Acesso à hierarquia superior.

Francisco José Rito, Palavras Litorais, 1ª ed.,ed. de autor, 2012, 66 páginas.

Peixe Seco da Nazaré

O mar nem sempre está de maré, que é como quem diz: nem sempre se consegue arrancar-lhe o sustento. Antes dos atuais métodos de conservação, era preciso guardar peixe para o inverno, porque o estômago todos os dias quer comer. Por isso, as mulheres da praia tinham os seus métodos para abastecer a dispensa. Na maioria das zonas pesqueiras, o peixe era limpo, escalado e disposto alternadamente com camadas de sal. em barricas de madeira com um orifício no fundo, por onde saía a moura. Podia aguentar assim até seis meses, sendo bem processado. Mas havia na Nazaré uma forma diferente de o conservar: os carapaus, as sardinhas, a petinga, os batuques, o cação e mesmo os chamados peixes finos – como o safio, o pargo e o polvo – eram secos na beira-mar, num processo meticuloso e paciente. Um saber feminino, cuja origem se perde no tempo e se arrasta até aos nossos dias, embora esteja hoje praticamente em vias de extinção, como tantas das nossas tradições.

Não é claro se o sistema começou por ser utilizado pelas varinas, para aproveitamento das sobras do peixe fresco, ou se teria nascido da real necessidade de aprovisionamento – na época de maior abundância – para os longos meses em que as condições climatéricas não permitiam pescar, mas por um desses motivos nasceu esta arte, que por várias gerações garantiu a estabilidade económica de muitas famílias. Era utilizado para consumo próprio e também para venda local, ou nos mercados da região, passando depois a ser procurado pelos visitantes da praia, nacionais e estrangeiros. O método não era de todo complicado, mas requeria um conhecimento básico no manuseamento do pescado, que começava por ser transportado à cabeça até ao areal, em gamelas de madeira. Esta operação começava de madrugada, pela fresca. Quando os primeiros raios de sol beijavam a praia, já o peixe estava processado e estendido, à espera que o vento e a maresia cumprissem a sua missão.

Antes disso, tinha sido amanhado numa dorna de madeira, depois escalado com os próprios dedos e de seguida lavado em água do mar.

Ficava depois em salmoura, durante cerca de uma hora, antes de ser posto a secar, sobre camadas de junco estendidas na areia, em leiras de mais ou menos dois metros, divididas por pequenos carreiros, para facilitar o acesso na viragem do peixe. As vísceras eram levadas pelos pescadores e lançadas ao mar, para servir de engodo.

O clima ditava o tempo da secagem, que podia demorar três ou quatro dias, em que o peixe permanecia na praia, vigiado pelos homens mais velhos que já não saíam para a faina.

Na segunda metade do século passado, novas leis ditaram o fim da utilização do junco no areal, bem como a lavagem com água do mar, obrigando as varinas a inventar um novo sistema. Nasceram então os estendais que ainda hoje podem ser vistos na Nazaré: uma espécie de estrado com armação em ripas de madeira, onde esticam pedaços da rede que já não é utilizada a bordo. A água é salgada artificialmente, com sal grosso, mas o resto da tradição mantém-se: o peixe é estendido ao ar durante três dias, com a diferença de que agora não precisa de ser virado, uma vez que a rede permite a secagem simultânea dos dois lados.

À noite acartam os estendais à cabeça, para o armazém. E ao outro dia – bem cedo – começa tudo outra vez. Pelo menos, enquanto durarem as forças às poucas "Nazarenas" que ainda se dedicam a esta atividade. Menos de uma quinzena, na última contagem...

 

 

página anterior início página seguinte

04-05-2018