David Paiva Martins, Aradas. Um olhar sobre a primeira metade do século XX (Da Junta de Parochia à Junta de Freguesia). 1ª ed., Aradas, Junta de Freguesia de Aradas, 2008, 268 pp.

NOTAS DE APRESENTAÇÃO

Ao começar novo trabalho sobre a minha terra, esclareço que este livro continua a não ser de História; também não é de histórias, como os anteriores, mas o simples relato dum olhar sobre a vida da Freguesia de Aradas na primeira metade do Século XX, baseado nas actas da Junta de Paróquia – mais tarde designada Junta de Freguesia, após a implantação da República e outra documentação disponível, tudo complementado com os comentários que esses documentos e a minha própria vivência no meio sugerem.
 
No plano temporal, comecei em finais de 1899 e terminei no início de 1951. Dada a antiguidade, esses acontecimentos já podem ser analisados e comentados com certo à-vontade, enquanto que, para se escrever sobre a segunda metade do Século, parece cedo demais: não há perspectiva histórica e grande parte dos intervenientes estão ainda activos na sociedade. É trabalho para ser feito mais tarde.
 
A única excepção que fiz a essa limitação temporal foi com o padre Daniel Correia Rama e deveu-se a uma razão que entendi ponderosa: tendo sido nosso pároco de 1925 a 1975, a documentação existente testemunha que, na parte final do seu múnus, o Sr. Vigário criou problemas graves, exactamente como havia acontecido à chegada. Pareceu-me então que a apreciação devia ser global; e para isso, seria necessário citar toda a documentação existente.
 
As opiniões expendidas ao longo do livro foram sugeridas pela análise da extensíssima documentação que li, que se transcreve no que tem de mais relevante. Os leitores poderão, naturalmente, formular opiniões diferentes. Aliás, a possível diversidade de opiniões que suscite, servirá para valorizar o trabalho, dando-lhe vida.
 
Por uma questão de método, para destrinçar bem as coisas, utilizar-se-á um tipo de letra nos comentários e outro diferente nas transcrições.
 
Quero expressamente alertar os leitores para o seguinte: ao verem a extensão de algumas transcrições, poderão supor que sejam uma maçada. Acreditem que não. Pelo contrário: houve reuniões de Junta em que as ideias brotavam com tal intensidade, sessão após sessão, e eram tão prontamente postas em prática que é uma emoção ler essas actas. Por isso mesmo são transcritas.
 
Outra advertência: mesmo os que estejam sinceramente convencidos de conhecer profundamente a sua terra – como eu estava! – surpreender-se-ão ao descobrir, em gente simples que conheceram na infância, pessoas de valor insuspeitado, capazes de sonhar o progresso de Aradas e trabalhar afincadamente, de modo gratuito, para o concretizar. Por mim, ganhei um respeito enorme pela sua memória.
 
É certo que havia alguns que não funcionavam assim. Mas, felizmente, eram uma clara minoria.
 
Por outro lado, penso sinceramente que a transcrição de actas da Junta, desprezada a rotina e anotado só o que é relevante, tem todo o interesse, por ser matéria que fica acessível a consulta fácil. Manusear os originais não é agradável nem muito prático, pelo estado deteriorado dos livros e pela má caligrafia dos sucessivos escriturários. Conjugada com uma ortografia bem diferente da actual, “semeada” dos erros naturais em pessoas pouco letradas, essa caligrafia torna a leitura por vezes bastante penosa.
 
Transcrevem-se também algumas actas da Paróquia e partes de duas dos Serviços Municipalizados, além de uma da Câmara Municipal de Aveiro porque, nas situações a que se reportam, tratam de matéria relevante para os temas em análise.
 
Nas citações documentais do começo do Século XX, utilizou-se frequentemente a ortografia da época, para que os textos não perdessem o seu gostinho especial. Aliás, a ortografia é um elemento curioso pelo choque que a antiga, em contraste com a vigente, sempre provoca. Não deixa, por isso, de ser interessante meditar no facto de a própria ortografia deste relato, sendo actual, já ter prazo marcado para passar a arcaica: o ano de 2014. Essa será a consequência de, no dia 3 de Março de 2008, o Governo Português ter aprovado um novo acordo ortográfico, já posteriormente ratificado pela Assembleia da República. Esse acordo, que se discutia há mais de vinte anos, lançou, e vai decerto continuar a lançar, uma celeuma enorme que, em termos de facto, o tem tornado inconclusivo. Se agora tudo correr bem para o Governo – ou seja, correr mal para a Língua, segundo a opinião de muito boa gente
a entrada em vigor da nova ortografia, que privilegia a matriz brasileira, irá introduzir importantes alterações ao modo como actualmente se escreve e fala em Portugal e na África lusófona.
 
Nas transcrições, a ortografia de todas as actas foi actualizada a partir das da chamada Junta Militar.
 
Foi interessante verificar que, na documentação consultada, enquanto a palavra “Aradas” figurou praticamente sempre para indicar a freguesia, o nome do lugar de Aradas era referido no singular: “Arada”. Isso prolongou-se até aos nossos dias, porque a situação só foi alterada em 26 de Abril de 1973, com a promulgação do decreto nº 215/73, publicado no Diário do Governo, I Série, nº 110, de 10 de Maio de 1973, que fixou obrigatoriamente o nome “Aradas”, tanto para a freguesia como para o lugar que dela faz parte.
 
Também curioso foi que, a certa altura, com a finalidade de obter dados identificativos de dois presidentes da Junta de Freguesia, dentre os diversos, contactaram-se familiares seus. Por pura coincidência, no caso desses presidentes, com mandatos bem distantes um do outro, quanto ao tempo em que ocorreram, tiveram ambos de enfrentar situações bem complicadas. Também por coincidência, nos dois casos, os filhos não queriam acreditar que os pais tivessem sido presidentes da Junta. Nunca tinham ouvido falar disso. Custou-lhes muito aceitar a ideia de que os pais tivessem alguma vez exercido funções de carácter político. Só se convenceram porque, afinal, “contra factos não há argumentos”.
 
Numa primeira impressão, a incredulidade dos filhos desses presidentes surpreendeu-me muito. Mas logo tive de fazer “mea culpa”. Porque, bem vistas as coisas, o meu pai foi vogal suplente da Junta Militar, tendo sido diversas vezes chamado à efectividade de funções; o meu avô paterno, até ao seu prematuro falecimento por acidente de trabalho, foi vogal efectivo da Junta de Paróquia, no tempo do Vigário Pato; e o meu avô materno, além de ter sido presidente da Comissão Cultural Paz e Progresso, organizada de acordo com o preceituado na Lei de Separação da Igreja do Estado, foi tesoureiro por mais de vinte anos, servindo portanto em mandatos de diversas Juntas. E o facto é que, quando iniciei este trabalho, desconhecia tudo isso em absoluto!
 
A terminar, fica uma pequena história que servirá para demonstrar, por meio de um facto objectivo, a diferença que há entre um verdadeiro livro de História e este trabalho.
 
No Arquivo Nacional da Torre do Tombo está depositado o Livro Nobre do Mosteiro de Santa Cruz, de Coimbra. Desse livro, a folhas 86-verso e seguintes, consta uma relação das propriedades que o Mosteiro possuía em Aveiro, Aradas, Sá, Verdemilho, Requeixo, Esgueira, Eixo, etc. Nessa relação, que tem a data de 26 de Maio de 1431, há uma referência curiosa a que “no lugar da Arada de Oleiros moram oleiros que dão ao Mosteiro de cada domingo, se cozerem, três panelas”.
 
Na página 17 do seu livro “Azulejaria Antiga em Aveiro”, dado à estampa em 1985, o meu amigo Dr. Amaro Neves, importante historiador da nossa região, há muitos anos residente no Bonsucesso, refere e transcreve essa anotação: “Jtem gonçalo paaeez daaveiro tem huum salgueiral so a fonte da arada doleiros que Já foj binha (...) Jtem os que no dicto logo moram E morarem oleiros E dam de cada domjnguo, se cozerem, tres tres (sic) panellas”. Utiliza-a naturalmente, como historiador, para demonstrar a antiguidade da actividade cerâmica no lugar de Aradas e a sua importância no meio.
 
No meu caso, porém, enquanto simples contador de histórias que nasci e sempre vivi aqui, tomo essa antiguidade como um dado adquirido e vou acrescentar-lhe outra consequência.
 
Assentemos então que havia uma “Arada de Oleiros” onde a olaria era ocupação principal dos seus habitantes. Hoje há fábricas cerâmicas mas, no que especificamente a oleiros diz respeito, a situação prolongou-se praticamente até aos nossos dias, só terminando completamente quando o Sr. Adelino Laranjeira, que foi o último em exercício, se reformou e desmantelou a oficina há cerca duma dúzia de anos. O topónimo “Pedra Moira”, que designa ainda hoje a zona donde se fazia a extracção de barro, parece indiciar que, pelo menos, essa actividade já existiria no tempo da ocupação árabe.
 
Uma expressão recorrente nos meus tempos de garoto era a referência aos “paneleiros” de Arada.
 
Entre nós, mercê da descaracterização trazida à população da freguesia pela enorme migração de pessoas vindas de fora a partir do início da década de 1950, gente que, naturalmente, desconhecia as tradições locais, esse dito foi caindo em desuso e hoje já praticamente ninguém se lembra.
 
Porém, no livro “O Vale das Maias e as Azenhas do Vale de Ílhavo”, que o meu amigo Dr. Manuel Carlos Teixeira Leques publicou neste ano de 2008, há referência a uma curiosa lengalenga popular dos desfiles de carnaval do Vale de Ílhavo, cujos versos começam assim:


 Beatinhos os da Sé
 Caranguejolas os de Aveiro
 Paneleiros os de Arada
 Inchados os da Coutada
 ...


 
Então, “paneleiros” porquê?
 
Certamente por fazerem panelas – ou caçoilas, como agora se diz. Mas essa razão, por si só, parece insuficiente para motivar a criação de um epíteto tão forte que se manteve vivo no seio do povo por vários séculos. Para justificar tal força parece necessário haver outra razão forte a acrescer àquela razão natural. Por que não pensar-se, então, naquilo que a anotação de 1431 refere?
 
Naquele tempo, os ditames de ordem religiosa tinham uma importância extrema no viver do povo simples. A Igreja ensinava que Domingo era o Dia do Senhor: devia ser dedicado à oração e ao descanso. Era pecado trabalhar.
 
Mas os oleiros de Arada, que eram pobres, precisavam muitas vezes de cozer louça ao Domingo. Para terem o “pecado” perdoado, necessitavam de indulto do Mosteiro que, além de ser dono das terras, era também a autoridade religiosa que regia a sua vida. A entrega das três panelas seria o “preço” do indulto.
 
 A turba costuma ser cruel ante a desgraça alheia. Terá sido certamente por acinte, face à persistente sujeição dos oleiros de Arada a essa exigência, que poderia interpretar-se por acto de servidão, que terá surgido nos povos circunvizinhos a “inspiração” de lhes chamar “paneleiros”. E o certo é que esse apodo se manteve vivo na tradição popular até aos nossos dias...
 
 Aradas, 5 de Outubro de 2008
 David Paiva Martins

 

 
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