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BOLORES

O Senhor Pinheiro

O Sr. Pinheiro era barbeiro. Rima e é verdade. Era um senhor de mediana estatura, habitualmente vestido de escuro,  que andava sempre com uma maleta semelhante à das que os médicos usam para transportar as ferramentas da sua profissão. A dele também servia para transportar a sua barbearia. Era vizinho da casa da minha avó Joaninha, ali para os lados da Fonte dos Amores, fonte que, na minha meninice, presidiu vaidosamente a um lugar mágico duma Aveiro que já lá vai. Hoje, essa fonte está seca e escondida no fim da Avenida Araújo e Silva, saudosa dos seus tempos em que a sua água, límpida, matava a sede dos seus vizinhos. Os tanques que ficavam a seu lado e onde a roupa branca de meio Aveiro era lavada foram destruídos para dar lugar a um incaracterístico bloco de apartamentos. O relvado que tudo emoldurava era onde a roupa se punha a corar. Esse relvado também foi levado pelo sopro de determinado tipo de progresso que nunca cheguei a entender. Ter-se-á ganho cidade com essa perda? Julgo que não.

Mas voltemos ao Sr. Pinheiro que Deus tem, personagem principal deste meu escrito. Como já referi ele era barbeiro, um barbeiro como já não há. Com efeito ele não tinha um espaço próprio para exercer a sua profissão, um espaço onde os seus clientes fossem procurar os seus serviços. Era ele que ia a casa de todos os que precisassem dos seus talentos de competente barbeiro. Nunca o ouvi falar de falta de clientela que ia desde os alunos e professores do Seminário Diocesano até aos presidiáros da nossa comarca. Quer no Seminário, quer na cadeia, ele trabalhava dias seguidos, sendo os cortes de cabelo e barba feitos de revoada.

O dia em que ele ia a casa de minha avó para me cortar o cabelo era sempre um dia especial pois que obrigava a alguns preparativos. Em primeiro lugar havia que colocar na sala de jantar duas cadeiras, uma, normal, de tampo de madeira e outra, mais pequena, em cima da primeira, de forma a dar a altura adequada para a função.  A minha tia Florize já sabia o que a casa gastava. Então, colocava uma bacia das mãos com água tépida em cima da mesa, e a seu lado um lençol lavado. Eu trepava para me sentar na cadeira pequenina e o Sr. Pinheiro depois envolvia-me no lençol amarrando as pontas à volta do meu pescoço. E lá começava a tosquia, cirandando o barbeiro e a sua tesoura à minha volta. “Não te mexas menino” era só o que ele me dizia, procurando, com mão firme, colocar sempre a minha cabeça de modo a facilitar a sua tarefa. O cabelo cortado ia caindo para o chão e era a minha tia que se encarregava de ir procedendo à sua remoção. O que me provocava algum receio era ver a longa navalha que ele afiava com movimentos ritmados numa amoladora de couro dum preto brilhante. Depois era o ensaboar com o pincel que ele mergulhava numa malguinha de metal branco. Quando ele começava a aparar as patilhas e o pescoço com a navalha eu confesso que tinha medo. Mas nunca o Sr. Pinheiro me cortou. No fim, penteava-me, amainava o remoinho do meu cabelo rebelde com um pouco de brilhantina, desinfectava com álcool o meu pescoço e depois com uma escova pequenina polvilhava a pele por onde tinha trabalhado com a navalha com um pouco de pó talco.

Três leves pancadas com a escova na minha moleirinha eram sinal de que a tarefa estava terminada. O Sr. Pinheiro, então, chamava a minha avó para que ela apreciasse o corte de cabelo e desse a sua aprovação. Eu só me sentia aliviado quando descia das cadeiras e via o Sr. Pinheiro agradecer à minha avó o pagamento devido pela tarefa bem executada.

O que venho de descrever já contei aos meus netos que tudo ouviram com ar incrédulo. “Então era assim no tempo da meninice do avô?”, perguntaram-me. “Era, sim, meus meninos…” afirmei eu sem deixar margem para dúvidas.

O que me questiono hoje e agora não é o que vivi e como vivi. O que me questiono é ver como as realidades mudaram tão radicalmente e de tal forma que senti a profunda, a imperativa necessidade de passar a escrito o que vivi e como vivi para que os jovens de hoje tomem consciência do que foram os tempos idos.

Gaspar Albino

Aveiro, 9 de Dezembro de 2012

 

04-05-2018