Profissões na Quinta do Frade
Capítulo
33
– Bom dia Fernando, como vai isso?
Fernando Moca, o sapateiro, sentado no banco baixinho do trabalho,
levantou os olhos, sorriu e voltou a martelar com vigor na sola que
estava a bater sobre o grande seixo liso que tinha pousado nos joelhos.
– Tudo bem, senhor abade. Como vê, preparo a sola duns belos sapatos que
estou a fazer para o nosso médico, o Dr. Daniel. Quero que fique um
trabalho de qualidade, digno de mim e da pessoa excelente a quem se
destina.
– Acho bem, acho bem. Mas não te vejo triste como tu hoje devias estar…
Então o teu Belenenses não perdeu ontem com o Benfica?
– Pudera, senhor abade, o jogo foi em casa do Benfica, no Campo Grande…
que de grande só tem o nome, porque de facto é um cochicho, com piso de
terra batida em vez de relva. Num campo assim, pequeno e com aquele piso
duro a que está habituado, o Benfica precisa de ter muito azar para que
não ganhe!...
– Desculpas… Tu também lá perdeste algumas vezes.
– Sim, perdi. Mas comigo em campo eles tinham muita dificuldade em
ganhar-nos. Como sabe, eu jogava duro. Por isso é que tanto os adeptos
como os adversários deixaram de me chamar Ribeiro e me puseram a alcunha
de Moca. Que pegou. Agora, mesmo sem futebol, toda a gente me chama
assim.
De facto o Fernando, quando fez a tropa em Lisboa, jogou a defesa
central no Belenenses que, nesse tempo, era um clube muito importante,
considerado um dos três grandes, conjuntamente com o Sporting e o
Benfica, por natureza candidato a campeão nacional. Era um jogador rijo,
que os avançados contrários tinham muita dificuldade em ultrapassar. Daí
terem-no alcunhado de Fernando Moca. No final da tropa ainda por lá
ficou a jogar mais dois anos. Porém, como nesse tempo o que se ganhava
no futebol não dava para viver, resolveu voltar para a terra.
Mas ganhar a vida com a sua arte em Quinta do Frade também não era
fácil. Fernando era um verdadeiro artista que punha o maior cuidado na
qualidade dos sapatos que fazia. O problema é que na generalidade os
camponeses andavam descalços, só calçavam uns sapatos ou botas para ir à
missa, aos funerais ou à cidade pagar a décima. Contudo, de vez em
quando lá aparecia a encomenda dum par de botas ou sapatos novos,
sobretudo para as pessoas mais abastadas. Para sobreviver, neste meio,
valiam-lhe as meias solas que aplicava e outras reparações que apareciam
e também o fabrico de tamancos e chancas – que desses sim, o povo
precisava.
– Ó Fernando, um favor que quero pedir-te é que no Domingo, no final da
missa, vás uns momentos à sacristia para combinarmos a solenização da
missa de festa do dia de S. João. Vou convocar para isso também os
outros músicos.
– Muito bem, senhor abade, lá estarei.
O Fernando, executante de tuba, era um dos diversos habitantes de Quinta
do Frade que sabiam tocar instrumentos. Conquanto amadores, faziam
música por puro deleite cultural. O João Sá, lavrador, tocava flauta; o
oleiro Alcino tocava clarinete; o ti Zé das Tralhas tocava saxofone; e
havia quatro violinistas. Violino era o instrumento de que o alfaiate
Chico Tesouras era executante exímio e também um grande mestre, com a
paixão de ensinar a juventude a tocá-lo. Era com eles que padre António
solenizava musicalmente as missas festivas.
Capítulo 34
Se num meio social com aquelas características a vida era difícil para
um artífice como o Fernando Moca, também o era para Chico Tesouras, o
alfaiate. Tinham ambos um problema semelhante: os homens só vestiam fato
exactamente nas mesmas circunstâncias em que calçavam sapatos, ou seja,
para ir à missa ou a funerais e, ocasionalmente, para algum casamento ou
baptizado. Portanto, o que lhe permitia viver da sua arte não eram os
poucos fatos que fazia mas sim as calças de trabalho que confeccionava
de tecidos grosseiros, como o cotim ou a ganga, e um ou outro gabão de
burel que lhe encomendassem pelo Inverno.
A quem não faltava trabalho permanente era ao ferreiro da aldeia, o
Manuel Ferrador. Havia sempre algum carro de bois para construir ou
reparar, ferramentas agrícolas a fazer, gadanhas para afiar e foicinhas
a picar, vacas, cavalos e éguas para ferrar. O Manuel empregava dois
ajudantes e, mesmo assim, não tinha mãos a medir.
Também o ti Zé das Tralhas, misto de carpinteiro e mestre-de-obras,
apesar de empregar três ajudantes, andava sempre afadigado. O ti Zé
construía as casas da gente modesta. Começava por fazer ele próprio os
adobes, material com que posteriormente encheria os alicerces e
levantaria as paredes. Também era ele e o seu pessoal que preparavam os
barrotes e ripas para o telhado e faziam e aplicavam tanto as portas
como as janelas.
Estes profissionais e mais alguns outros, como o tanoeiro, o alveitar ou
as costureiras, cuja actividade era complementar dos trabalhos
agrícolas, exerciam funções indispensáveis e socialmente importantes
para o funcionamento normal e equilibrado da terra.
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