Situa-se nas barreiras do Crasto, em local sobranceiro ao Esteiro
de S.Pedro, a poente deste. O acesso faz-se a partir do Crasto,
percorrendo-se o comprido carreiro de peões que se estende ao longo do
alto muro de adobes que agora substitui a sebe de frondosos loureiros
que existia nos meus tempos de menino. Terminado o carreiro, há três
lanços de degraus de cimento que levam à fonte. Na sua proximidade há
duas mesas, também de cimento, para piqueniques. Antigamente, a fonte
era um pouco mais acima na encosta. Obras terminadas em 17 de Setembro
de 1945 deram-lhe a configuração actual, com implantação em alvenaria,
bica metálica e pequeno tanque. De todas as fontes de Verdemilho, esta é
aquela cuja água, pela sua qualidade, teve mais fama e prestígio ao
longo de séculos. Tem também a sua história.
XXXII
A história que
respeita à Fonte da Arregaça é a da sua eventual ligação à fuga do
Conselheiro Joaquim José de Queirós, avô de Eça, à perseguição que, no
reinado de D. Miguel, lhe foi movida pelo poder absolutista, na
sequência da abortada revolução de 16 de Maio de 1828, que ele chefiou,
revolta que foi o primeiro levantamento liberal ocorrido no País. Foi
daí, desse Movimento, que Aveiro colheu a designação de "berço da
liberdade".
A perseguição
foi tenaz. O facto de nela ter sido empenhada uma força militar regular,
sob o comando de um major, diz-nos logo da importância que o poder
instituído atribuía à captura do Sr. Conselheiro. Foram demoradas e
profundas as diligências investigatórias a que essa força procedeu para
o localizar. O facto de terem encontrado uma caixa, com pratas e papéis
de crédito do Sr. Conselheiro, em casa de Sebastião dos Santos, no
Baixeiro, Bonsucesso, a mais de três quilómetros de distância, diz bem
da pertinácia, abrangência e minúcia com que tais diligências terão sido
feitas. Mas o facto é que o Sr. Conselheiro se escapou. Caso tivesse
sido capturado, as consequências teriam sido terríveis. Tenhamos em
conta a sorte que foi destinada aos seus companheiros de armas: foram
executados no Porto, depois degolados e as suas cabeças estiveram
expostas na praça pública, em Aveiro, para atemorizar o povo!
/ 61 /
A voz popular,
em Verdemilho, diz que o Sr. Conselheiro esteve escondido no Crasto e na
mina que existia junto da Fonte da Arregaça. A alimentação ser-lhe-ia
levada pelos criados, dentro dos cântaros com que iam à fonte buscar
água. O Major Lebre(7) refuta essa versão popular. Argumenta que os
soldados, que cercavam o palácio, não deixavam que ninguém entrasse ou
saísse sem ser revistado. Aliás, os próprios criados, como suspeitos
naturais que eram, tinham todos os movimentos vigiados e eram seguidos
quando saíam. Não lhes teria sido possível levar a alimentação ao seu
amo de forma despercebida dos esbirros. Por outro lado, também os
próprios soldados utilizavam a Fonte da Arregaça, para lá irem beber e
se abastecerem de água. Não parece, pois, muito plausível que o foragido
lá pudesse permanecer escondido sem que eles não acabassem por
descobri-lo.
Baseando-se no
testemunho pessoal da tia Henriqueta Cardoso, também conhecida pela
alcunha de Henriqueta Mula, pessoa que morava defronte da igreja e que
eu ainda bem conheci, o Major Lebre chegou à conclusão de que o Sr.
Conselheiro se escondeu a escassos cem metros do seu próprio palácio, em
casa do seu vizinho e amigo Manuel Nunes Miguéis, popularmente conhecido
por tio Manuel Cautela. Essa casa era a primeira da Rua da Pilota,
exactamente na confluência desta com a Rua de S. João. Mas... como é que
isso foi possível?!...
O testemunho da
tia Henriqueta resultou de conhecimento pessoal adquirido na tradição
familiar: ela era neta do tio Cautela.
O tio Cautela
"amanhava" as marinhas "Luanda” e "Leiteireira”, que se situam do lado
norte da Cale de Aveiro, frente aos antigos estaleiros de mestre Manuel
Maria Bolais Mónica, na Gafanha da Nazaré. Deslocava-se para lá
diariamente na sua bateira. Saía de casa manhãzinha cedo, empurrando um
carro de mão onde levava os apetrechos do seu
/
62 / trabalho: velas, cordas,
redes, remos, etc. Voltava já noite feita, com o mesmo carro de mão dos
apetrechos. Ora, era justamente nesse carro de mão, escondido sob as
velas, que o Sr. Conselheiro passava todos os dias, duas vezes, nas
barbas dos esbirros que lhe cercavam a casa, sem que eles desconfiassem.
As horas do dia, passava-as escondido na barraca de madeira que havia na
marinha "Luanda”, a ler; à noite, dormia em casa do tio Cautela, que lhe
cedeu o seu próprio quarto, que era o único que tinha, dormindo ele e
sua mulher em esteiras, na sala. Até que um dia, sob a alegação natural
de ir ao junco, o tio Cautela, com o Sr. Conselheiro escondido a bordo,
debaixo da vela arriada, se dirigiu à Bestida, na Murtosa, onde, para
disfarce, carregou mesmo o barco de junco, filmando seguidamente para
Ovar, onde o Sr. Conselheiro desembarcou e de onde empreendeu a fuga
para o exílio, no Brasil.
Não sei qual
das duas versões é a real, se a da Fonte da Arregaça, que é a da
tradição popular, se a do tio Cautela, que parece mais consistente. O
certo é que, duma maneira ou doutra, o Sr. Conselheiro Queirós conseguiu
fugir, quase por entre os dedos dos seus perseguidores, sem que eles o
percebessem. Felizmente! |