Lembro-me como se fora hoje. Nervoso,
muito nervoso, pois sentia a responsabilidade da prestação da minha
primeira prova oral na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,
acabara de me sentar no banco corrido da enorme sala.
À minha frente, o júri que me iria examinar na cadeira de Direito
Constitucional; um juiz desembargador e o Professor Doutor Carlos
Moreira, que eu conhecera somente da prova escrita.
Vicissitudes de estudante trabalhador, nessa altura chamado de
"voluntário". O que eu era; o que sempre fui.
Depois de um "boa tarde" que me soou a ríspido, surgiu a primeira
pergunta:
— Diga-me, senhor, qual é a sua
naturalidade? Face ao seu ponto, tenho dúvidas.
Fiquei perplexo... Eu preenchera o cabeçalho da prova como sempre o
fizera desde a minha Escola Primária e nunca alguém ficara com dúvidas.
E por isso respondi com convicção:
— Sou natural da freguesia da Glória, concelho de Aveiro.
— A sua resposta é incorrecta. Pense bem — interveio o Professor.
Olhei-o incrédulo. Fora assim que o meu professor da Escola Primária me
tinha ensinado e fora assim que eu me habituara a preencher todos os
documentos legais ou correntes em que tivesse de declarar a minha
naturalidade.
E foi isto mesmo que eu me atrevi a dizer de viva voz.
— Pois, meu caro senhor, está mal. Esteve sempre mal. Eu sei que é essa
a prática, mas tal não deixa de ser incorrecto. Acima de tudo para um
estudante de Direito Constitucional. E já que não sabe, aí vai um pouco
de História.
O senhor é natural da freguesia de Nossa Senhora da Glória. Isto é que
está conforme à Lei; isto é que a História releva.
E, depois, foi um desfilar de encantamento rico de factos e datas
referentes à História de Aveiro que me deixou ficar embasbacado. Tanta
coisa sobre a minha terra que eu desconhecia. Fiquei pequenino.
Mandou-me embora com um "vá em paz" sem me fazer qualquer outra
pergunta. Ao fim da tarde, soube pelo bedel que tinha passado
exactamente com a mesma classificação que obtivera na prova escrita.
Fiquei feliz por isso e por ter ficado mais rico de conhecimentos.
Mais tarde, em Novembro de 1985, vinte cinco anos passados sobre este
meu exame, vim a fazer um pequeno arranjo gráfico para um opúsculo de
monsenhor João Gonçalves Gaspar, o historiógrafo aveirense que tanto me
tem honrado com a sua amizade.
Seu título: "Aveiro e as suas Freguesias — no sesquicentenário da
freguesia de Nossa Senhora da Glória".
Li-o de fôlego, pois todo o seu conteúdo me fazia lembrar a verdadeira
lição de História em que o meu exame de Direito Constitucional se tinha
convertido.
Pelo seu rigor e recorte literário, entendo dever transcrevê-lo, em
grande parte, com a vénia devida ao autor.
«Breve explicação
Durante este ano de 1985, comemorou-se o 150º Aniversário da nova
divisão administrativa e eclesiástica de Aveiro, pelo qual as quatro
freguesias da cidade ficaram reduzidas a duas; consequentemente, pelos
mesmos documentos de então, foram suprimidas as freguesias de Nossa
Senhora da Apresentação, do Espírito Santo, e de S. Miguel. A primeira
foi incorporada na da Vera-Cruz; as outras duas foram simplesmente
suprimidas, para darem lugar à de Nossa Senhora da Glória.
1 — Uma única freguesia
Desde os tempos da Reconquista Cristã e da reorganização da Igreja no
território de entre os rios Douro e Mondego, o povoado de Aveiro
constituía uma única freguesia, cuja matriz era a igreja de S. Miguel.
Construída certamente nos finais do século XI por iniciativa de D.
Sisnando, conde de Coimbra e vassalo de D. Fernando Magno, rei de Leão,
o primeiro edifício erguia-se num outeiro relativamente elevado, onde
talvez tenha existido uma fortificação e uma mesquita.
Sobranceiro ao mar, que por aí entrava e formava uma comprida baía com
diversos braços — entre os quais o que se prolongava até ao rio Marnel —
o incipiente "Alavário" era um lugar avançado da região conimbricense,
voltado para o norte. Nos seus arredores, já nos meados do século X, a
Condessa Mumadona Dias possuía terras e salinas que, por doação de 26 de
Janeiro de 959, doara ao Mosteiro de Guimarães.
A igreja de S. Miguel — dedicada a este Arcanjo que se tinha por
defensor dos cristãos contra as arremetidas do demónio e nas lutas
contra os sarracenos — merece uma referência especial. Era o mais antigo
monumento de Aveiro, reconstruído e ampliado diversas vezes ao longo dos
séculos, uma das quais em 1420 por ordem do Infante D. Pedro. Embora de
uma só nave, era grande e construída de pedra e cal. Situava-se na
actual Praça da República, onde hoje se ergue a estátua de José Estêvão,
sendo a porta principal voltada para poente e a capela-mor ombreando a
rua da Costeira. As paredes, à data da demolição em 1835, encontravam-se
cobertas de azulejo, pelo interior. A torre esguia, um tanto arruinada,
ostentava três sinos e uma sineta. Possuía duas sacristias, um púlpito
de grade de pau-preto torneado, onze altares votivos, e o baptistério
com pia de pedra branca lavrada. O altar-mor, com retábulo de talha
dourada, era dedicado ao Titular, cuja última imagem, estofada e
dourada, se encontra presente na catedral. Anexa ao templo era a capela
de Santo Ildefonso, primeira sede da Confraria de Nossa Senhora da
Misericórdia, fundada em 20 de Agosto de 1506, cujo primeiro
"Compromisso" tem a data de 11 de Dezembro de 1519. No adro,
levantava-se uma capela em estilo gótico, dedicada à Mártir Santa
Catarina, e outra consagrada a Santo António; esta, em frente da cadeia
— que era nos baixos dos Paços do Concelho — tinha uma porta com a
largura necessária para, aberta, os presos poderem ver e ouvir Missa em
todos os domingos e dias santos.
2 — Quatro freguesias
No século XVI, a região de Aveiro continuava dentro dos limites da
Diocese de Coimbra que, para o norte, se estendia até ao rio Antuã, que
corre ao lado de Cambra, de Oliveira de Azeméis e de Estarreja. A
partir de 1545, presidiu ao Bispado D. Frei João Soares, frade
agostiniano, que participou no último período do Concílio de Trento;
terminando este em 1564, o prelado foi em peregrinação ao Santo
Sepulcro, em Jerusalém, e regressou a Coimbra. Vinha decidido a pôr em
prática, tanto quanto lhe fosse possível, a reforma pastoral decretada
pela magna assembleia tridentina.
D. João Soares tratou logo de fazer uma visita às freguesias da sua
Diocese; para a preparar, mandou previamente que se fizesse o
recenseamento da população de cada uma. Por ele se achou que Aveiro, em
1572, tinha 11.365 pessoas de comunhão; o bispo reconheceu ser excessiva
tal população para uma só freguesia e determinou dividir a então vila em
quatro paróquias. Como a igreja de S. Miguel pertencia ao padroado da
Ordem de S. Bento de Avis, tal divisão não se podia fazer sem o rei ser
consultado; ele era o grão-mestre da mesma Ordem. D. Sebastião anuiu
logo e deu a autorização pretendida. O prelado, por provisão de 10 de
Julho de 1572, parcelou o território nas seguintes freguesias: São
Miguel, composta pela quase totalidade da vila muralhada e pelo
bairro do Alboi, a ocidente; Espírito Santo, que agrupava uma
parte da vila muralhada com os Conventos de S. Domingos, de Jesus e de
Santo António e se estendia para sul, compreendendo o Cimo de Vila,
Vilar, São Bernardo, Santiago e parte da Presa e da Quinta do Gato;
Nossa Senhora das Candeias ou da Apresentação e Vera-Cruz, ao
norte do canal central da ria, aquela, para poente, e esta, para
nascente. À freguesia da Apresentação pertencia ainda todo o território
da ria desde a "cale da vila" até ao canal de Ovar (São Jacinto era da
jurisdição de Ovar), e a Vera-Cruz tinha dentro dos seus limites os
Conventos do Carmo e de Sá e alargava-se por parte da Presa e da Quinta
do Gato. Depois desta divisão, a freguesia de S. Miguel ficou com cerca
de 4.500 habitantes e cada uma das outras com 2.500. A velha matriz
manteve para si a parte mais nobre da vila, a mais distinta e a mais
favorecida de fortuna; haviam-lhe escapado, porém, os três Conventos das
Ordens Mendicantes de S. Domingos e de S. Francisco.
3 — Duas freguesias
Nos princípios do século XIX, notava-se que a velha divisão do País se
tinha tornado anacrónica e incompatível com as necessidades sociais.
Logo na Constituição de 1822 se futurava a divisão do território em
distritos e o modo de neles se fazer a administração judicial, política
e civil. A Carta Constitucional de 1826 manteve tal projecto. Passados
anos, em 1833, o território nacional era dividido em oito províncias: —
Minho, Trás-os-Montes, Douro, Beira-Alta, Beira-Baixa, Estremadura,
Alentejo e Algarve; estas foram subdivididas em comarcas, que, por sua
vez, o foram em concelhos. A comarca de Aveiro ficou situada na
província do Douro. Por se verificarem graves inconvenientes na divisão
provincial, que eram circunscrições administrativas demasiado extensas,
abolir-se-ia tal divisão com esse carácter em favor da divisão
distrital, subdividida em concelhos. Assim, em 18 de Julho de 1835, o
Governo fez publicar um decreto, com base na lei de 25 de Abril
anterior, fixando em dezassete o número de distritos no continente
português e indicando os nomes das suas capitais; em 25 do mês seguinte,
seriam nomeados os respectivos governadores civis. O distrito de Setúbal
viria a ser criado em 1926. Após a instituição do distrito de Aveiro e
da entrada em funções de José Joaquim Lopes de Lima, seu primeiro
responsável, foram as quatro freguesias da cidade reduzidas a duas, por
alvará de 11 de Outubro de 1835, assinado pelo governador civil;
publicado o documento, foi ele remetido ao bispo da Diocese, D. Manuel
Pacheco de Resende, que se teve de conformar com tal resolução e,
atendendo às razões expostas no mesmo alvará, mandou passar a respectiva
portaria com data de 13 de Outubro, para início do processo no foro
eclesiástico. Por esta forma, constituir-se-ia, ao norte do canal
central da ria, a freguesia da Vera-Cruz e, ao sul, a de Nossa Senhora
da Glória; o bairro de Sá era incorporado na primeira das paróquias.
Fora extinta a de Nossa Senhora da Apresentação, por um lado; e, por
outro, as de S. Miguel e do Espírito Santo davam lugar à de Nossa
Senhora da Glória, criada de novo. A matriz da freguesia setentrional
continuou na igreja da Vera-Cruz, que existia no actual largo do Capitão
Maia Magalhães. Dezenas de anos depois, pensando-se em construir um novo
templo, iniciou-se no mesmo sítio uma outra edificação que não chegou a
concluir-se e foi demolida em 1945. O centro religioso, transferido
provisoriamente para a igreja de Nossa Senhora da Apresentação, lá
acabou por ficar com carácter definitivo. A paróquia meridional, que
recebeu o nome de Nossa Senhora da Glória — talvez para honrar também a
Rainha D. Maria da Glória, que não apenas a Mãe de Cristo — passou a ter
como sede a igreja do extinto Convento Dominicano de Nossa Senhora da
Misericórdia. Quanto à vetusta igreja de S. Miguel, essa foi sacrificada
pelo camartelo demolidor. O aludido governador civil, a pedido de certos
políticos influentes, sentenciou a sua destruição, não fosse o nome do
Titular lembrar perpetuamente o do rei proscrito; e a demolição
iniciava-se ainda em Outubro de 1835, poucos dias depois de extinta a
freguesia. Antes, em 18 de Outubro, haviam sido conduzidos, em procissão
e com todo o respeito, as principais imagens deste templo para o de S.
Domingos. O acto foi precedido com um sermão em que o orador procurou
demonstrar que a destruição da igreja não tinha sido ordenada por ódio
ou desprezo da religião, incentivou os presentes a acompanhar o cortejo
que se ia fazer, e lembrou ao povo que se deveria conformar com as
determinações da autoridade, com o progresso dos tempos e com os bons
desejos de muitos habitantes de Aveiro. Apesar destas palavras,
numerosos ouvintes derramaram lágrimas e interromperam o discurso com
alaridos, protestando assim contra a demolição de um templo, digno de
respeito por muitos títulos. Por sua vez, a igreja do Espírito Santo, no
largo que hoje tem o nome de Luís de Camões, foi considerada inútil e
votada ao abandono; porque ameaçava ruína, acabou por ser profanada em
31 de Janeiro de 1836. As imagens foram conduzidas ocultamente para a
nova igreja paroquial; e, em 1841, foi apeado o cruzeiro, muito
semelhante ao de S. Domingos, que se levantava a pouca distância do
templo. Depois de dúvidas continuadas sobre a sua conservação, a Câmara
Municipal de Aveiro, de acordo com a Junta de Paróquia, determinou, em
10 de Fevereiro de 1858, que fosse demolida — o que se efectuou daí a
pouco. Os materiais empregaram-se na construção da torre da igreja de
Nossa Senhora da Glória. Para que a decisão de Outubro de 1835 tivesse
legalmente a completa execução canónica, o bispo de Aveiro, em 7 de
Março de 1836, mandou passar nova Provisão. Aí se declarava e confirmava
que o Padre Manuel Rodrigues Tavares de Araújo Taborda ficaria pároco da
freguesia da Vera-Cruz, atendendo a que o mesmo eclesiástico tinha
servido mais de trinta e seis anos a extinta paróquia de Nossa Senhora
da Apresentação; e que o Padre António Dias Ladeira de Castro, por sua
vez, seria o pároco da freguesia de Nossa Senhora da Glória, por ter
estado na de S. Miguel por mais de vinte e seis anos.
4 - Novas freguesias
A criação e o alargamento de uma rede de escolas dos diversos níveis de
ensino, a restauração da Diocese de Aveiro, a abertura e o melhoramento
da barra nova, a situação e o progresso do porto, o lançamento de
estradas, a passagem do caminho de ferro e o desenvolvimento de outros
meios de comunicação, aliados decerto ao espírito de iniciativa e de
aventura dos aveirenses, foram causas decisivas da evolução industrial,
comercial e demográfica de toda a zona, nomeadamente da cidade de Aveiro
e do seu concelho. Por isso, os responsáveis da Igreja e as autoridades
do Estado, indo ao encontro das aspirações do povo, têm sentido a
necessidade de, respectivamente, instituir novas paróquias para melhor
servir a comunidade católica e criar novas freguesias administrativas
para o interesse e bem-estar dos cidadãos.
A "Costa de São Jacinto", com a secular ermida de Nossa Senhora das
Areias, pertenceu, desde tempos antigos, à freguesia de S. Cristóvão de
Ovar; o seu território estendia-se mais ou menos naquela restinga de
areia, conforme a posição flutuante da barra. Contudo, em 1856, tanto
civil como eclesiasticamente, São Jacinto foi anexada à freguesia da
Vera-Cruz. Com efeito, o bispo do Porto, D. António Bernardo da Fonseca
Moniz, seguindo a portaria do Governo de EI-Rei D. Pedro V, de 10 de
Setembro desse ano, em documento de 22 do mesmo mês fez cessar a
jurisdição que o pároco da freguesia de Ovar exercia sobre os habitantes
da "Costa de São Jacinto", transferindo-a para o pároco da Vera-Cruz, da
Cidade e Diocese de Aveiro. Mas era sumamente custoso manter a ligação
religiosa e administrativa da povoação de São Jacinto com a matriz
paroquial e com os órgãos autárquicos da freguesia urbana da Vera-Cruz;
a ria e a distância não são fáceis de transpor e obstam à unidade. Além
disso, a localização de uma base aérea militar e a instalação de uns
estaleiros para construção naval tinham dado um decisivo impulso ao
núcleo inicial, constituído quase só por pescadores oriundos de uma
colónia murtoseira. Por isso, o prelado de Aveiro, em 3 de Fevereiro de
1953, deu-lhe autonomia eclesiástica, sendo seguido pelo Governo da
República em 16 de Fevereiro de 1955, o qual constituiu São Jacinto como
freguesia, separando-a da Vera-Cruz. Também a freguesia da Glória foi
demograficamente progredindo para o sul; no meio de terrenos agrícolas,
surgiram e continuavam a surgir variadíssimas habitações, num raio
equidistante da velha ermida de São Bernardo. Já vinha de há muito a
aspiração de independência religiosa desta zona; certas pessoas
influentes concentravam em si o desejo do povo e faziam-no chegar à
autoridade diocesana. O processo demorou 4 anos, com seus recuos e
avanços. Contudo, chegaria a almejada hora; foi em 4 de Julho de 1955
que D. João Evangelista de Lima Vidal instituiu a paróquia de São
Bernardo. Em 18 de Janeiro de 1969 o Governo da Nação dar-lhe-ia a
independência administrativa. Assim, esta freguesia pôde talhar com
decisão o seu próprio destino, criando e mantendo diversas estruturas
que respondem aos anseios de solidariedade, de formação, de cultura e de
desporto, para os diversos estratos sociais da população. Numa outra
área territorial, entre campos e florestas, começara a desenvolver-se,
em todos os quadrantes, uma nova zona populacional; existiam por aí os
antigos povoados da Presa, da Quinta do Gato e do Viso, com seus anexos,
divididos pelas freguesias de Esgueira, da Glória e da Vera-Cruz.
Tornara-se urgente dar unidade jurídica àqueles que convivam, nas mesmas
ruas e nos mesmos espaços geográficos; eram parcelas de comunidades
dispersas. Cativadas pela memória e pela figura da Princesa Santa Joana,
estas pessoas, a pouco e pouco, começaram a sentir o desejo de se
aproximarem umas das outras; pressentiam que, numa união de vontades,
seriam mais fortes para a realização das aspirações colectivas. Também o
bispo de Aveiro foi ao seu encontro, as incentivou, e, por fim, deu-lhes
a autonomia religiosa, em 11 de Novembro de 1969; mais tarde,
precisamente em 30 de Novembro de 1984, a Assembleia da República
votaria a lei que criou a freguesia de Santa Joana, a qual foi
promulgada em 29 de Dezembro e publicada em 31 seguinte, deste mesmo
ano. Não ficará por aqui, certamente, o progresso de Aveiro, mercê da
sua situação geográfica e graças ao espírito animoso dos seus
habitantes. A melhoria da barra, a ampliação do porto, a proximidade da
auto-estrada do norte e a via-rápida para Vilar Formoso e para o centro
da Europa serão meios preciosos para um maior crescimento não só da
cidade de Aveiro e do seu município, mas também de toda a região da Ria,
e mesmo de todo o território que do rio Douro se espraia até ao rio
Mondego.»
***
Por este texto de escrúpulo e rigor
histórico ficamos a saber o essencial da génese das freguesias de
Aveiro.
A começar pela Nossa Senhora da Glória,
lídima herdeira da primeira freguesia que Aveiro teve: a freguesia de
São Miguel.
A que teve como sé a destruída igreja de São Miguel.
Destruição que se não ficou por aqui, como tivemos oportunidade de ler
em Monsenhor João Gonçalves Gaspar.
E que se não quedou nos outros templos destruídos por razões que nem
sempre tiveram a ver com a sua vetustez, como também o académico
historiador muito intencionalmente deixa alinhavado.
Razões políticas, nos casos de destruição de templos.
Razões económicas, na maior parte dos edifícios civis.
Incúria e ignorância, em tantos mais.
Recupero, porque acho pertinente, texto que escrevi já há anos, quando
do centenário de Almada Negreiros, um dos maiores artistas portugueses
deste século e de quem o Tribunal de Aveiro guarda (?) preciosa
tapeçaria .
Aí vai, mantendo o título, pois que também o continuo a considerar
adequado:
EM AVEIRO AINDA TEMOS "ALMADA"
1º Momento
Algumas paredes pretas dos fumos e dos líquenes do tempo poderiam ainda
restar do que fora a igreja matriz de São Miguel.
Mas o chão, esse, tinha de ser aplainado para garantir assento ao
pedestal sobre o qual se viria a colocar a estátua do nosso tribuno
maior: José Estêvão.
As ossadas e os restos de jazigos foram todos misturados com o terriço e
o largo, assim conquistado, fronteiro à Câmara Municipal de Aveiro,
passou a permitir uma leitura mais desafogada do seu edifício e a ter no
seu centro o monumento da nossa gratidão colectiva.
Aliás, o Liceu já estava de pé, por conta do gesto largo e esforçado,
suporte do verbo do nosso parlamentar maior que tinha sido o primeiro
cimento para a sua construção.
Dois dos lados, o de poente e o de sul, do largo do nosso Poder Local,
ao longo dos tempos popularmente chamado de largo da Cadeia, largo de
José Estêvão, largo da Câmara e quase nunca chamado pelo seu nome
oficial de hoje — Praça da República — estavam completos, pois que o Rei
tinha desembolsado uns cobres e decidido ajudar a constituir uma
sociedade anónima, para a qual convidou a Câmara como accionista,
vocacionada para a fundação dum teatro, o primeiro Teatro Aveirense, que
se veio a pôr de pé por conta da destruição de mais uns quantos prédios
"menores" da velha urbe, com destaque para a albergaria de S. Braz.
Nos outros dois lados do largo, a consciência colectiva ficou
tranquilizada com a manutenção da Igreja da Misericórdia, a nascente; os
edifícios de primeiro andar que confinavam o espaço, por norte, onde se
contava o velho Correio, esses ficariam guardados para sanha destruidora
posterior.
Entretanto, já se ligara o centro cívico do Poder Local a outra praça —
a do Poder Central — onde se pôs de pé o primeiro edifício do Governo
Civil. Este também carecia de espaço condigno.
Foi fácil: cortou-se a meio o Convento das Carmelitas, deixando-se,
desventrado, meio claustro, virado para a nova praça, permanecendo,
talvez por milagre, a igreja das Carmelitas, à qual roubaram somente a
parte do coro alto, e onde, premonitoriamente, não se deixou de colocar
num dos seus alçados, acintosamente, uma placa toponímica com o nome do
"mata frades”, o ministro do reino Joaquim António de Aguiar, placa essa
que se manteve até há bem pouco tempo.
Mas assim se ganhou um espaço bonito, airoso, digno: o largo do Governo
Civil, como o povo lhe chama, mas oficialmente, Praça Marquês de Pombal,
bem ligado ao largo da Câmara, por uma rua direitinha, tirada a régua e
esquadro, a de Gustavo Ferreira Pinto Basto, paralela à outra, a
Direita, torta como sempre foi, porque quase intocada através dos
tempos.
2° Momento
Ora é nesta praça, a de Marquês de Pombal, muito depois do seu
surgimento, já nos anos quarenta, que o engenheiro Duarte Pacheco decide
mandar construir um airoso e arquitectonicamente escorreito edifício dos
Correios destinado a substituir a velhinha estação que perdurava num dos
vetustos edifícios fronteiros à Câmara Municipal.
Cotinelli TeImo, homem de mão para as arquitecturas do Ministro, terá
sido testemunha do momento da decisão. Respigamos descrição feita na
época::
"O Ministro dá audiências...
Do seu gabinete sai apressado um Director Geral, um Engenheiro, o
Presidente de uma Câmara, um Arquitecto, não importa quem. Para quem
espera, o que importa é que alguém saia, sinal de que se aproxima a sua
vez de ser absolvido ou condenado inexoravelmente.
Lá dentro os assuntos
sucedem-se e são variadíssimos; cá fora apenas se tem a certeza, quando
sai mais um, que se travou um combate de ideias e decisões e que quem
sai, vem vencido: vencido na corrida de velocidade do diálogo travado,
em que o Ministro o crivou de perguntas, lhe atirou projectos por terra,
sugerindo-lhe partidos diferentes, exigindo mais, varando-o com as balas
certeiras de uma crítica em rajadas, com relâmpagos nos olhos, um dedo a
empurrar — "não é assim?" — vencido até pelo estalar súbito de um
aplauso: — "Bom! Muito bom! Bonito! Adiante!...".
O Ministro rapa, entretanto, do n.º 2, acabadinho de sair, da revista
PANORAMA, (1941), e lê aos circunstantes as páginas 18 e 19. É uma nota
apreciativa de Carlos Queiroz sobre a exposição de Almada, "Trinta Anos
de Desenho — 1911-1941", que todos ouvem com atenção.
"Para qualquer homem que
atingiu, conscientemente, o apogeu da maturidade, trinta anos de vida é
uma vida inteira. Se é artista ou poeta, se é um ser criador, impõe-lhe
o destino, em dado momento, completa versão da obra realizada.
Foi o que Almada fez agora. Debruçou-se nos seus desenhos e reconheceu
ter valido a pena dar ouvidos ao que o seu Anjo da Guarda, a todos os
instantes lhe dizia: — "Anda! Começa já! Começa já a cuidar da tua
presença!". Daí, esse importante acontecimento que foi a sua recente
exposição (no estúdio do S. P. N) de "Trinta Anos de Desenho".
Quem, ignorando a biografia do artista, tão rica de experiência humana,
soube observar, profundamente, o desenvolvimento cronológico dos
trabalhos seleccionados, sem dúvida compreendeu que Almada, em relação a
uma época antes dele começada e ainda por terminar, é um desses casos
nacionais de espantosa e perturbante imparidade. Um artista que sempre
exigiu tudo de si mesmo numa tensão permanente de sondagem, descoberta e
renovação. — Futurista. Claro que o foi, mas só pela razão de ter sido,
num país prenhe de memória numa idade parasitariamente histórica, o
maior inimigo do lugar-comum, do convencionado, do fácil, do bonitinho,
do aparencial. Noutro sentido, foi e é apenas um grande artista moderno.
E chega.
A sua personalidade evoluiu ritmicamente, naturalmente, como uma árvore.
Quando se diria que a germinação estancou, surge uma flor inédita, um
fruto inesperado. E tudo a caminho duma simplicidade mais pura, mais
forte, mais profunda.
Na origem, vê-se um poeta cuja exuberante fantasia e múltiplos recursos
de expressão não cabiam, totais, no seu tempo de vida, e que foi levado,
por isso, a escolher, a apurar e a exprimir o mais sensível dos seus
dons: a visualidade.
O que representa, como valor social, a individualidade criadora de
Almada, pode, talvez, resumir-se deste modo: — Se a palavra "mestre" não
se empregasse, quase sempre, entre nós, senão para qualificar os
artistas que ensinam aos outros os processos da sua arte, podíamos e
devíamos chamar-lhe "mestre Almada Negreiros.”
A terminar a página, um desenho: "Mulher deitada a escrever uma carta".
É bonito", diz o Ministro. "Fica bem neste projecto dos Correios de
Aveiro. Mesmo aqui no átrio, na zona do público, para que este se comece
a habituar a conviver com as coisas da Arte e, acima de tudo, com aquilo
que os nossos "modernos" vão fazendo. E apontava para a planta dizendo
os locais onde antevia os "a fresco" que resultariam do desenho.
Digam-lhe, ao Almada, que pense num simétrico para o mesmo tema".
3° Momento
Mal acabado o meu curso técnico-profissional e já me encontrava a
trabalhar, nos meus quinze anos de vida.
Uma das minhas tarefas era, religiosamente, todas as manhãs, deslocar-me
aos Correios de Aveiro, para ir buscar à secção de apartados a
correspondência da empresa.
Das 8 h 30 até às 9 h 30, nesses anos de cinquenta, formava-se um
aglomerado de pessoas que me permitia tempo para namorar com os olhos os
"a fresco" bonitos que se quedavam dum lado e doutro dos balcões de
atendimento ao público.
Ao princípio não sabia quem tinha sido o seu autor. Mas que eram, aos
meus olhos de quase menino, um encanto, lá isso eram.
Depois descobri a assinatura.
Ao princípio não sabia se teria sido o próprio Almada a transportar para
a parede a pintura dos cartões que terão existido no desenvolvimento do
desenho a que o Ministro Duarte Pacheco se tinha preso.
Mas que a textura resultante da pincelada era uma maravilha que revelava
um total domínio da técnica do "a fresco" lá isso era.
E que o cromatismo, mescla de magenta, ocre, cião, amarelo, gradantes de
tonalidades enriquecedoras do desenho, era dum chamatismo inebriante,
também era facto.
Tempos depois, pelo aveirógrafo
impenitente Eduardo Cerqueira, vim a saber que fora o próprio Almada
quem andara a pintar, empoleirado em andaimes, as bonitas alegorias.
Com os meus botões, ia-me preocupando com o surgir de humidades que,
aqui e além, começavam a escurecer as pinturas.
E ia-me, também, perguntando quando e quem seria capaz de deitar mão à
tarefa de salvaguarda de tão maravilhoso trabalho.
4° Momento
Um dia chego aos Correios, no meu trabalho de rotina.
O átrio estava numa balbúrdia.
Andaimes por tudo o que era sítio, e operários afanosos a picar tudo o
que tinha assomo de humidade. Meu pensado, meu feito.
Os "a fresco" de Almada já tinham desaparecido à frente do cinzel dos
trolhas.
Já era tarde demais.
Fiquei apertado num amargo de boca que me deixou nervoso.
Ainda falei. Mas o responsável administrativo disse que tudo tinha sido
"competentemente" autorizado e que os trabalhos de pintura se iriam
executar de acordo com o "legal caderno de encargos".
Depois, foi um escrito do saudoso Eduardo Cerqueira, homem de Aveiro
sempre agarrado aos seus jornais, com o lamento infrutífero.
Um bocado do Almada aveirense tinha sido assassinado.
E o património (?) da minha cidade, mais uma vez, tinha sido delapidado.
5° Momento
No
dia 11 de Maio deste ano, logo de manhã, desloquei-me ao Tribunal de
Aveiro para rever a maravilhosa tapeçaria de Almada Negreiros, com uma
alegoria da Justiça Salomónica, que adornava, a preceito, a parede de
fundo de uma das salas de audiências, e que lá estava desde a construção
do Palácio. Subi a escadaria, entreabri a porta e, para meu espanto, a
parede estava nua. Ainda dei uma espreitadela na outra sala de
audiências onde se encontra uma muito boa pintura a fresco de Martins
Barata. Esta não foi destruída. Desci as escadas e dirigi-me ao balcão
de informações procurando saber da sorte da tapeçaria de Almada. O meu
coração acalmou ao ouvir da boca de uma senhora muito educada que a
belíssima peça de Almada tinha finalmente sido enviada para reparação.
Sensatamente a mesma senhora mais me disse que a tapeçaria tinha estado
no seu lugar durante todo o período de obras a que o tribunal
ultimamente foi submetido, sem qualquer protecção. Mas esta tapeçaria,
pelo menos, continua a existir. Só espero que regresse ao seu lugar de
sempre e não siga o destino de outras, por exemplo as pinturas do teto
da Igreja das Carmelitas, que foram para reparar há dezenas de anos, ao
que me disseram para Lisboa, mas que até agora ninguém me sabe dar conta
delas.
***
Por tudo isto que se vê ao longo de todo este meu discorrer, há um travo
amargo provocado pelas coisas que já tivemos e que, pelas razões já
também invocadas, foram desaparecendo desta terra de Aveiro.
***
Sou filho duma simbiose difícil: nasci na freguesia da Glória, ao que me
dizem ali para os lados da travessa de São Martinho, mas filho de pai "cagaréu",
marinheiro, e de mãe "ceboleira".
Já lá vão os tempos em que se roubavam os andores e se apedrejavam os
namorados das freguesias rivais, se ridicularizavam, reciprocamente, as
referências caracterizadoras dos nascidos na Vila Velha, a Glória, e na
Vila Nova, a Vera-Cruz.
Sou simbiose disso tudo: fruto do salgado do peixe maila cebola e a
chanfana.
E, por isso mesmo, quando olho para a freguesia onde nasci — a Glória —
não sou capaz de nela pensar sem deixar de também me sentir vestido de
camisa de linho branco e de manaia azul.
O que me dá muita tranquilidade para falar de Aveiro, sem me deixar
envolver pelos liames de bairrismo estreitos.
Até porque, curiosamente, as imagens mais antigas da nossa terra,
correspondem a uma leitura setentrional da vila que, historicamente, se
foi constituindo sobre a colina que definiu as fronteiras da que é hoje
a freguesia da Glória.
Isto é: uma leitura tomada sempre pela perspectiva da Vila Nova ou do
lado da nossa Beira-Mar. As gravuras que há da vila de Aveiro mostram
quase só o território da então freguesia de São Miguel, com as muralhas
mandadas construir por El-Rei D. João I e que o Infante D. Pedro tornou
realidade.
Sobre os restos dum incêndio demolidor, os muros dessa muralha começaram
a ser construídos em 1418, para defesa da liberdade da nossa terra.
Passados quatro anos estavam terminadas as muralhas que definiriam o
núcleo duro do que é hoje a freguesia da Glória.
As muralhas, "/.../ além de
quatro postigos e de vários torreões, tinham oito portas: a Sul, dando
entrada na Rua Direita, a da Vila, ornada com o brasão do /.../ Infante
D. Pedro e com a data de MCDXVIII; para oriente desta e em frente da Rua
da Corredoura, a do Sol; seguiam-se as do Campo e do Cojo ou Cais; a da
Ribeira, situada junto à ponte e à rua da Costeira; /.../ para ocidente
e para sul, encontravam-se as do Alboi, de Rabães e de Vagos." — (Aveiro
— Notas Históricas, pág. 39 — Monsenhor João Gonçalves Gaspar).
É desta Aveiro muralhada nos princípios do século XV — só quase a Vila
Velha, hoje freguesia da Glória — que guardamos a memória garantida por
gravura executada presumivelmente no séc. XVIII.
Do que escreveu Pinho Queimado, na sua "Memória sobre a Villa de
Aveiro", narrativa datada de 27 de Janeiro de 1687 e que é a mais antiga
que se conhece, ficaremos com a sua opinião quanto àquela nossa
freguesia que ele chamou de quarto bairro:
/.../ “que é o melhor e o mais antigo da
Villa em que reside quasi toda a nobreza d'ella; e este somente é
cingido de altos muros, obra então magnífica do Infante D. Pedro filho
do sr. Rei D. João o primeiro, e os melhores, que se conservam desde
aquele tempo. Têm estes, como os de Jerusalem, nove diversas entradas
(bem que neles se encontrem doze portas), e é a primeira a que chamam a
da Villa, da qual sae para o caminho real uma larga rua, que
dividindo-se com a igreja do Espírito Santo em outras duas, já cercadas
de frescas hortas, e lavranças — terra de ceboleiros!, acrescentamos nós
—, acompanha para o nascente as fábricas dos oleiros /.../."
São estas muralhas, que acompanham o período áureo da nossa comunidade,
que Rocha e Cunha, no seu "Relance da História Económica de Aveiro" —
(conferência realizada em 14 de Junho de 1930), procura explicar como
contendo gente com uma "psicologia especial em qualidades e defeitos,
que a distinguem, ainda hoje, da das outras povoações da região. Uma
corrente comercial, se representa materialmente um intercâmbio de
mercadorias, representa também espiritualmente um intercâmbio de
civilizações diferentes. O contacto que essa corrente estabeleceu com os
povos do Norte, sobretudo ingleses, flamengos, holandeses, a larga
permanência de elementos destes povos na própria vila, imprimiu à
burguesia aveirense um carácter, e uma mentalidade diferente das outras
populações /.../."
/.../ este aspecto da mentalidade da sua burguesia dos séculos XV e XVI
ainda hoje é um facto, como ainda é um facto o amor pela ordem, pela
liberdade, pela economia, a tolerância, a morigeração de costumes, o
asseio doméstico, e o gosto pela pompa dos cortejos religiosos."
(páginas 17 e 18 da mesma obra).
Falar da sorte de Aveiro é falar da sorte da nossa Ria e da nossa Barra.
Conforme nos diz também Rocha e Cunha no texto duma outra sua
Conferência, realizada em 5 de Maio de 1923, na sede da Associação dos
Engenheiros Civis Portugueses, subordinado ao título "O Porto de
Aveiro", "Nos séculos 15º e 16º a população da região de Aveiro,
favorecida pelas condições do porto marítimo, tinha elevado a um alto
grau as suas aptidões agrícolas, marítimas, industriais e mercantis, e
gozava os benefícios de uma riqueza criada pelo esforço de muitas
gerações. A população da vila regulava por 14.000 habitantes, entre eles
muitos estrangeiros, quase a população actual /.../".
Ainda de acordo com outro texto do mesmo autor. (Relance da História
Económica de Aveiro, págs. 13 e 14, 1930):
"/.../ O movimento do porto (por essas épocas) era contínuo: de dia e de
noite, marítimos, marnotos e medidores, armavam as suas tendas fora das
muralhas para carga e descarga dos navios.
Não tocava o sino da ronda, e não se fechavam as portas da vila do lado
da Cale de S. João, para permitir a entrada e saída livre a qualquer
hora, /.../. O armamento para o comércio marítimo tinha atingido o seu
apogeu; a praça tinha cem navios que se empregavam principalmente no
comércio de sal para os portos da costa, e para o estrangeiro."
"A descoberta da Terra Nova em 1501 criou um novo campo de acção para as
aptidões marítimas da vila. A capacidade de iniciativa, o poder de
realização da sua burguesia marítima, a sua visão nítida das realidades
económicas, afirma-se imediatamente".
Eram cinquenta as caravelas empenhadas nesta pescaria do bacalhau. E
mais à frente:
"A vila concentrava todo o seu esforço nos trabalhos e tráfico do mar;
porém a actividade agrícola da região, fornecendo as subsistências ao
grande agrupamento urbano, e alargando assim a própria capacidade de
compra, prestara sólida laboração à actividade mercantil".
/.../
"A passagem do canal da Barra para o sul do extremo norte das dunas da
Gafanha, em 1575, consequência da acção permanente dos elementos activos
da formação lagunar, produziu fenómenos /.../ que acabaram de arruinar,
nos séculos XVII e XVIII, a economia regional."
/.../
"Em 1611 já a praça de Aveiro não tinha um único navio".
/.../
"A navegação nacional tinha desaparecido".
"No movimento do Porto de Aveiro de 1619 a 1624 figuraram duzentos e
oitenta navios", todos de bandeira estrangeira, "uma média de quarenta e
seis navios por ano."
/.../
"De 1683 a 1699 entraram apenas duzentos e quarenta e cinco navios
estrangeiros, média anual de catorze".
"Durante o século XVIII entraram 238 navios, média anual de 2,3".
/.../
"No fim do século XVII a burguesia mercantil tinha desaparecido."
/.../
"/.../ Os poucos habitantes de Aveiro que podiam reparar as suas
habitações aproveitavam delas os materiais que não podiam conseguir
doutra forma. A miséria remendava-se com os despojos de outra miséria."
"No fim do século XVIII Aveiro tinha 900 fogos e 1.400 casas e
pardieiros em ruínas, e, desabitados ou abandonados; a desvalorização da
propriedade urbana atingira o seu limite máximo."
É nesta situação comatosa que, por alvará datado de 11 de Abril de 1759,
El-Rei D. José I, “considerando a situação natural, povoação e
circunstâncias que concorriam na vila de Aveiro e nos seus habitantes, e
folgando pelos ditos respeitos, e por outros que inclinaram a sua real
benignidade, houve por bem elevar a dita vila de Aveiro, notável por
mercê filipina, à dignificante categoria de cidade”.
Por trás deste magnânimo gesto estava,
tudo indica, a lavagem de uma mentira. Por uma duríssima sentença de 12
de Janeiro de 1759, D. José de Mascarenhas, Duque de Aveiro, fora
condenado à morte como cúmplice de pretenso atentado cometido contra
El-Rei D. José I na noite de 3 de Setembro de 1758. Os bens do Duque
seriam incorporados nos da Fazenda Real, sendo demolido o palácio de
Belém onde D. José de Mascarenhas habitava e o seu chão salgado para que
nada aí se produzisse.
São sérias as dúvidas que se levantam,
historicamente, quanto à veracidade desse atentado.
Com canto de te-deum à mistura
com pomposa procissão que percorreu toda a vila, a Câmara Municipal de
Aveiro, em nome do povo da vila, prestou juramento de fidelidade ao Rei,
e recusou-se a ter por donatário o Duque de Aveiro.
Assim se tecem os meandros da vida de
um povo. Aveiro foi elevada a cidade quando, vivendo a crise mais
profunda da sua história, caminhava para a sua destruição.
A saída dessa crise passava pela reabertura da nossa Barra. E a verdade
é que o poder central começou a olhar para Aveiro de forma mais atenta.
Os engenheiros Reinaldo Oudinot e Luís Gomes de Carvalho foram
incumbidos de estudar o problema e optaram em 1802 por uma "intervenção
na região central da laguna, desde a Senhora das Areias até ao Forte
Novo, procurando restituir à laguna, tanto quanto possível, a sua
economia do século XVI".
As muralhas que abraçavam a parte mais significativa do que é hoje a
freguesia da Glória são quase totalmente demolidas para a construção dos
molhes que viriam a viabilizar a Barra Nova que ficou aberta em Abril de
1808.
As mesmas muralhas que acompanharam a época áurea de Aveiro vieram a
converter-se na alavanca de novo período de reconquista da prosperidade
da nossa região que, seguindo o ritmo das melhorias introduzidas no
nosso porto de mar, tem vindo em crescendo até se converter na
importante cidade que hoje é, no contexto do nosso país.
E a freguesia de São Miguel, coração político e administrativo da urbe,
acompanhou essa onda de progresso.
Ainda sou do tempo da Fonte dos Amores e dos tanques públicos envolvidos
pelos quintais e o grande relvado onde se punha a roupa a corar.
A Avenida de Araújo e Silva, quando foi aberta em tempos de Álvaro
Sampaio, ainda nos levava para uma zona da freguesia da Glória de nítido
cariz rural.
Pela Rua das Pombas íamos até ao Poço de Santiago aprender a nadar.
Santiago, vai para 50 anos, era zona
de quintas, a verdadeira horta da cidade. Hoje está convertido no
maravilhoso campus da Universidade de Aveiro, livro aberto do melhor que
a arquitectura portuguesa contemporânea tem produzido.
O seminário de D. João Evangelista de
Lima Vidal, vi-o nascer.
Assim como vi converterem-se em zona urbana, com tudo o que é hoje o
chamado Bairro do Liceu, as quintas por onde brinquei na minha meninice.
E, do mesmo modo, tudo o que é hoje o Hospital e o Bairro da Gulbenkian,
onde abundavam ubérrimos campos de cultivo e de árvores de fruta, por
que nos perdíamos em penhoras de garotos.
Lembro-me do incêndio do Governo Civil e da chuva de cinzas que caiu
durante dias sobre as casas das ruas envolventes..
E da construção do Palácio da Justiça por mão-de-obra prisional.
E das minhas deambulações como aluno da Escola Técnica, saltando do meu
Ciclo Preparatório, instalado numa casa que tinha, no rés-do-chão, uma
ourivesaria da Rua Direita e com um quintal que dava para a viela do
Museu, para o Curso Geral do Comércio que frequentei no edifício então
decadente e hoje recuperado e devolvido à Santa Casa da Misericórdia de
Aveiro; e também ainda no edifício do então Liceu de José Estêvão,
entretanto vazio dos seus alunos que tinham ido ocupar o Liceu novo do
Bairro de Álvaro Sampaio. Para terminar o curso já no também novo
edifício da extinta Escola Industrial e Comercial de Aveiro, logo no
quarteirão seguinte ao do então Liceu Nacional de Aveiro, na, nesses
tempos, recém aberta Avenida de Salazar, hoje Avenida 25 de Abril.
E, depois, o plano urbanístico de Auzelle que, a ser levado às últimas
consequências, não deixaria de pé quase nada do pouco que os tempos e os
homens foram consentindo do que foi o coração de Aveiro.
A rua do Seminário ou do Hospital, como o povo lhe chamava, foi-se
convertendo na Avenida de Artur Ravara, mais tarde desdobrada em vários
nomes; a casa de Albino Pinto Miranda foi abaixo e o que restava do
quarteirão onde ainda vi o último bocado das muralhas de Aveiro deu
lugar a uma via que, quase desde Verdemilho desemboca no viaduto que
substituiu a velhinha Ponte de Pau, bem ao lado do sítio onde era a
Fábrica Aleluia, logo abaixo da Fábrica Gercar e das “casas das meninas
da Fonte Nova”, tudo isto já levado pelos camartelos do progresso.
O velho e fétido canal do Cojo
transformou-se num dos mais belos canais urbanos que eu conheço, com a
Fábrica Campos convertida em Centro de Congressos a servir de pano de
fundo..
Ainda me lembro, quando em andanças como vereador do pelouro da cultura,
das minhas fugas até ao sobrado dos Paços do Concelho para acompanhar o
saudoso arquitecto Semide, semi-nu no escaninho-estufa que lhe servia de
"atelier", debruçado no estirador a "esgalhar" projectos novos para a
sempre renovada terra que me viu nascer. Sonhava-se, então, com a
concretização do Bairro de Santiago já feito no papel. E com a nova
Universidade que hoje ocupa o Campus de Santiago, onde as hortas
deram lugar a verdes de esperança de uma sociedade mais culta, mais
sociedade.
Com o Porto de Aveiro, a nossa Universidade é, hoje, o mais forte vector
de progresso da nossa região.
Actualmente, o núcleo urbano de Aveiro já quase não tem quintais e muito
menos quintas; já não tem fábricas de cerâmica; contar-se-ão pelos dedos
de uma mão as pequenas indústrias que permanecem. A grande indústria
está implantada em zonas suburbanas concebidas para esse fim.
Aveiro converteu-se num centro de Serviços; Comércio; Ensino, desde o
Básico até ao Superior, público e privado. É a capital duma região que
tem sabido manter uma economia pujante e um nível de vida que não
desmerece da Europa.
Aveiro continua a ser uma terra onde os
valores da liberdade continuam a ser cultuados de forma estrénua,
procurando o seu povo honrar os nomes dos seus maiores: José Estêvão,
Mendes Leite, Homem Cristo, D. João Evangelista, Vale Guimarães, Mário
Sacramento, entre tantos outros
É uma terra — a minha terra — sempre e cada vez mais a provocar-me
"saudades de futuro".
Saudades do que sei que teve e que os tempos levaram.
Saudades do que ainda vi e vivi e que a renovação irreprimível fez
desaparecer.
Tudo me fazendo recuperar o que, ainda não há muito, ouvi da boca de um
Presidente da Câmara Municipal de Aveiro:
"Os problemas que Aveiro constantemente levanta, resultam da capacidade
criativa dum povo que não pára. Aveiro não pára no tempo. O povo não
deixa."
Valha-nos, para tudo isto, o Espírito Santo, já que a igreja deste nome,
como já referimos, também foi na voragem, ficando-nos em sua
substituição a Fonte das Cinco Bicas que, não sei porquê, até só tem
quatro e que nem sempre dão água...
Fiquemo-nos, portanto, e tão só, com as "saudades do que já lá vai e com
uma ânsia enorme de progresso".
GASPAR ALBINO,
Maio de 2009 |