Amor e Vida no Portugal d'Antanho. O Senhor Abade, 1ª ed., Verdemilho, 2020, págs. 81-83


Profissões na Quinta do Frade

Capítulo 33

– Bom dia Fernando, como vai isso?

Fernando Moca, o sapateiro, sentado no banco baixinho do trabalho, levantou os olhos, sorriu e voltou a martelar com vigor na sola que estava a bater sobre o grande seixo liso que tinha pousado nos joelhos.

– Tudo bem, senhor abade. Como vê, preparo a sola duns belos sapatos que estou a fazer para o nosso médico, o Dr. Daniel. Quero que fique um trabalho de qualidade, digno de mim e da pessoa excelente a quem se destina.

– Acho bem, acho bem. Mas não te vejo triste como tu hoje devias estar… Então o teu Belenenses não perdeu ontem com o Benfica?

– Pudera, senhor abade, o jogo foi em casa do Benfica, no Campo Grande… que de grande só tem o nome, porque de facto é um cochicho, com piso de terra batida em vez de relva. Num campo assim, pequeno e com aquele piso duro a que está habituado, o Benfica precisa de ter muito azar para que não ganhe!...

– Desculpas… Tu também lá perdeste algumas vezes.

– Sim, perdi. Mas comigo em campo eles tinham muita dificuldade em ganhar-nos. Como sabe, eu jogava duro. Por isso é que tanto os adeptos como os adversários deixaram de me chamar Ribeiro e me puseram a alcunha de Moca. Que pegou. Agora, mesmo sem futebol, toda a gente me chama assim.

De facto o Fernando, quando fez a tropa em Lisboa, jogou a defesa central no Belenenses que, nesse tempo, era um clube muito importante, considerado um dos três grandes, conjuntamente com o Sporting e o Benfica, por natureza candidato a campeão nacional. Era um jogador rijo, que os avançados contrários tinham muita dificuldade em ultrapassar. Daí terem-no alcunhado de Fernando Moca. No final da tropa ainda por lá ficou a jogar mais dois anos. Porém, como nesse tempo o que se ganhava no futebol não dava para viver, resolveu voltar para a terra.

Mas ganhar a vida com a sua arte em Quinta do Frade também não era fácil. Fernando era um verdadeiro artista que punha o maior cuidado na qualidade dos sapatos que fazia. O problema é que na generalidade os camponeses andavam descalços, só calçavam uns sapatos ou botas para ir à missa, aos funerais ou à cidade pagar a décima. Contudo, de vez em quando lá aparecia a encomenda dum par de botas ou sapatos novos, sobretudo para as pessoas mais abastadas. Para sobreviver, neste meio, valiam-lhe as meias solas que aplicava e outras reparações que apareciam e também o fabrico de tamancos e chancas – que desses sim, o povo precisava.

– Ó Fernando, um favor que quero pedir-te é que no Domingo, no final da missa, vás uns momentos à sacristia para combinarmos a solenização da missa de festa do dia de S. João. Vou convocar para isso também os outros músicos.

– Muito bem, senhor abade, lá estarei.

O Fernando, executante de tuba, era um dos diversos habitantes de Quinta do Frade que sabiam tocar instrumentos. Conquanto amadores, faziam música por puro deleite cultural. O João Sá, lavrador, tocava flauta; o oleiro Alcino tocava clarinete; o ti Zé das Tralhas tocava saxofone; e havia quatro violinistas. Violino era o instrumento de que o alfaiate Chico Tesouras era executante exímio e também um grande mestre, com a paixão de ensinar a juventude a tocá-lo. Era com eles que padre António solenizava musicalmente as missas festivas.

Capítulo 34

Se num meio social com aquelas características a vida era difícil para um artífice como o Fernando Moca, também o era para Chico Tesouras, o alfaiate. Tinham ambos um problema semelhante: os homens só vestiam fato exactamente nas mesmas circunstâncias em que calçavam sapatos, ou seja, para ir à missa ou a funerais e, ocasionalmente, para algum casamento ou baptizado. Portanto, o que lhe permitia viver da sua arte não eram os poucos fatos que fazia mas sim as calças de trabalho que confeccionava de tecidos grosseiros, como o cotim ou a ganga, e um ou outro gabão de burel que lhe encomendassem pelo Inverno.

A quem não faltava trabalho permanente era ao ferreiro da aldeia, o Manuel Ferrador. Havia sempre algum carro de bois para construir ou reparar, ferramentas agrícolas a fazer, gadanhas para afiar e foicinhas a picar, vacas, cavalos e éguas para ferrar. O Manuel empregava dois ajudantes e, mesmo assim, não tinha mãos a medir.

Também o ti Zé das Tralhas, misto de carpinteiro e mestre-de-obras, apesar de empregar três ajudantes, andava sempre afadigado. O ti Zé construía as casas da gente modesta. Começava por fazer ele próprio os adobes, material com que posteriormente encheria os alicerces e levantaria as paredes. Também era ele e o seu pessoal que preparavam os barrotes e ripas para o telhado e faziam e aplicavam tanto as portas como as janelas.

Estes profissionais e mais alguns outros, como o tanoeiro, o alveitar ou as costureiras, cuja actividade era complementar dos trabalhos agrícolas, exerciam funções indispensáveis e socialmente importantes para o funcionamento normal e equilibrado da terra.
 

 
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