Em casa da minha avó
Joaninha, a única pessoa que tinha direito a quarto próprio era a sua
cunhada, minha tia-avó Conceição, irmã do meu avô materno, António
Gaspar, que já não cheguei a conhecer, infelizmente. Muitas vezes me
perguntei da razão que levava toda a família a respeitar duma forma
muito especial aquela a muitos títulos respeitável senhora de idade já
muito avançada.
Em foro íntimo, julgo que
era ainda a presença espiritual do meu avô Gaspar, sempre saudoso,
cuja memória nos era garantida pela sua irmã Conceição.
Acontece que era bem mais
idosa do que a minha avó Joaninha. E era completamente surda.
Percebia o que lhe
pretendíamos dizer pelo movimento dos nossos lábios. Vivia no seu
mundo de silêncios, agarrada às rendas que saíam das agulhas manejadas
pelas suas mãos enrugadas para enxovais dos sobrinhos que não eram
poucos. Tinha um horário de vida de um rigor enorme. Horas certas para
tudo: para o seu banho, para o seu pequeno almoço. E lugar certo na
mesa onde eram servidas as refeições da família. A sua vida
silenciosa acrescentava ao respeito que toda a família por ela nutria.
Era eu que a acompanhava, manhã cedo, à sua missa dominical, nas
Carmelitas ou em Santo António. Eu já conhecia o hábito e, portanto,
nem era preciso chamar-me. A minha tia Florize, a tempo e horas, tinha
os pequenos almoços prontos na mesa da cozinha. E lá íamos, fizesse
sol ou chovesse, fizesse calor ou frio, às primeiras missas
dominicais. Os crentes, todos já de certa idade, lá estavam nos mesmos
lugares, eles no seu fato domingueiro, elas envoltas no seu xale de
merino e com o seu lenço preto que lhes emoldurava o rosto. À saída da
missa eu já cumprimentava os circunstantes, pois todos nós, com a
repetição, já nos conhecíamos. Eu era o Antoninho, o neto da Joaninha
do Gaspar.
Um dia, a tia Conceição
morreu. E eu também fui acompanhá-la à sua última morada.
Tantos anos passados e a
sua presença ainda hoje me parece real. Quando fizeram a limpeza do
seu quarto, vim a encontrar na sua cómoda alguns livros que tinham
sido pertença do meu avô Gaspar: eram uns livros de Alan Kardek, sobre
espiritismo, e um dicionário de nomes. Foi por este dicionário que eu
vim a perceber a razão de ser dos nomes de alguns dos meus tios:
Coríntio Aquilino, Alpoim, Florize… Pela amostra bem se vê como esses
nomes eram escolhidos a dedo.
Mas voltemos às missas, a
outras missas.
Há dias, um velho
companheiro da escola primária, o engenheiro José Bettencourt,
actualmente a viver em Lisboa, mandou-me um “mail” a propósito destes
meus escritos. Que, também a ele lhe faziam lembrar os anos da nossa
juventude que sempre recordava com saudade.
Ele, quando era miúdo,
morou na então rua da Sé, mais tarde do Capitão de Sousa Pizarro, bem
próximo dum edifício que servia de cadeia, tempos idos igreja.
Nos baixos da sua casa,
contava-me ele, morava a senhora Margarida, curiosa senhora que “ouvia
missas” em vez de quem não tinha tempo para cumprir promessas feitas
em momentos de aflição. E por cada “missa ouvida” cobrava cinco
tostões, custo da remissão do não cumprimento dessas obrigações. Para
obter algum favor do Altíssimo também era hábito as pessoas mandarem
ouvir algumas missas. E a senhora Margarida, mediante preço ajustado,
lá cumpria com o prometido pelo “cliente”.
Não ficava por aqui a
disponibilidade da senhora Margarida para a satisfação de necessidades
especiais. Ela também era especialista em responsos que tinha em
abundância no seu cardápio, aplicáveis às várias situações de aflição
das pessoas. Perdia-se alguma coisa e, pronto, a pessoa interessada
pedia que o responso fosse rezado. Conforme corresse a reza, logo
depois vinha a solícita senhora cobrar o preço e informar se o
“perdido” aparecia ou não.
Diz-se que a senhora
Margarida também era especialista em rezas para afastar quebrantos e
tinha mezinhas para curar maleitas.
Enfim: bons velhos tempos
esses das encomendas de “missas a metro” ouvidas para alívio daqueles
que, mediante o pagamento de preço ajustado, procuravam, assim, remir
as suas faltas.
Gaspar Albino
Aveiro, 27 de Maio de 2013 |