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Apanhando as cavacas. Fotografia de Manuel Gamelas.

S. Gonçalo Cagaréu

Guardo do Largo de São Gonçalinho, a forma tão carinhosa como as gentes da nossa Beira-Mar tratam São Gonçalo, recordações imorredoiras, daquelas que resistem a todos os acidentes de percurso. Morei lá na força da minha vida, com a minha mãe e os meus irmãos, no n.º 1 da Travessa de São Gonçalinho, um primeiro andar que dava, e felizmente ainda dá, para o largo que eu dominava por duas janelas de guilhotina. Lá estudava, noite adentro, lá pintava a roubar ao descanso, de lá partia para o meu trabalho de dia inteiro, e lá ainda descobria horas para dar explicações. Um dos meus explicandos, o Zacarias, filho dos donos da taberna que ficava no final da minha travessa, recebia explicações logo às seis da manhã. Eu explico como: tinha-lhe dado uma chave da casa; ele abria a porta, subia, acordava-me; continuando deitado, fazíamos o ponto de situação da sua aprendizagem de cálculo comercial. Dava-lhe um exercício e, enquanto ele o ia fazendo, eu voltava a dormir.

 Foi lá que eu comecei a pintar o meu primeiro quadro abstracto, mesmo no princípio da década de 60. A parte esquerda da tela, em solteiro; a parte direita, já casado. Daí o ter-lhe dado o titulo de “Ponte”. É curioso o facto de a uma ponte, à ponte amarantina, sobre o Tâmega, que o eremita construiu, estarem associados alguns dos milagres do taumaturgo. Se eu falo destas coisas é porque só assim posso reconstituir a minha vivência de São Gonçalinho.

Todos os moradores do Largo pareciam uma família, sempre com um espírito de entreajuda verdadeiramente excepcional. Era o espírito cagaréu a falar em pleno. À frente da casa onde eu morava vivia o Ti Filipe Canastro, avô do Dr. Artur Miguel Capão Filipe, distinto clínico a quem devo a vida; distinto vereador da nossa Câmara, responsável pelo pelouro dos assuntos culturais de Aveiro; e distinto mordomo dos festejos deste ano em honra do nosso santo cagaréu. Todos os vizinhos, nos dias da festa, colocavam guarda-chuvas abertos do lado de fora das janelas de primeiro andar, logo pela manhã. As minhas janelas eram as que estavam mais a jeito e os meus guarda-chuvas, ao fim do dia, estavam ajoujados de cavacas. À noite, sempre que o sino tocava, lá ia eu ver à janela o espectáculo das pessoas de todas as idades a correr atrás das cavacas que do alto da capela eram atiradas para o terreiro.

 

 
 

Apanhando as cavacas lançadas do cimo da capela. Fotografia de Manuel Gamelas.

 

A família do lado do meu pai Manuel era toda da Beira Mar. A da minha mãe, da freguesia da Glória. Sou, pois, filho de uma simbiose difícil já que, quando o meu pai, homem da Ria e do Mar, começou a namorar a minha mãe, menina da freguesia “de lá de cima”, como se dizia então, sentiu alguma animosidade pela parte dos mancebos ceboleiros. Nesses tempos que já lá vão, dizem-me que chegava a haver cenas de pancadaria sempre que namoros semelhantes se esboçavam. Com a minha mãe a viver em Lisboa e com o meu pai embarcado, eu fui educado pela minha avó materna, na freguesia da Glória. Mas ao fim da semana eu vinha visitar os meus avós paternos que me tratavam com grande carinho. De um lado, comia-se à mesa, de faca e garfo, cada um com o seu prato. Na casa dos meus avós paternos, comia-se numa mesa baixinha, todos sentados em mochos, na cozinha de terra batida coberta de junco, cada um com o seu garfo a retirar a comida do seu canto da bacia. Ao princípio estranhei. Mas, depois, como escreveu o poeta, entranhei este tão forte sentido comunitário de viver a família. A tal que eu fui, anos passados, já homem, redescobrir de forma alargada nos meus vizinhos à sombra da Capela de São Gonçalinho.

 

Esta ambiência única que então se respirava na nossa Beira Mar e que os tempos se foram encarregando de alterar, marcou-me de forma profunda para todo o sempre. Como ainda me lembro, menino, de vir pela mão do meu avô Ti Luís Manco, da sua casa na rua do “Senhor dos Febres”, até ao mercado onde a minha avó Guilhermina era regateira de peixe grado, o tal que era preferido pelos “senhores doutores”! Era sempre por volta das onze da manhã que ele preparava o cestinho onde punha dois bules e duas chávenas. Um dos bules levava vinho tinto; o outro, vinho branco. Quando passávamos pela capela de São Gonçalinho, ele, como crente e bom homem da Ria, mercantel que fora nos seus anos de saúde, persignava-se e curvava respeitosamente a cabeça. Eu secundava-o. Chegados à praça, perguntava sempre: “Guilhermina… hoje queres chá ou café?”. E conforme a resposta, lá enchia de branco e tinto as chávenas do decoro, dando à minha avó o vinho da sua escolha e bebendo, ele, o outro. Estranhar-se-á que, acima, eu tenha referido a rua do “Senhor dos Febres”. Mas a verdade é que eu, só mais velho, vim a saber que se deveria dizer Senhora das Febres, com altar na capela de São Roque. Já ouvi uma explicação para essa troca que não seria assim tão ingénua. È que os homens da Beira Mar não acreditavam lá muito que curar febres fosse milagre ao alcance de mulher. E os aveirenses, na sua história, quando a Ria entupiu privando-se do fluxo vivificador das águas do mar, sentiram bem no corpo a força destruidora das febres que transformaram a rica cidade de 14.000 habitantes dos séculos XV e XVI, com uma cosmopolita colónia de galegos, normandos, flamengos, ingleses, a maior parte residente no Alboi, na povoação que se começou a exaurir nos princípios do século XVII e que, no dealbar do século XIX, estava reduzida a 900 fogos com cerca de 3.000 habitantes. Datará do século XV, século áureo da nossa história, a construção, na Vila Nova de Aveiro, do primeiro templo em honra de São Gonçalo, consequência evidente do culto que a nossa gente marinheira terá trazido no seu contacto nas fainas marítimas com os seus camaradas do norte de Portugal. Nesse século, e mesmo no anterior, o armamento aveirense e de Viana do Castelo estabeleceu parcerias para a demanda dos mares do bacalhau. E a fé de uns com facilidade se transmitiu aos outros, ou não fora São Gonçalo, herdeiro, por razões patrióticas no período da perda da nossa independência, do culto prestado, na Idade Média, a outro santo, galego, chamado São Pedro Gonçalves, protector dos pescadores.

 Ameaçando ruína o primitivo templo, por voltas de 1712, 1714, foi construído o actual, garantindo a permanência e arreigamento da fé das gentes da Beira Mar no taumaturgo amarantino.

Os tempos têm passado, as pessoas da nossa terra e os seus hábitos mudaram muito. Confesso que tenho saudades do tempo em que se corria toda a Beira Mar sem ver uma única porta fechada à chave, tudo no trinco e fé em Deus, sem um único agente da autoridade a fiscalizar as ruas, porque tal era desnecessário e até insultuoso para os cagaréus

O tempo passa mas essa fé em São Gonçalo só tem aumentado. Bem escreveu o saudoso poeta aveirense Amadeu de Sousa:

 

                                                 Dos santos todos de Aveiro,
                                                 Desta terra, deste céu,
                                                 S. Gonçalinho é sem dúvida
                                                 O santo mais cagaréu.

 

São Gonçalo é bem um santo que os aveirenses foram construindo à sua medida, transformando-o em pessoa de família com quem todos se sentem à vontade e a dialogar.

 

Há quem diga, pela devassa da História, que o Santo nunca terá existido… E até há quem se pergunte se “São Gonçalo não terá sido uma invenção posta ao serviço de uma qualquer ideia ou propósito”. …É com estas palavras que o padre Amaro Gonçalves se questiona sobre o assunto.. Mas facto é que existe um testamento de uma tal Maria Johannis, datado de 18 de Maio de 1279, legando os seus bens à Igreja de São Gonçalo de Amarante. Supõe-se que o santo terá morrido a 10 de Janeiro de 1259, portanto vinte anos antes desse legado à Igreja de seu nome. Segundo o Flos Sanctorum de 1513, Gundisalvus, ou Gonçalo, “nasceu em Tagilde, estudou rudimentos com um devoto sacerdote e frequentou depois a escola arqui-episcopal de Braga. Ordenado sacerdote foi nomeado pároco de São Paio de Vizela. Depois foi a Roma e Jerusalém; no seu regresso, vendo-se desapossado do seu benefício, prosseguiu um caminho de busca interior já anteriormente encetado; depois foi a experiência da vida eremítica, a pregação popular…, e logo caiu na ambiência mendicante da época, após o que se faria dominicano”.

No dia 10 de Janeiro, entre os anos de 1682 e 1687, o nosso grande jesuíta Padre António Vieira, na cidade brasileira de Bahía, proferiu um brilhante sermão, belíssimo panegírico seiscentista, de recorte barroco, ao nosso São Gonçalo, conseguindo fazer uma brilhante acomodação do itinerário biográfico do santo às condições sociais da época em que o discurso foi proferido. E as sua primeiras palavras foram estas:

“Onde há muito que eleger, não pode haver pouco sobre que duvidar. Celebra hoje, dia 10 de Janeiro, a nossa devoção um Santo, sobre cujo estado duvidarão os Historiadores, sobre cuja profissão duvidou ele mesmo, e sobre cujas grandezas, para eleger os maiores, eu sou o que mais duvido. Duvidarão os Historiadores sobre o seu estado, porque uns o fizeram da Hierarquia Clerical, como filho de São Pedro, outros da Monástica, como monge de S. Bento, outros Mendicante, como Religioso de S. Domingos: controvérsia em que é mais gloriosa a dúvida que a decisão. /…/

E, depois, o brilhante orador, sempre agarrado à sua fluência expositiva, refere alguns dos milagres do Santo. O do pão que faz converter em carvão e voltar à alvura primitiva. O do amansar de uns touros bravos, como se tivessem ensino de muitos anos. O dos cardumes de peixe que saltavam aos pés do santo consoante sua ordem. O da água e do vinho que brotavam de fontes que ele fez surgir nas pedras da ponte amarantina em construção, para apagar a sede dos trabalhadores e lhes dar alegria na sua lide. E de tantos, tantos outros que mantêm incólume., ainda hoje, a sua fama de santo milagreiro.

Desses milagres eu já tinha notícia, por leituras, quando vivi na Travessa de São Gonçalinho.

Painel de azulejos existente na fachada da capela de S. Gonçalinho.

Mas do seu espírito vingativo, foi lá que, à boca pequena, fui sabendo de algumas histórias de castigos dados pelo Santo a quem se atrevesse a desfeiteá-lo.

 Como a queda do Cajica quando estava empoleirado num escadote a pintar a capela e que, chegado ao pé da imagem, lhe pôs uma “purisca” nos lábios, invectivando-o:”Tu não fumas estipor?”.

Ou a cena do Mestre Zé que se viu aflito a sair a Barra de Aveiro com a sua embarcação, só por se ter recusado a dar esmola ao Santo.

Ou ainda o roubo do relógio do Luís Pierres, em pleno arraial, por igual recusa de esmola. E muitas mais.

Mas nunca consegui, nos anos sessenta, ao contrário do que hoje acontece, ter uma descrição cuidada da célebre “dança dos mancos” que se fazia, que se fez sempre, no maior dos segredos, pela noite dentro, na capela de portas trancadas. Pessoas que eu sabia serem mordomos da festa e, portanto, zeladores da capela, nela pernoitando para, afirmavam, tomar conta das pratas que eram emprestadas para decorar os altares, indagados sobre a “dança”, não tugiam nem mugiam. Uma vez pus o problema ao senhor Prior que me disse que “isso” tinha sido proibido pelo senhor Bispo, para garantir o decoro na capela. Mas que o espírito brejeiro das gentes da Beira Mar nunca deixou morrer a “dança dos mancos”, com proibição ou sem proibição, isso para mim, hoje, não me deixa dúvidas.

Nunca assisti a uma dessas danças dentro da capela. Mas já assisti a réplicas executadas por ex-mordomos e, efectivamente, vê-los a dançar com as suas macaquices e ouvi-los cantar as suas versalhadas marotas é de morrer a rir.

 

Aliás, esta associação de São Gonçalo a estas danças não é só verificável em Aveiro. Com a mesma natureza brejeira, as danças e bailes de São Gonçalo aparecem sempre por toda a parte onde há festejos em sua honra. Em Terras do Brasil, principalmente no Recife, e no Maranhão, para onde os emigrantes amarantinos levaram a tradição, esses bailes festeiros ganham uma forte componente lasciva que só aparentemente se esbateu com a chegada ao Brasil dos “padres estrangeiros”, alemães e italianos. Não será por acaso que São Gonçalo, no país irmão, é representado com uma violinha: uma violinha caipira, desconhecida em Portugal.

O que é certo é que da fama de folião e casamenteiro o Santo se não livra nos dois lados do Atlântico.

 

Num lado e noutro, São Gonçalo é especialista em casar solteironas:

 

                                                São Gonçalo d’Amarante,
                                                Casamenteiro das velhas;
                                                Por que não casas as novas,
                                                Que mal te fizeram elas?

 

Num lado e noutro, São Gonçalo aparece-nos associado a uma saudável folia…

 

                                                 São Gonçalo e São José
                                                 São dois Santos, companheiro;
                                                 São José é carapinha,
                                                 São Gonçalo é violeiro.

 

Quem interpretou, sempre enquanto vivo, essa forma excepcional de sentir o nosso São Gonçalinho, bem à moda da nossa Beira Mar, foi o saudoso Ti João Moreira, pintor de profissão e meu companheiro indefectível na direcção dos Bombeiros Novos, por largos anos. Homem da Tertúlia Beiramarense, com sede no café Gato Preto, onde também se servia à chávena “café e chá” frios, em dia de jogo da nossa equipa de futebol não se cansava de dizer: “Meu rico são Gonçalinho… faz com que o nosso Beiramarzinho ganhe!” Enquanto a saúde lho permitiu, sempre recebeu os amigos com mesa farta no dia de transmissão de responsabilidades dos mordomos de São Gonçalinho. Via-se nos seus olhos que recebê-los em sua casa, como só ele o sabia fazer, no dia da entrega dos ramos, era a sua melhor forma de sufragar o seu rico Santo e de fazer com que todos nós o acompanhássemos na sua manifestação de fé.

Estou em crer que São Gonçalinho o ouviu nas suas preces, já que foi a dançar, na juventude dos seus cerca de noventa anos, que a morte lhe bateu à porta e o levou, sem dúvida, para o aconchego do nosso santo cagaréu.

Eu disse que os tempos mudaram muito a minha Beira Mar, desde que eu a comecei a conhecer. Sem dúvida que sim. Então, a economia do Bairro assentava na pesca do mar e do rio; no amanho das marinhas de sal; na apanha do moliço que continuava a converter as areias estéreis em úberes terras de pão; em alguma construção naval; no tráfego dos mercantéis que transportavam materiais de construção e alimentos para todas as motas da Ria onde as populações se ancoravam em pequenos povoados. E para todas estas actividades o povo cagaréu solicitava a protecção do nosso Santo. São Gonçalinho até foi nome de arrastão do bacalhau, levando a fé que nele depositavam os armadores e os pescadores da nossa praça até aos mares da Terra Nova, da Gronelândia, da Noruega...

Hoje, as pessoas da Beira Mar já não assentam as suas vidas nesse tipo de actividades, por sua natureza tão aleatórias. Mas a verdade é que o Bairro continua a ter características únicas que lhe conferem uma identidade inconfundível. E tudo continuando à volta do Santo Cagaréu. A geração do Dr. Capão Filipe, muitos licenciados nas mais diversas áreas e até professores universitários, optou, de forma significativa, por morar à sombra de São Gonçalo, no bairro fazer a sua vida e educar os seus filhos..

É certo que já não posso ir à casa dos meus avós paternos comer da bacia a caldeirada que o meu avô Ti Luís Manco cozinhava em banho-maria na panela de três pés, no borralho da lareira da cozinha de terra batida, coberta de junco.

Já não posso ir buscar a casa do Dr. Peixinho o maravilhoso licor de alguidar que a minha tia-avó Maria sabia fazer tão bem.

Já não posso ir a casa da Ti Glória do Sarabando provar as enguias de escabeche que ela assava como ninguém. Semelhantes, só as da minha Tia Lizette.

Já não posso comer as espetadas de mexilhão, grado como já não há, que o meu pai Manuel apanhava na boca da Barra de Aveiro, e que a minha mãe Mariazinha sabia fritar no ponto certo.

A minha diabetes já não me deixa comer uns ovos moles fresquinhos, um leite creme quebradiço, um arroz doce a preceito.

É certo tudo isso…

 

Mas também é verdade que os festejos de São Gonçalinho se continuam a fazer todos os anos. Que as cavacas atiradas da Capela são objecto de reportagens fotográficas e televisivas. Que a Confraria de São Gonçalo, arregimentada pelo Confrade-Mor Carlos Souto, continua a manter acesa a chama de um saudável aveirismo que Eduardo Cerqueira pregou e que Amadeu de Sousa cantou nos seu versos, defendendo as nossas tradições, sempre assentes na nossa tradicional tolerância e no mais escrupuloso respeito pela liberdade.

 

Cheira-me, depois disto tudo, que o maior milagre que o nosso São Gonçalinho de Aveiro nos fez foi o de ter eliminado as pontes que, tempos idos, separavam os ceboleiros dos cagaréus, permitindo que, com as nossas diferenças, saibamos fazer maior o amor que todos sentimos por esta terra que nos viu nascer ou quisemos fazer nossa.
 

Gaspar Albino,  25 de Novembro de 2006

 

04-05-2018