Foi ao princípio da
noite do dia 17 de Outubro de 1942 que deflagrou um pavoroso incêndio
no edifício do Governo Civil de Aveiro. Atingiu rapidamente enormes
proporções e reduziu-o a escombros, destruindo praticamente todo o
recheio: móveis e preciosa documentação. Tinha eu 4 anos e dois meses.
Muito pequeno ainda, portanto.
A verdade é que
guardo dessa noite memória de imagens que, na minha leitura de hoje,
me parecem verdadeiramente dantescas, e que, então, me aterrorizaram,
ao ponto de, durante muito tempo, ter com elas sonhado.
Vivia, por essas
alturas, com a minha avó Joaninha, na rua de Gustavo Ferreira Pinto
Basto. Era vizinho do Andrezinho (voltarei a este em próximo escrito),
mais velho do que eu não chegava a três anos, único filho do casal
Maria Felícia Reis e Amadeu Ala dos Reis, primos entre si, e aos quais
eu fora ensinado a chamar de madrinha e padrinho. A razão deste
tratamento tem a sua explicação. Quando os conheci, eu bem tentava
dizer Dona Mariazinha. Mas a minha língua não chegava lá. E o que saía
era tão só isto: Dona “Merdinha”. Tiveram que encontrar alternativa
para o meu linguajar desconchavado. A solução encontrada foi a palavra
madrinha (que eu pronunciava muito bem) e que, para gáudio meu e da
mãe do meu amigo André, fez com que eu me convertesse em seu afilhado,
com direito a “folar” pela Páscoa e outras benesses ao longo de todo o
ano.
Sei que só eu fui
autorizado a vir sentar-me num mocho à porta do lado da rua do Recreio
Artístico (era assim que o povo chamava e ainda hoje chama à rua de
Gustavo Ferreira Pinto Basto), a qual dava serventia ao andar ocupado
pela minha família e cujas janelas viravam para a rua Direita. Ao
André, coisas de filho único, não foi deixado vir ver o incêndio para
a porta do quintal.
A casa do Sr. Egas
Salgueiro, fronteira às nossas, parecia aureolada, coroada e banhada
de fogo, tal a quantidade de partículas incandescentes que galgavam os
prédios e os quintais, desde o Governo Civil, espalhando-se por uma
enorme área envolvente. O calor que se desprendia da enorme fornalha
espalhava-se pelo ar, fazendo com que nos sentíssemos como que numa
abafada noite de Verão.
O incêndio tinha
começado às oito horas da noite pelo sótão do edifício, considerado o
melhor de Aveiro e onde se guardava uma parte significativa dos
arquivos do Governo Civil.
A minha avó nunca
me deixou sair de ao pé dela. Mas no largo das Carmelitas devia estar
uma multidão apinhada a ver o triste espectáculo, tal a quantidade de
pessoas que desbordavam para a rua do Recreio Artístico. Lembro-me de
ver bombeiros a correr. Aos meus tios, que andavam cá e lá, ouvia
dizer, com o correr da noite, que o fogo passara ao segundo andar e
depois ao primeiro, pois o material de ataque ao incêndio e a água
eram insuficientes.
A certa altura,
quando as coisas começaram a amainar e a minha avó considerou que o
perigo de propagação do fogo tinha diminuído, recolhemo-nos a casa. Eu
adormeci logo que nem um prego.
No dia seguinte,
domingo, fui com a minha avó Joaninha à missa das Carmelitas. Da linda
casa que era o nosso Governo Civil restava o rés-do-chão com as
paredes ao alto. Metia pena. Os bombeiros ainda lá andavam em
trabalhos de rescaldo que se prolongou durante todo o dia. Por ter
visto aquilo que ao meu amigo André tinha sido vedado, senti-me um
herói. Logo que ficámos juntos, à hora do lanche em casa da madrinha,
não descansei enquanto não lhe contei tudo quanto vira e ouvira.
Voltarei a esta
minha primeira morada de que guardo memória; melhor: memórias que o
tempo e a minha curiosidade me deixaram enriquecer.
A talhe de foice,
deixo algumas notas sobre a história do Governo Civil de Aveiro. O
primeiro que tivemos foi inaugurado em 25 de Setembro de 1835. Ocupou
o primitivo palácio dos Tavares, junto à Ribeira (hoje Canal Central),
entre a antiga rua da Alfândega e a rua dos Tavares. Este edifício,
por morte de Manuel de Sousa Tavares, passou para a Coroa. Com a
criação da Diocese de Aveiro, o rei D. José deu-o para Paço Episcopal.
Com a extinção da Diocese, o Governo Civil passou a ocupá-lo. Em 20 de
Julho de 1864, um violento incêndio destruiu este velho edifício,
fazendo com que o Governo Civil passasse, de imediato, para o
rés-do-chão do Liceu Nacional de Aveiro, inaugurado quatro anos antes,
mercê da influência política do nosso tribuno José Estêvão. No lugar
onde hoje está localizado o Governo Civil, existiu o belo palácio dos
Viscondes de Almeidinha, em Aveiro. Em 24 de Junho de 1871, o fogo
reduziu a escombros este paço que, com o Convento das Carmelitas,
enquadrava o chamado Terreiro. A remoção dos escombros começou em 3 de
Setembro de 1888, logo após a Junta Geral do Distrito ter adquirido as
ruínas do palácio por 500.000 reis, para aí ser construído um edifício
de raiz que albergasse todas as repartições públicas distritais. Este
veio a ser inaugurado em 1901. O fim dele também foi encontrado no
incêndio de 17 de Outubro de 1942, que deu origem a este meu pequeno
reviver de tão juvenil memória.
Gaspar Albino, Março de 2006 |