Outra circunstância não vulgar é a razão de ser
da sessão extraordinária de 13 de Abril de 1952, a cuja acta vou também
fazer referência.
Noutro Iivro(2), ao referir-me a actividades
que o povo dedica a divertimento próprio, falei na "serração da velha",
espécie de "serenata", de teor satírico, que a rapaziada, pelas
noites da Quaresma, fazia à porta dos velhos. Foi hábito, com o seu quê
de bárbaro, que caiu em desuso já há bastante tempo. Mas há um outro,
igualmente satírico, que ainda persiste nos dias de hoje: é o "Judas".
Para gozar alguém que tenha dado motivo a mofa, a rapaziada faz um
boneco, aplica-lhe algo que leve à sua fácil identificação, e pendura-o
em local público, na noite de 6ª Feira-Santa. É o divertimento da manhã
do Sábado de Aleluia – a que o povo acha graça e normalmente aprecia.
Na Páscoa de 1951, os irmãos João e Cândido
Mangueiro, de Verdemilho, fizeram um Judas, amarraram-lhe um
paralelepípedo em que escreveram o número 38, e penduraram-no à porta do
seu vizinho João Ramos
– que o povo alcunhara de Paralelo 38,
influenciado pela sangrenta Guerra da Coreia, que então se desenrolava à
volta do Paralelo 38, que é a fronteira geográfica entre as duas Coreias,
a do Norte e a do Sul. Claro que, como o João Ramos detestava a alcunha,
o Judas provocou grande alvoroço, que veio a redundar em pancadaria
velha e acções em Tribunal.
Convém fazer aqui um parêntesis para explicar
que uma coisa são as brincadeiras irreverentes da rapaziada e outra é a
seriedade e postura social desses mesmos rapazes quando se tornam / 22 /
adultos. Os irmãos Mangueiro, naquela altura putos muito reguilas,
cresceram e tornaram-se pessoas de bem. Emigraram ambos para o Brasil,
onde prosperaram pelo seu trabalho. O Cândido, que já faleceu, chegou a
director-geral duma grande multinacional norte-americana. Há anos o
João, já velhinho, veio a Portugal e foi a minha casa visitar minha mãe.
Não sei se actualmente ainda é vivo.
O mesmo se passou com os rapazes do Bonsucesso
que vou referir a seguir.
Na acta n° 6, da reunião extraordinária da
Junta de Freguesia, do dia 13 de Abril de 1952, pode ler-se: "...Aberta
a sessão, foi deliberado o seguinte: em face da ocorrência havida de
onze para doze do corrente numa das ruas do lugar do Bonsucesso achou
por bem esta Junta convocar uma sessão extraordinária, a fim de se
providenciar para que os autores de tão nefasta proeza, recebam o
castigo merecido, tendo sido deliberado comunicar por ofício ao
Excelentíssimo Senhor Presidente da Câmara Municipal de Aveiro o facto
cujo ofício é do teor seguinte: Excelentíssimo Senhor Presidente da
Câmara Municipal de Aveiro. Foi encontrado numa das vias públicas desta
Freguesia de Sexta-Feira Santa para Sábado de Aleluia um boneco a que o
povo chama Judas, com figuras pornográficas tendo nas mãos objectos que
representavam a hóstia e o cálice e com um cartaz no qual se liam entre
outras frases inconvenientes a indicação de que representava o Pastor da
Freguesia facto este que revoltou toda esta população por se tratar duma
brincadeira de muito mau gosto.
Reuniu esta Junta em sessão
extraordinária para apreciar tão deplorável acontecimento e deliberou
lavrar um protesto em acta contra tal acção lamentando que, sendo o
Reverendo Pároco desta Freguesia digno do maior respeito de todos os
seus paroquianos, pois há mais de vinte e cinco anos que se encontra
entre nós, tendo dado sobejas provas de bondade e rectidão de carácter,
impondo-se assim, a uma mais veemente veneração.
Por tal motivo, vem esta
mesma Junta solicitar de Vossa Excelência se digne fazer seguir esta à
presença do Excelentíssimo Senhor Governador Civil do Distrito de
Aveiro, com valiosa recomendação de Vossa Excelência, que o caso merece,
a fim de, perante as entidades competentes seja o caso recomendado para
que não fiquem sem o justo castigo os possuidores de tão baixos
sentimentos evitando assim, que de futuro, qualquer habitante desta
freguesia por mais alta que seja a sua posição social e moral venha a
ser vexado com tais afrontas.
Confiados nas melhores atenções que Vossa
Excelência sempre nos tem dispensado esperamos ver realizado o desejo de
toda esta freguesia. A Bem da Nação – seguem-se as assinaturas".
Claro que isto foi uma "rapaziada"
– talvez excessiva, é certo, mas uma
"rapaziada". Dos três intervenientes, todos pessoas de bem, de famílias
respeitáveis e respeitadas no meio, só é vivo ainda o meu amigo Alberto
Malaquias de Oliveira, mais conhecido por Alberto Marta, com quem falei.
Foi ele que me contou o que se passou e porquê.
/ 23 /
Num Domingo em que faltou à Missa, foi pela boca dos primos João e
Manuel Nunes da Rocha (este último mais conhecido pela alcunha de "Pia")
– que por sinal eram primos do outro João Nunes
da Rocha, então Presidente da Junta de Freguesia
– que soube da violenta homilia que o Sr.
Vigário, padre Daniel Correia Rama (a quem me referi extensamente em
dois livros anteriores)(3), tinha feito contra a serração da velha e a
tradição do Judas. Pensaram que a homilia se lhes dirigia, porque os
três tinham andado, numa das noites dessa semana, a "serrar a velha"...
fugindo à perseguição que o Sr. Vigário decidiu mover-lhes. A situação
teve o seu quê de ridículo, com os rapazes a levar a bicicleta do padre
quando ele a largava para tentar agarrar algum... Parecia uma "tourada".
Foi por isso que aquela homilia mexeu com eles. O João Rocha, que
comandava o grupo, deu logo a ordem: "Nesta Páscoa, o Judas vai ser o
Sr. Vigário"!
Se bem pensaram... melhor fizeram. Construíram
o boneco. Deixaram-lhe à vista a pila, revestida com um preservativo,
com a ponta pintada de vermelho. Na mão puseram-lhe uma rodela de
cartão, a fazer de hóstia. Um cartaz dizia: "Sua Excelência o Daniel é
um grande...". Penduraram o boneco no cruzamento da Amarona. Foi o
escândalo que se imagina!...
Claro que os rapazes exageraram! Esse facto,
inquestionável, foi agravado ainda pelo ambiente de extremo puritanismo
que então caracterizava a nossa vida social. Salazar forçava ao máximo a
consolidação do regime
– o Estado Novo. A polícia política, a célebre
PIDE, controlava obsessivamente tudo e todos.
A situação opressiva que então se vivia, e que
tudo marcava, prolongou-se mesmo para além da queda de Salazar.
Repare-se no que me aconteceu no início da década de 1970
– ou seja, já sob o consulado de Marcelo
Caetano. Com a vinda do Padre Júlio organizou-se a Comissão Fabriqueira
e concebeu-se a ideia de construir o Centro Comunitário Paroquial.
Começámos a trabalhar nesse sentido. A firma João Nunes da Rocha, do
Bonsucesso, do ramo de madeiras que, como atrás referi, tinha criado um
produto novo, a que chamou "Madel", com o qual construía casas
pré-fabricadas, ofereceu-nos uma, que instalámos junto da Igreja, do
lado sul, encostada ao muro do cemitério. Foi aí que iniciámos as nossas
actividades de angariação de fundos para o projecto. Uma noite, para
difundir a ideia de construir o Centro e conseguir recursos financeiros,
organizámos um grande jantar. Convidámos todas as pessoas notáveis da
Freguesia. Presidia o Sr. Governador Civil, o ilustre aveirense Dr.
Francisco José do Vale Guimarães.
A grande concentração de automóveis no espaço
envolvente da Igreja e da velha residência paroquial deve ter chamado a
atenção de alguém, que terá dado alarme. De modo que, quando o jantar
corria animadíssimo, chegaram vários jipes com uma numerosa patrulha da
GNR de Aveiro. O tenente que a comandava, que recebi à porta, do lado de
fora, perguntou em tom de poucos amigos que reunião clandestina era
aquela, que não estava superiormente autorizada.
/ 24 /
Procurei explicar-lhe o que se passava. Acrescentei que quem estava a
presidir era o próprio Sr. Governador Civil, o Dr. Vale Guimarães em
pessoa. Mas o Sr. Tenente não queria acreditar. Embora eu o convidasse a
entrar, para ver com os seus próprios olhos, recusava-se a fazê-lo.
Continuava convicto de que se tratava duma reunião subversiva. Comecei a
ficar exasperado. De modo que, a certa altura, disfarçadamente, dei-lhe
um pequeno encontrão que o precipitou para dentro da sala. Deu logo de
caras com o Sr. Governador Civil. Claro que ficou encabulado.
Perfilou-se em continência, pediu desculpa." e saiu, de "rabo entre as
pernas". Foi-se embora furioso, a resmungar impropérios... mas sem nada
mais poder fazer!
Era este o ambiente da época! Ora, como os
rapazes tinham ido longe demais com o "Judas" , a reacção da Junta de
Freguesia é natural e pressagia que nada de bom lhes iria acontecer.
E assim se passou, de facto. Foram todos
chamados à GNR. O João Rocha e o Alberto Marta estavam a cumprir o
Serviço Militar Obrigatório, no Regimento de Cavalaria nº 5, então
aquartelado em Aveiro, no Quartel de Sá. Apesar de terem pedido perdão
ao Sr. Vigário, de joelhos, foram julgados em Tribunal Militar, em Viseu
e condenados a detenção: o João por 3 meses e o Alberto por 2. Cumpriram
a pena no Forte da Graça, em Elvas. Depois, tiveram ambos de aguentar o
resto da tropa na Companhia Disciplinar, em Penamacor.
Quanto ao Manuel Pia, como não era militar, foi
julgado em Tribunal Civil e teve a sorte de ser absolvido.
O epílogo deste episódio teve um começo
dramático: encontramo-lo na acta n° 10, da sessão ordinária da Junta
– então presidida por Duarte da Rocha
– de 24 de Setembro de 1972, da qual transcrevo:
"No passado dia 6 de Agosto, ocorreu um brutal acidente de viação na
passagem de nível, sem guarda, no lugar do Viso
– Esgueira, em que perderam a vida 3 pessoas,
duas das quais da família do Presidente desta Junta, sendo um seu irmão
e sobrinho. Cumprindo o doloroso dever de se associar à consternação do
seu Presidente, resolveu esta Junta exarar um voto de profundo pesar
pelo trágico acontecimento que inesperadamente enlutou tão prestimosa
família".
Foi o falecimento, inesperado e trágico, do
João Rocha e um seu filho. O Manuel Pia também faleceu entretanto. Resta
o Alberto Marta, ainda entre nós, felizmente de boa saúde.
______________________
(2) MARTINS, David Paiva, "Fragmentos de Vida –
A Minha Terra", 2005, ACAD, pg. 41.
(3) MARTINS, David Paiva, "Fragmentos de Vida -
A Minha Terra", 2005, ACAD, pg. 112-130 e "Aradas – Um Olhar Sobre a
Primeira Metade do Século XX", 2008, J. F. Aradas, pg. 104-112. |