O Ti António Peralta era o
encarregado da vacaria do Dr. Pompeu Cardoso, conhecido dentista da
minha juventude com consultório próximo da desaparecida livraria do
Sr. Reis, que ficava na esquina onde hoje, em edifício diferente, está
a Companhia de Seguros Fidelidade.
O dentista era um homem
esgalgado, alto, direito que nem uma trave, que passava todos os dias
em frente à casa da minha avó Joaninha a caminho do seu trabalho. A
sua casa, um pouco para sul, na rua de Ílhavo, actualmente rua do Dr.
Mário Sacramento, era muito bonita: uma vivenda recolhida em precioso
jardim. Hoje ainda perdura: é a sede da Junta de Freguesia da Nossa
Senhora da Glória.
Essa casa fazia, e faz,
gaveto com a rua das Pombas, rua esta que desaguava, então, nas hortas
de São Tiago, já fora de portas. Era pelo portão situado nesta rua que
tínhamos acesso à vacaria da quinta do Dr. Pompeu Cardoso, anexa ao
jardim da sua vivenda.
Já lá vão sessenta e
tantos anos… Mas, na minha mente, o que vou contar passa como se fosse
um filme de evento ocorrido ontem.
Uma das tarefas de que a
minha avó Joaninha me incumbia, diariamente, era a de ir buscar leite
à vacaria para o consumo da casa de que era, porque viúva, matriarca.
Levava uma leiteira de alumínio, que a minha tia Florize, irmã de
minha mãe, lavava sempre muito cuidadosamente para que o leite não
“talhasse”. A distância que mediava da casa da minha avó até à vacaria
do Dr. Pompeu Cardoso não era grande; não mais do que dez minutos em
passo de criança. Quem me abria o portão era o Ti António Peralta,
senhor de poucas falas, que cuidava, com enorme esmero, das vacas e da
sua acomodação. Ele conhecia bem a minha avó e, talvez por isso,
tratava-me com grande carinho.
“Anda cá, menino”,
dizia-me ele, já sentado no seu mocho, bem ao pé do úbere de uma das
vacas. E eu lá me aproximava dele, sempre com muito respeito pelos
animais, enormes face ao meu corpo de garoto. O Ti António lavava as
tetas da vaca que ele ia ordenhar, agarrava na leiteira e dizia-me:
“Põe-te a jeito que já vais provar o leite do animal”. Eu abria a
boca, quase que me ajoelhava, e recebia, boca aberta, o primeiro
leite, quentinho e saboroso, que esguichava da teta que ele
manipulava. Depois, enchia a leiteira e, à despedida, dizia sempre o
mesmo: “Até amanhã, meu menino”. Ainda a lamber os beiços, lá
regressava eu para casa da minha avó.
Quem mandava na cozinha
era a minha tia Florize. O leite nunca era arrumado no
armário-mosqueteiro sem ser previamente fervido. No dia seguinte,
antes de se tomar o pequeno almoço, na mesa da cozinha, a minha tia
retirava do fervedor a grossa camada de nata que se formara à
superfície do leite para uma malga que ela tapava com um guardanapo
alvinitente. As doses da nata diária acumulavam-se e, à sexta-feira à
tarde, eu ia sempre assistir ao trabalho que a minha tia executava com
um desvelo muito grande. Durante o tempo que ela julgava necessário,
ela batia as natas, juntava um pouco de sal moído, e, no fim, dava-me
um pouco da manteiga assim produzida para eu provar. Que era saborosa,
era. Ainda hoje tenho saudades dessa manteiga tão caseirinha, tão
natural, tão próxima de nós.
Gaspar Albino
3/12/2012. |