Daniel Paiva Martins, Verdemilho. Memórias de um cidadão comum, 1ª ed., Aveiro, 2007, 184 pp.

A Tropa

IX
 

A circunstância de ter citado a data de 25 de Abril de 1974 no capítulo anterior trouxe-me à memória o facto de, até então, o nome do Dr. Álvaro Cunhal não me dizer absolutamente nada, porque nunca o tinha sequer ouvido. Contudo, embora sem saber, já tinha sido afectado pelos seus actos.

Entrei na tropa, para cumprir o Serviço Militar Obrigatório, em Abril de 1959. Apresentei-me em Mafra, na EPI, ou seja a Escola Prática de Infantaria, onde decorreu a recruta do Curso de Sargentos Milicianos que frequentei. Fiz parte da 1ª Companhia, comandada pelo capitão Gaio. Todos os dias, na formatura das duas da tarde, para reinício da instrução após o almoço, o aspirante Teotónio, do primeiro pelotão, comandava a Companhia em manejo até à posição de "ombro arma", para a apresentar ao "nosso capitão", que então chegava. O capitão Gaio recebia a Companhia e, então, naquela sua incrível voz esganiçada, de falsete, anunciava:

– Companhia! Vamos fazer um "apresentar armas" de homenagem ao Decepado, o soldado Português que segurou a bandeira com os dentes!

E comandava: "Companhia!... Apresentar... armas!!!"

Era um ritual. Absolutamente! Penso que não falhou um dia só, em cerca de quatro meses que passámos na EPI.

/ 54 / Na altura, estava lá colocado, como alferes, o actual brigadeiro António Graça, de Aveiro, rapaz do meu tempo, agora Presidente da Assembleia-geral do Beira-Mar. E a comandar pelotões doutra Companhia havia o Aspirante Frias, que conhecia por ter sido aluno aqui no Liceu de Aveiro quando eu próprio andava na EICA – e de quem nunca mais soube nada, após deixar Mafra – e o Aspirante Santiago de Carvalho que, dois anos mais tarde, foi celebrado como herói pelo poder político do Estado Novo, que apadrinhou e amplamente publicitou a publicação das cartas de despedida que escreveu à família, antes da invasão dos territórios da então chamada Índia Portuguesa pelo exército da União Indiana, em Dezembro de 1961, no decurso de cujas operações veio a encontrar a morte. Há poucos anos, vi no semanário "Expresso" uma pequena nota de referência ao coronel Vagos, agora reformado, que na altura era o jovem aspirante a oficial que comandava o meu pelotão. Fiquei a saber, nessa notícia, que acabou por cumprir o sonho de que então me falava, que era ir para Timor, território por que se sentia apaixonado.

Uns meses em Mafra deu para ter instrução no corredor La Couture ou no La Lys, quando chovia, dobrar todos os dias o Cabo das Tormentas, fazer fogo do Alto das Velas, participar em ataques ao Baracio – nomeadamente na grande operação que foi montada para impressionar o Imperador Hailé Selassié, da Etiópia, quando visitou o nosso País, acompanhado da neta, a Princesa Aida - fazer a marcha, com equipamento completo, pela Foz do Lizandro, daí para a Ericeira, dormir acampado num pinhal, sob os panos de tenda, e continuar a marcha no dia seguinte, pelo Sobreiro, de regresso a Mafra. .. enfim, deu para saborear os mimos de que beneficiaram aqueles que tiveram a dita de viver e apreciar por dentro a disciplina férrea que era imposta na EPI.

Para a especialidade de "atiradores", que era a minha, e para a de "armas pesadas", a segunda parte do curso foi feita em Tavira, no CISMI, sigla por que era vulgarmente conhecido o Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria. É um quartel – hoje desactivado – de lindíssima traça arquitectónica, que abrange um quarteirão completo, em plena baixa daquela bonita cidade algarvia.

A disciplina, no CISMI, embora rigorosa, não era opressiva como na EPI. Vivia-se com muito mais à vontade, e a instrução, agora de especialidade, também era mais atractiva. O meio humano envolvente era muito diferente do de Mafra: em Tavira havia montes de raparigas bonitas, com quem / 55 / podíamos namoriscar e fazer bailaricos aos sábados à noite. Contrariamente ao que acontecia em Mafra, digamos que aqui a tropa era coisa animada.

Uma das boas surpresas iniciais foi a comida no quartel, que nos primeiros dias era bem apresentada e muito saborosa. Depois, foi-se degradando a pouco e pouco, até se tornar intolerável. Mesmo defronte da porta de armas do quartel, do outro lado da rua estreitíssima, havia o Restaurante Craveiro – onde, por quaisquer "dez reis de mel coado", se comia um belíssimo bife com batatas fritas e ovo a cavalo, acompanhado por um copo grande de bom vinho tinto. Era ao Craveiro que todos recorríamos para nos alimentarmos. A voz da caserna dizia que Bonneville, o sargento encarregado do rancho, simultaneamente treinador de cães de guerra, um latagão de ar gaulês, alto, gordo e louro, de grandes bigodaças, parecidíssimo com o Obelix, era sócio do Craveiro no Restaurante – que assim teria (?) um abastecimento privilegiado, que possibilitava os preços que nos fazia. Um dia em que fomos para a carreira de tiro, o almoço foi levado lá. Era um arroz de qualquer coisa. Ninguém conseguiu tocar-lhe. Quando, no regresso, chegámos ao quartel, o meu comandante de companhia, capitão Inácio, pediu ao oficial de dia que estava de serviço que o deixasse substitui­-lo até à hora do jantar. Quando o sargento Bonneville veio com a prova da comida, como manda o RDM, o capitão Inácio reprovou-lha e estipulou o prazo duma hora para que apresentasse outro jantar. Quando, mais tarde, entrámos no refeitório ficámos pasmados: foi-nos servido um bacalhau à Gomes de Sá à maneira, confeccionado com o requinte dum bom restaurante. A partir dessa data, sempre que o capitão Inácio estivesse de serviço, como oficial de dia, o Craveiro não tinha clientela: a comida no quartel era tão requintada que ninguém pensava em sair!

Nesse ano, o CISMI tinha uma frequência próxima dos mil e trezentos alunos. Na estrutura militar do País, dependia hierarquicamente da IV Região Militar, com sede em Évora, a qual era comandada por um senhor general que apelidáramos de "Pandilha Nehru", numa alusão jocosa ao Pandita Nehru, primeiro ministro da União Indiana, inimigo do peito do regime político de Salazar, por ter ensaiado, em 1956, a invasão do então chamado Estado Português da Índia - invasão que se veio a consumar em finais de 1961 com a anexação daqueles territórios pela força das armas. A alcunha decorria da conjugação perfeita de dois elementos: no aspecto físico, ele parecia-se efectivamente com Nehru; e considerávamo-lo um pandilha pelo seu comportamento. Não podíamos gostar dele, porque, aparentemente, o seu maior prazer era castigar. As punições, sobretudo de soldados que nos fins-de-semana pedissem boleia para ir a casa, não tinham conta. Dizia-se / 56 / – embora em rigor não saiba se era verdade mesmo – que ele próprio, vestido à paisana, saía para a estrada no seu carro, à caça. Soldado que lhe pedisse boleia era homem com punição publicada na próxima Ordem de Serviço. Para o senhor general, cumprir à letra o Regulamento de Disciplina Militar  –  o célebre RDM  –  que proibia o pedido de boleia, era um valor absoluto, muito mais importante que ponderar a situação humana dos soldados, moços humildes, filhos de gente pobre, que não tinham outro modo de ir a casa.

O senhor general era assim. Com todos e com ele próprio. Numa das suas visitas de inspecção ao CISMI, ao passar revista às forças formadas na parada, verificou que, em cerca de mil e trezentos homens, havia dois que tinham o colarinho desabotoado. O RDM determinava especificamente que os botões da camisa deviam estar todos abotoados. Por isso, aqueles dois botões originaram duas semanas de corte total de dispensas para todo o pessoal, uma semana por cada colarinho desabotoado. Doutra vez, foi ele próprio que chegou dez minutos atrasado para a visita. Consequentemente, auto puniu-se com dez dias de detenção – conforme pudemos ler na Ordem de Serviço seguinte. Estão a ver o tipo de pessoa?!...

Anos depois, no Negage, localidade do norte de Angola, durante a guerra colonial, um grupo de milicianos estava a ler os exemplares duma semana do jornal "O Século", que acabara de chegar da Metrópole. Um dos jornais noticiava a passagem do senhor general à reserva. Conhecendo-o, o grupo ponderou logo que, provavelmente, não duraria muito: a passagem à reserva significava que perdia o poder de punir ou seja, cessava a sua razão de viver. E então não é que um dos jornais, logo da semana seguinte, noticiava o falecimento do senhor general?!...

O grupo proveniente da região de A veiro que nesse ano frequentou o CISMI era muito grande, cerca de quarenta rapazes. Como a viagem de comboio de Tavira a Aveiro era cara, demorada e desconfortável, com dois transbordos pelo caminho, alugámos um autocarro que nos trouxesse a passar as férias de Natal e Ano Novo. A viagem de vinda foi tranquila, embora não tivéssemos podido atravessar o Rio Tejo em Santarém, como estava previsto, devido às cheias que na altura cortavam as estradas da região, tendo feito a travessia mais acima, na Golegã. Regressámos, após as festas, num dos primeiros dias de Janeiro de 1960. Tínhamos de estar no quartel às oito da manhã de segunda-feira, para a ginástica; por isso, partimos de Aveiro no domingo anterior, às sete da tarde. A viagem decorreu na mais absoluta / 57 / normalidade até às proximidades de Rio Maior. De súbito, noite alta, sentimos o autocarro parar em plena estrada. Entra um capitão da GNR que exige que todos lhe apresentem os seus documentos. Lê com cuidado e confere tudo, um a um. Ficámos atónitos. Olhando pelas janelas, apesar da escuridão cerrada de noite de lua nova, verificámos que o autocarro estava cercado por uma força da GNR que, inclusivamente, tinha instalado metralhadoras ligeiras nas bermas da estrada. Que é que se passaria? Não podíamos saber. Mas, pelo aparato, era coisa grave.

Daí em diante a viagem foi um verdadeiro pesadelo. Tivemos de parar praticamente em todos os cruzamentos e entroncamentos do percurso. E em todo o lado se fez, sempre, uma inspecção tão minuciosa como a primeira. Cheios de fome, numa viagem infernal que parecia nunca mais terminar, acabámos por chegar a Tavira cerca das sete da noite de segunda-feira, vinte e quatro horas depois de termos partido de Aveiro. A falta às formaturas e instrução desse dia valeu-nos duas semanas de corte total de dispensas. Mesmo sem sabermos o porquê de tudo aquilo.

Foi preciso fazer-se o 25 de Abril de 1974 para que, quinze anos depois, todos os que participaram forçadamente naquela aventura pudessem, finalmente, perceber o porquê da fome que passaram: a nossa viagem coincidiu com a noite da evasão do Dr. Álvaro Cunhal do Forte de Peniche!

 

 
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22-04-2018