Existe, na borda d´água da grande lagoa, uma terra chamada Murtosa.
Terra ímpar, por tantos amada e por outros tantos desejada – porque a
vida os levou para longe da vista, mas nunca do coração – banhada pela
ria e pelo mar, com dunas a perder de vista e canais prateados, onde a
lua se espelha briosa e o sol se espraia, altivo e galanteador, pelos
prados verdejantes e milheirais.
Foi aqui, onde os jardins se confundem com as hortas e as coberturas dos
estábulos com os telhados vermelhos das casas de alpendre, que nasceram
e cresceram os Meninos da Lagoa.
Um deles é o Natalino. Filho de gente da ria, nasceu nos dias curtos de
Dezembro, e por aqui se criou, até que a sina, comum a tantos outros, o
levasse para outras paragens.
O pai Joaquim e a mãe Amélia viviam do que a ria dava, que nesses tempos
eram também o moliço e o junco. Muitas barcadas de junco se cortaram,
transportaram e descarregaram nos cais das nossas ribeiras. A bordo não
havia relógio, comia-se uma côdea quando o estômago o exigia, e o resto
do tempo era passado na labuta, porque a noite metia-se sempre mais cedo
do que o desejado e os ventos mudavam a seu belo prazer, sem qualquer
aviso prévio. Parte do lucro da barcada eram as horas de descanso, por
isso, quanto mais cedo carregassem, mais cedo amarravam o barco ao cais.
Mas por vezes o arrais fazia umas contas e Deus fazia outras. Quantas e
quantas noites, em vez de amarrar o barco ao cais, o amarravam a uma
vara espetada numa arriba, e por lá tinham que pernoitar, porque o tempo
lhe tinha trocado as voltas...
Dizia-se que assim tinham concebido alguns dos oito filhos, mas isso
podia ser fruto da quadrilhice. A verdade só eles a sabiam, porque o que
acontecia debaixo da coberta de tiras, não era apregoado em praça
pública.
Se lá foi feito não se sabe, mas sabe-se que por lá nasceu. Era 24 de
Dezembro, dia frio e chuvoso. Joaquim evitava trabalhar nesse dia, a
menos que a maré fosse bem cedo. Gostava de ter a família toda em casa a
meio da tarde, para acender a lareira, assar as castanhas e cozinhar o
bacalhau, com calma.
Amélia contava trabalhar até ao fim do ano e depois ficaria em casa,
porque já um dos partos anteriores lhe tinha corrido menos bem. Era
melhor não arriscar, até porque já não tinha vinte anos, nem trinta...
as coisas podiam correr mal e ela tinha uma escadinha de sete, uns em
casa e outros no barco, para acabar de criar.
Mas o menino antecipou-se. Fosse pela mudança da lua, ou por algum
esforço em demasia, viram-se, ela, Joaquim e os dois filhos mais velhos
que nesse dia os acompanhavam, na iminência de terem de assistir-lhe ao
parto, a bordo.
Joaquim ainda subiu a vela, tinham apenas meia barcada, se o vento
ajudasse, em três quartos de hora estariam no Bico.
– Não dá tempo, homem! Amarra o barco e põe água ao lume. Manuel,
traz-me essas duas camisas de flanela que estão aí dentro da alcofa.
Quando o pai me trouxer a água quente, pega no teu irmão e sentai-vos à
ré, até que ele vos chame. – Dito isto, recolheu-se para dentro da proa,
estendeu a coberta de tiras e deitou-se, à espera.
Mas a coisa correu mal, e a espera foi maior que o previsto. Joaquim
caminhava da proa à ré, sem saber o que fazer. Deveria ter ido embora
quando subiu a vela. - Mas para que é que lhe dei ouvidos? Agora não
tenho água para sair daqui antes da meia-noite - pensava alto, enquanto
fumava o último provisório, dos que tinha trazido escondidos debaixo da
boina.
– Pai, temos que ficar aqui muito tempo? É que temos fome –
resmungavam-lhe os dois rapazes.
– Há ali um resto da broa que sobrou do almoço. Se tendes fome, comei,
mas olhai que não sabemos quantas horas teremos que ficar aqui! – De
facto, há mais de sete horas que os miúdos não punham nada no estômago,
mas que lhes daria a comer, se nem uma fisga tinha a bordo, para tentar
ao menos apanhar umas enguias prá janta. Com isto em mente, meteu-se
outra vez na proa, a ver de Amélia.
Manuel e Jacinto não aguentavam mais estar sentados na ré, ainda por
cima a verem o pai naquela aflição. Pegaram nas espinhas das sardinhas
que tinham almoçado, ataram-lhes um cordel e saltaram para terra. Ali,
por aqueles regueirões, haviam de andar pelos menos alguns caranguejos.
Cozinhados de água e sal, serviriam muito bem para enganar a fome...
Não demoraram mais de uma hora a encher o escoadouro de caranguejos. E
isso porque escolheram os mais grados, que rendem mais. Voltaram pró
barco e foram cozinhá-los no borralho que o pai tinha deixado, de ferver
a água. Depois de cozinhados e abertos, eram um bom pitéu.
Escorreram-lhe a água e estavam a despejá-los na travessa redonda de
barro, quando ouviram os primeiros gemidos do petiz que acabara de
nascer.
– Já nasceu! Venham vê-lo! – Gritou-lhos o pai, saindo da proa. E eles
foram. Levaram a travessa dos caranguejos e a bilha da água, porque a
mãe havia de ter sede, há tantas horas ali metida dentro. Era o menino
mais lindo que alguma vez tinham visto. Nem chorar sabia! Embrulhado na
camisa de flanela do pai, bem tentava soltar os bracitos, mas a mãe não
deixava, porque a noite estava fria. Jacinto quis pegar-lhe, mas
retraiu-se, por receio de não saber como.
Quando por fim Natalino adormeceu, Amélia recuperou forças e Joaquim se
recompôs do susto que apanharam, sentaram-se à porta da proa, de onde
podiam observar o irmão - o mais novo dos Meninos da Lagoa - e assim
festejaram a consoada, sob a luz irradiante da meia dúzia de estrelas
que começavam a romper o céu nublado.
– Como lhe chamamos, mãe?
– Vai chamar-se Natalino. Natalino de Jesus – respondeu Amélia
Era Natal, e eles no meio da ria. O bacalhau e as castanhas estavam em
casa, à espera deles. Comeram o que havia, e que bem lhes soube.
Abraçaram os pais e beijaram o menino, que já dormia. Os irmãos que
ficaram com a avó também já haviam de estar a dormir.
Mal sentiu água, Joaquim subiu a vela e fez-se ao cais, a tempo de
ouvirem o redobrar dos sinos da igreja, que anunciavam a Missa do Galo.
A Boca do Laranjo era de prata, salpicada pela lua cheia. Um cenário
místico, reforçado pelos cânticos de natal que se ouviam ao longe...
Francisco José Rito
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