Sou filho de pai cagaréu e de mãe ceboleira. Ser mais de Aveiro é,
portanto, no meu caso, muito difícil. Eu explico: nasci na freguesia
da Glória, na hoje inexistente travessa de São Sebastião, num pequeno
largo ou beco a que os irmãos Bandarra, que também lá viveram,
chamavam “pátio das cantigas”. Era um sítio de casas térreas,
humildes, como humildes mas muito honradas eram as nossas famílias,
como antigamente era de uso dizer-se. Só pelo facto de minha mãe Maria
ter optado por me dar à luz em casa da minha avó materna é que nasci
na Glória. Mas poderia muito bem ter nascido na Beira-mar, caso a
opção tivesse sido a casa da minha avó paterna.
Jovens nascidos nas freguesias da Glória e da Vera Cruz que desejassem
namorar, nesses tempos de princípios do século passado, não tinham
vida fácil. A juventude de cada uma destas nossas duas freguesias
urbanas não via com bons olhos esse tipo de relacionamento. Os da
Beira Mar, na Beira Mar; os da Glória, na Glória. Nada de misturas. E
quando, como aconteceu com os meus pais, esse relacionamento levava ao
casamento, as coisas complicavam-se. Mas o amor que havia de os ligar
falou mais alto. E o jovem de olhos azuis que viria a ser meu pai,
cagaréu de gema, casou-se com a menina de cabelo de azeviche,
ceboleira até mais não poder ser. E desse casal, surgiram três filhos:
dois rapazes e uma rapariga. Eu fui o mais velho, nasci em 1938, e,
dos três, fui aquele que praticamente, na juventude, nunca abandonou
Aveiro. O meu pai, depois de ter feito o tirocínio em tudo o que era
trabalho na Ria, foi para a pesca do bacalhau, nos mares da Terra
Nova. Ainda não tinha irmãos e bem me lembro de ter ido com a minha
mãe a Leixões ver o meu pai, deitado num beliche do velho Gil Eanes
que o tinha recolhido do mar, náufrago por força de um torpedo de um
submarino alemão que afundara o seu lugre. Depois, quando meu pai
recuperou forças, foi para a marinha de comércio. E a minha mãe foi
morar para Lisboa, porto de escala regular dos barcos onde o marido
andava embarcado. Os meus dois irmãos, nascidos em Aveiro, na
freguesia da Glória, em casa da minha avó Joaninha, acompanharam
sempre a minha mãe. Eu, mais velho, fiquei sempre à guarda da minha
avó materna. E sempre na freguesia da Glória de que só saía para
visitar a família do meu pai, toda ela na freguesia da Vera Cruz.
Era frequente eu ir almoçar, aos domingos, a casa dos meus avós
paternos, que tinham a sua casa na rua de São Roque, a rua dos
espanhóis como os de fora chamavam aos seus habitantes, tal o
linguajar que eles usavam ente si. A forma de falar cantada
tornava-se-me difícil, ao princípio. Mas, com o hábito de ouvir, até
quase que era capaz de os imitar na perfeição. Confesso que muito do
que via e ouvia na Beira-mar, nos começos, me parecia, ainda criança,
muito estranho, por diferente. Mas era uma diferença que me encantava.
Vou dar-vos o exemplo dos almoços dominicais em casa do meu avô ti
Luís e da minha avó Guilhermina. Enquanto na casa da minha avó
Joaninha, na Glória, se comia na sala de jantar, numa mesa normal, com
cadeiras normais, toalha posta com pratos e talheres individuais, na
casa dos meus avós paternos comíamos na cozinha de terra batida,
cobertinha de junco fresco e bem cheiroso, sentados em mochos, assim
chamavam a uns banquinhos baixos, à volta de uma mesa também muito
baixa, onde, ao meio, se colocava a bacia, uma espécie de travessa
redonda e funda, onde o meu avô Luís ia arrumando o que tirava da
panela de três pés que permanecia no borralho da lareira ali mesmo ao
lado. E o que tirava da panela era uma espécie de cozido à portuguesa
onde abundava a carne branca, vulgo toucinho, a carne de vaca, os
enchidos, as batatas e as couves. Tudo era disposto em círculos,
consoante a sua natureza, as carnes já cortadas de forma adequada a
que cada um dos comensais tivesse acesso à sua dose de tudo o que lhe
cabia, sem estorvar o vizinho. Cada um de nós tinha direito a um
garfo. E chegava. A mim e ao meu tio Luís, irmão de meu pai, era-nos
dado um copo. Eu bebia água; o meu tio, já homem feito, bebia vinho
tinto. Os meus avós, sentados um ao lado do outro, tinham no seu meio
um pequeno garrafão empalhado, com vinho que dava para os dois. Sempre
que qualquer dos avós levava o pequeno garrafão à boca, todos paravam
de retirar comida da bacia. Um dia, enchi-me de coragem e perguntei
porque se parava sempre que qualquer dos avós bebia o seu trago de
tinto. Que era para que nenhum de nós se aproveitasse da paragem de
quem bebia para comer mais durante a pausa. Equidade plena, pensei eu.
Mais equidade do que esta garanto, ainda hoje, que não pode haver.
Gaspar Albino
19 de Agosto de 2014
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