David Paiva Martins, Fragmentos de Vida. A Minha Terra. 1ª ed., Aradas, ACAD (Associação Cultural de Aradas), 2005, 170 pp.

Fonte da Arregaça

Situa-se nas barreiras do Crasto, em local sobranceiro ao Esteiro de S.Pedro, a poente deste. O acesso faz-se a partir do Crasto, percorrendo-se o comprido carreiro de peões que se estende ao longo do alto muro de adobes que agora substitui a sebe de frondosos loureiros que existia nos meus tempos de menino. Terminado o carreiro, há três lanços de degraus de cimento que levam à fonte. Na sua proximidade há duas mesas, também de cimento, para piqueniques. Antigamente, a fonte era um pouco mais acima na encosta. Obras terminadas em 17 de Setembro de 1945 deram-lhe a configuração actual, com implantação em alvenaria, bica metálica e pequeno tanque. De todas as fontes de Verdemilho, esta é aquela cuja água, pela sua qualidade, teve mais fama e prestígio ao longo de séculos. Tem também a sua história.

XXXII

A história que respeita à Fonte da Arregaça é a da sua eventual ligação à fuga do Conselheiro Joaquim José de Queirós, avô de Eça, à perseguição que, no reinado de D. Miguel, lhe foi movida pelo poder absolutista, na sequência da abortada revolução de 16 de Maio de 1828, que ele chefiou, revolta que foi o primeiro levantamento liberal ocorrido no País. Foi daí, desse Movimento, que Aveiro colheu a designação de "berço da liberdade".

A perseguição foi tenaz. O facto de nela ter sido empenhada uma força militar regular, sob o comando de um major, diz-nos logo da importância que o poder instituído atribuía à captura do Sr. Conselheiro. Foram demoradas e profundas as diligências investigatórias a que essa força procedeu para o localizar. O facto de terem encontrado uma caixa, com pratas e papéis de crédito do Sr. Conselheiro, em casa de Sebastião dos Santos, no Baixeiro, Bonsucesso, a mais de três quilómetros de distância, diz bem da pertinácia, abrangência e minúcia com que tais diligências terão sido feitas. Mas o facto é que o Sr. Conselheiro se escapou. Caso tivesse sido capturado, as consequências teriam sido terríveis. Tenhamos em conta a sorte que foi destinada aos seus companheiros de armas: foram executados no Porto, depois degolados e as suas cabeças estiveram expostas na praça pública, em Aveiro, para atemorizar o povo!

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A voz popular, em Verdemilho, diz que o Sr. Conselheiro esteve escondido no Crasto e na mina que existia junto da Fonte da Arregaça. A alimentação ser-lhe-ia levada pelos criados, dentro dos cântaros com que iam à fonte buscar água. O Major Lebre(7) refuta essa versão popular. Argumenta que os soldados, que cercavam o palácio, não deixavam que ninguém entrasse ou saísse sem ser revistado. Aliás, os próprios criados, como suspeitos naturais que eram, tinham todos os movimentos vigiados e eram seguidos quando saíam. Não lhes teria sido possível levar a alimentação ao seu amo de forma despercebida dos esbirros. Por outro lado, também os próprios soldados utilizavam a Fonte da Arregaça, para lá irem beber e se abastecerem de água. Não parece, pois, muito plausível que o foragido lá pudesse permanecer escondido sem que eles não acabassem por descobri-lo.

Baseando-se no testemunho pessoal da tia Henriqueta Cardoso, também conhecida pela alcunha de Henriqueta Mula, pessoa que morava defronte da igreja e que eu ainda bem conheci, o Major Lebre chegou à conclusão de que o Sr. Conselheiro se escondeu a escassos cem metros do seu próprio palácio, em casa do seu vizinho e amigo Manuel Nunes Miguéis, popularmente conhecido por tio Manuel Cautela. Essa casa era a primeira da Rua da Pilota, exactamente na confluência desta com a Rua de S. João. Mas... como é que isso foi possível?!...

O testemunho da tia Henriqueta resultou de conhecimento pessoal adquirido na tradição familiar: ela era neta do tio Cautela.

O tio Cautela "amanhava" as marinhas "Luanda” e "Leiteireira”, que se situam do lado norte da Cale de Aveiro, frente aos antigos estaleiros de mestre Manuel Maria Bolais Mónica, na Gafanha da Nazaré. Deslocava­-se para lá diariamente na sua bateira. Saía de casa manhãzinha cedo, empurrando um carro de mão onde levava os apetrechos do seu / 62 / trabalho: velas, cordas, redes, remos, etc. Voltava já noite feita, com o mesmo carro de mão dos apetrechos. Ora, era justamente nesse carro de mão, escondido sob as velas, que o Sr. Conselheiro passava todos os dias, duas vezes, nas barbas dos esbirros que lhe cercavam a casa, sem que eles desconfiassem. As horas do dia, passava-as escondido na barraca de madeira que havia na marinha "Luanda”, a ler; à noite, dormia em casa do tio Cautela, que lhe cedeu o seu próprio quarto, que era o único que tinha, dormindo ele e sua mulher em esteiras, na sala. Até que um dia, sob a alegação natural de ir ao junco, o tio Cautela, com o Sr. Conselheiro escondido a bordo, debaixo da vela arriada, se dirigiu à Bestida, na Murtosa, onde, para disfarce, carregou mesmo o barco de junco, filmando seguidamente para Ovar, onde o Sr. Conselheiro desembarcou e de onde empreendeu a fuga para o exílio, no Brasil.

Não sei qual das duas versões é a real, se a da Fonte da Arregaça, que é a da tradição popular, se a do tio Cautela, que parece mais consistente. O certo é que, duma maneira ou doutra, o Sr. Conselheiro Queirós conseguiu fugir, quase por entre os dedos dos seus perseguidores, sem que eles o percebessem. Felizmente!

 

 
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