo.»
Dos confins do barco fizeram-se ouvir, simultaneamente, os
arrastões a vapor “Santa Joana” e “Santa Princesa” da EPA:
«Allô, “Santa Princesa”, Allô ,“Santa Joana”!...Daqui o
“Silvina”, o capitão do lugre “Silvina”… com o navio em chamas.»
Então os dois arrastões, com os seus modernos aparelhos de
rádio, procuram, em vão, azimutar a posição do navio. Aconselharam ao
“Silvina” que conservasse o motor da telefonia a trabalhar. E após
baldados esforços disseram da sua impossibilidade. O “Silvina”
− estava escrito
− continuava com pouca sorte.
Eram oito horas e dezanove minutos quando o capitão Cachim
falou de bordo pela última vez:
«Não posso mais…não posso mais! Vou deixar o navio! Tenho a
garganta tomada! Não vejo nada com a fumaça!...
Aconselharam do “Santa Princesa”: «Deixe o motor do
transmissor a funcionar. Salte para os botes! Saltem para os botes e
aguardem, não se afastem muito.
Vão todos à vossa procura!»
Os arrastões passaram a lançar para o espaço, continuadamente,
o seu apelo trágico: «S.O.S.! S.O.S.! Está um navio a arder no “banco”,
ao sul dos 45 graus. S.O.S.! S.O.S.!»
A partir deste momento apenas se ouvia de bordo do “Silvina” o
transmissor da rádio cujo motor, heróico soldado no seu posto, só
deixou de funcionar quatro horas depois, quando o navio envolto em
labaredas e em fumo. Nos últimos momentos o próprio transmissor trazia aos nossos ouvidos o crepitar da
madeira incendiada.»(2)
Às quatro horas e quarenta
minutos da manhã seguinte, os 11 dóris com um total de 36 náufragos
foram encontrados pelo navio "Santa Isabel", pertencente à empresa EPA,
comandado pelo capitão João de Sousa Firmeza, que recuperou o sextante
como único salvado do incêndio.
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