Frederico de Moura, António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz, In: Aveirenses Ilustres. Retratos à minuta,
Edição do X. Encontro de Professores de História da Zona Centro, Aveiro, 1992, pp. 39-44.


António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz
(1874-1955) *


* Egas Moniz - O investigador e o homem no polimorfismo dos seus interesses intelectuais e humanos.

 

Foi, exactamente em 29 de Novembro de 1874, que, em Avanca, veio ao mundo António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz e, foi entre Avanca e Pardilhó, que decorreu a sua infância.

Não creio que nascer vincule alguém ao lugar geográfico onde nasceu se a vivência posterior não vier nutrir de seiva as raízes; mas, e ao contrário, julgo que o desabrochar da infância cria ligações indeléveis e com vincos tão fundos que, mesmo quando aparecem esfumadas na bruma da distância espacial e temporal, marcam e vinculam a actividade, a conduta e as atitudes do homem. Há reminiscências que dão tónus a idade adulta, que, aquecem na anciania e que acompanham na velhice – sobretudo nestas duas épocas. da vida em que o homem faz incursões retrospectivas para encontrar companhia que o defenda do desencanto e da solidão.

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Certo é que a razão da nossa presença aqui, e longe de postergar o homem na sua humanidade, visa, sobretudo, o sábio, o professor e o académico, sem deixarmos de ser tentados, ao encarar este poliedro de virtualidades, a verificar que estamos, acima de tudo, na presença de um homem; de um homem que, longe de monoteísmos restritivos que lhe vinculassem a pupila ao campo que lhe levava uma ocular, revelou sempre apetências para tudo o que à condição humana dizia respeito. E isto sem deixarmos de sublinhar aquilo que o fez galgar as fronteiras das nações até culminar na glória do Prémio Nobel da Medicina e da Fisiologia.

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Dizer que Egas Moniz foi um grande escritor seria um exagero que a sua glória dispensa, perfeitamente. Mas foi, isso sim, um escritor de estilo desataviado e correcto, limpo e escorreito; e tão transparente e comunicante que me sinto tentado a apodá-lo de verdadeiramente didáctico – estilo saído da mão do professor fiel ao ensino. E, para além disso, a sua actividade de servo das letras sempre que tinha de abordar o ensaio, a biografia, a investi da nos domínios da estética, robustecia-se de tal objectividade e era tão probo na procura e na selecção das fontes informativas, tão escrupuloso no descobrimento dos contributos, que não deixava o indício de uma fissura onde as verrumas da crítica erudita pudessem penetrar à cata de minudências e frioleiras.

Estou a lembrar-me, ao escrever estas palavras que tentam ilustrar a asserção anterior, dos seus ensaios sobre os "Médicos no teatro vicentino" , sobre os "Pintores da Loucura", do seu "Júlio Dinis e a sua obra" e das suas excelentes biografias de "Petrus Hispanus" (João XXI), "Ricardo Jorge", "Babinski", etc., etc.

Quando em 1891 chega a Coimbra para se matricular nos preparatórios médicos, foi topar com uma Universidade velha na sua estrutura e apegada a conceitos e métodos de um tradicionalismo rotineiro que se moviam entre um armazenamento erudito e entulhante e as subtilezas especiosas de uma dialéctica que rescendia a escolástica. E viu-se, assim, de infusão num ensino livresco que, espremendo as virtualidades da memória até a exaustão, era profuso de citações remissivas de uma ciência constituída e completamente exilado das coordenadas que, ao tempo, por essa Europa fora, começavam a rasgar avenidas largas e arejadas, que desembocavam na fecundidade da experimentação e no terreiro limpo da originalidade.

Certo é que alguns professores começavam a fazer saliência na chateza monocórdica da fileira da maioria como eram, por exemplo, os casos de um Basílio Freire, notável morfologista e projectivo professor de Anatomia, de um Filomeno da Câmara, agudíssimo Mestre de fisiologia e espírito aberto a todas as rotas da cultura, de um Augusto Rocha, mentalidade arrojada e homem progressivo apenas diminuído por. um temperamento marcadamente acético e polemizante que abria clareiras à sua roda.

Mas estas saliências pontiagudas não eram suficientes para modificar a tónica rançosa que a maioria catedrática imprimia ao ensino e para vencer a inércia de uma instituição que parecia ainda presa, por um cordão umbilical, robusto e bem irrigado, ao estatuto pombalino que, tendo surgido pletórico de novidade, se tinha deixado, como não podia deixar de ser, senilizar ao contacto do rompante experimentalista e positivista do século XIX que sorvia, a largos haustos, de outras nascentes e se aquecia ao cerne incandescente de outras fogueiras.

Verdade seja que, e em contraposição, na massa estudantil levedavam, exuberantemente, ideias progressivas que se faziam exprimir em todos os sectores do pensamento e da cultura.

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Parece que razão terá Miguel Torga quando escreve que "não tendo capacidade formativa, a Universidade desperta, por isso mesmo, uma premente necessidade de reacção"; e, por esse motivo, conclui o poeta, "é negativamente que acaba por fazer chispar a centelha criadora em todos aqueles que por ela passaram, e, desiludidos, a abandonam ou guerreiam".

Pois contra o tradicionalismo narcotizante do comentarismo de cariz escolástico; contra a ruminação de ideias feitas e, tantas vezes, fossilizadas, a juventude vira-se, ansiosa, para o raciocínio ex­perimental teorizado por Claude Bernard, para a positividade da Ciência que sorvia o leite nutritivo do positivismo de Comte e de Littré de que eram ardentes paladinos, em Portugal, um Teófilo e um Júlio de Matos.

E é neste caldo de cultura em que se chocavam atitudes tão dissemelhantes que o espírito inquieto e interrogativo de Egas Moniz medra e se desenvolve, sôfrego da luz da novidade e desejoso de calcorrear caminhos de "pé posto" nas rotas científicas; e no banho-maria emoliente da ambiência escolar em que está incorporado que tem de fazer o seu curso que viria a terminar em 1899, logo seguido da via sacra das provas de licenciatura e do acto de conclusões magnas que lhe deu o doutoramento de Borla e Capelo com uma dissertação sobre "Vida Sexual" que é de presumir tenha desencadeado zonas pruriginosas de pele de galinha no puritanismo universitário coimbrão e que viria a conquistar vários andares culturais de leitores durante muitos anos após a sua defesa perante a solenidade do júri.

Em 1903, deixando quente a sua poltrona de deputado progressista, numa Câmara em que se encontrou com Afonso Costa, Paulo Falcão e Xavier Esteves – os três deputados republicanos que o Porto conseguira levar ao Parlamento – Egas Moniz faz as suas provas de concurso refrescando, com a sua entrada, o corpo docente da Faculdade de Medicina de Coimbra; e, a seguir, durante oito anos consecutivos, reparte-se entre o magistério na Universidade e o consultório que, entretanto, abre em Lisboa de companhia com Zeferino Falcão, notável dermatologista e leprólogo.

Assim, multiplicando actividades, permanece até 1911, ano em que, coma criação da Universidade de Lisboa, para ali é transferido sendo-lhe confiada a cátedra de Neurologia.

Foram oito anos de grande tensão e actividades espasmódicas. A propaganda republicana atingia então, o paroxismo. Falhada a tentativa do "31 de Janeiro", refizeram-se as hostes para prosseguir na batalha até que, em 1910 o trono secular caía em frente da pertinácia de uma geração vertebrada por um idealismo que não sabia o que era desânimo e renúncia.

E onde, e como, se fez neurologista Egas Moniz?

Em Portugal, é que não podia ser, dado que a neurologia coçava, então, as gengivas com os acidentes da primeira dentição.

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Que restava, pois, a Egas Moniz, há muito interessado pelos motivos neurológicos, senão galgar os Pirinéus, não para ouvir a palavra do mestre venerado que se havia afundado, já, no silêncio do túmulo, mas para sorver da escola que o génio tinha deixado atrás de si, o muito que ficou para continuar?

Mentalidade sistemática, prospectiva, paciente e tenaz, vence legítimas sofreguidões para se demorar em Bordéus a aproveitar o contacto seguro de Pitres, em neurologia, e para ouvir a prédica de Régis em psiquiatria, fazendo uma aprendizagem que lhe robusteceu a crença organicista que, sempre, lhe serviu para fundamentar as perturbações da esfera psíquica e que, muito mais tarde, veio a estar na base das suas investi das nos domínios do desconhecido.

São suas estas palavras:

"As causas orgânicas das psicoses avultaram, sempre, no meu espírito. O cérebro não podia estar são desde que a mentalidade estivesse perturbada; se as causas nos escapavam não era sinal de que não existiam."

E, parece fora de dúvida que, só firmada nesta crença firme e neurologizante das psicoses, poderia ter chegado a concepção de uma psicocirurgia que lhe viria a abrir as portas de acesso ao Prémio Nobel da Medicina e Fisiologia.

Acalmada, porém, a primeira secura nos contactos de Bordéus, logo salta a Paris onde, em contacto com Pierre Marie, Déjerine e Babinsky (de quem ficará amigo pela vida fora) completa a sua formação de neurologista – do neurologista que tanto haveria de dar que falar de si pelos tempos fora...

Ali, e para além do treino metódico na observação do doente dentro de uma disciplina rigorosíssima na colheita dos sintomas clínicos, habitua o seu espírito ao apelo, quase imperativo, à colaboração do laboratório, designadamente, do laboratório de histopatologia, incorporando-se numa regulamentação mental que lhe deixará na mão, para o resto da vida, a ferramenta com que desbravará os caminhos que a sua actividade de investigador insatisfeito viria a trilhar com passos firmes e seguros.

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Não foi minha intenção trazer para aqui um trabalho de minudências e de exegese científica mas, tão-somente e em consonância com a modéstia das minhas aptidões, tentar uma visão panorâmica de uma personalidade onde, avultando, embora, uma zona nuclear mais significativa, se exprime em linguagens de espectro variado, percorre caminhos de sentidos diferentes e visa metas localizadas em todos os pontos cardeais localizadas no entendimento humano.

E é assim que, durante certo tempo da sua vida, a política lhe atrai as atenções e lhe solicita a adesão, separando-o da sua actividade científica sem que tenha, é certo, conseguido apagar-lhe a luzinha votiva que consagra a sua vida clínica e docente.

Desde os vinte e cinco anos que o seu temperamento irrequieto e aberto aos vendavais que varriam, de lés a lés, o país político e social, se mostrou intervencionista, quer ocupando a sua cadeira de deputado e revelando-se orador parlamentar de fôlego, quer realizando uma efémera tarefa diplomática na corte de Madrid, quer sobraçando a pasta dos Negócios Estrangeiros, quer presidindo a Delegação Portuguesa à Conferência da Paz quer, estendendo o corpo numa tarimba de preso político. E, em todos os cargos por onde passou, deixou bem marcado o traço incisivo da sua personalidade e se revelou democrata convicto e fiel aos caminhos arejados da liberdade do espírito. E, se e certo que essas actividades lhe fizeram abrir a mão do martelo de reflexos e o afastaram do contacto da enfermaria, não conseguiram matar nele, e, nem sequer esbater­lha no espírito, a fidelidade a sua actividade medular de médico.

Assim, e, em grande parte por virtude desta dispersão, é, só quinquagenário, com 53 anos, precisamente, que, em 1927, revelará a sua descoberta – decisiva descoberta para a iluminação de certos problemas neurológicos e que lhe projectaria o nome para além das fronteiras, com difusão universal: a angiografia cerebral.

E terão de ser as costas largas da política a suportar a carga das responsabilidades da época, aparentemente tardia, em que se agiganta a sua capacidade de engenho e de investigação?

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De qualquer modo, e sejam quais forem as causas e as determinantes circunstanciais, é nesta altura da sua vida, quando a sua maturidade mental estava perfeitamente sazonada por uma experiência e por uma cultura meticulosa, que o mestre rompe a restrição das raias da sua Pátria e a confinação. determinada pela sua condição de professor, embora distinto, de uma Universidade portuguesa, para atingir os domínios de uma audiência universal.

"Se fosse possível, escreve Egas Moniz, registar nos filmes radiográficos a imagem dos vasos sanguíneos intra-craneanos, seria possível, pelas suas deslocações, alterações de forma ou anomalias de constituição, diagnosticar, com precisão, a localização e, possivelmente, a natureza dos tumores e de outras lesões cerebrais".

E é desta hipótese inicial que formula, judiciosamente, que parte todo um caminho de problematização minuciosa antes de chegar a investigação dentro de coordenadas operacionais.

Estando, embora, implícita na formulação da hipótese a fecundidade que a problematização confirmava, impunha-se, para a sua demonstração um trabalho intensivo de experimentação antes de a trazer ao pragmatismo da clínica e ao usufruto do doente.

A experimentação nas ciências médicas é pautada por algumas barreiras intransponíveis erguidas pela mão selectiva da Ética e pelo respeito pela condição humana. À frente do arrojo das hipóteses, os valores vitais levantam uma estacaria de objecções que retêm a imaginação médica em respeito frente à vida humana, frenando rigorosamente, as tentações de aventura em chão desconhecido.

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Extraordinariamente meticuloso e escrupu­losamente fiel à rigidez das normas prescritas pela Ética mais escorreita, Egas Moniz mede os seus passos milimetricamente e sonda, com minúcias de explorador, o terreno que vai pisar.

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Diz o prof. Almeida Lima:

"Entre os estudos da opacidade das várias drogas e a obtenção da primeira angiografia cerebral intercalou-se um período de experimentação em mimais e em cadáveres humanos durante o qual foi posto à prova o engenho, a persistência e o incansável entusiasmo do mestre.

Por outro lado, a nossa aflitiva indigência de condições materiais obrigou a um sem número de improvisações e eriçou de dificuldades, de toda a ordem, as tentativas que se iam realizando; desde o decepar dos cadáveres no Instituto de Anatomia Humana, ao transporte das cabeças decepadas e embrulhadas em serapilheiras para os serviços de radiologia do Hospital de Santa Maria, até às experiências no animal de laboratório realizadas no Instituto de Rocha Cabral com pavorosa carência de pessoal técnico e utensílios apropriados, tudo teve de ser superado e vencido à custa de uma pertinácia que batia nas fronteiras da obstinação.

E, desde a primeira experiência dos tubinhos de borracha cheios de brometos e radiografadas através de um hemicrâneo para indagar da opacidade das substâncias que viriam a servir de contraste para visualizar as artérias, até às primeiras tentativas no vivo – a que nem, sequer, faltou um acidente fatal a deixar uma pincelada negra de desânimo –, tudo foi conseguido ao revés de um condicionalismo verdadeiramente narcotizante."

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... Vencida a crise e a tempestade dialéctica que desencadeou, e, depois de ouvida a opinião de vários colegas que reúne à sua volta e que, unanimemente, lhe dão estímulo para prosseguir, retoma, decididamente, as investigações que vieram a culminar com a primeira angiografia cerebral, em que as artérias apareciam nitidamente visualizadas, em 28 de Junho de 1927.

Realizado o que, Egas Moniz, transpõe as fronteiras para ir comunicar a sua descoberta à Sociedade de Neurologia de Paris, em vez de tentar investir, na sua Pátria, com o cepticismo perro dos arquiatras que lhe iriam semear o caminho das mais especiosas restrições e com a indiferença oficial que lhe abafaria os triunfos debaixo de um glaciar de silêncio.

Poucos dias após a memorável comunicação, realiza uma conferência na Academia de Medicina da capital francesa sob a presidência de Charles Richet e, logo a seguir, e a convite de Guillan, profere uma lição na Faculdade de Medicina em que recebeu a honra, que tanto o tocou na sua sensibilidade vibrátil e fiel aos valores do espírito, de falar da cátedra de Charcot, na Salpétrière.

Era a consagração! A consagração que, um pouco mais tarde, havia de vir a ser corroborada pela atribuição do prestigiado prémio (Oslo) que, pela primeira vez na sua história, era concedido a um cientista estrangeiro.

Mas o triunfo obtido com a angiografia cerebral não foi almofada a que se encostasse na serena colheita das honras e, pelo contrário, longe de conduzir Egas Moniz a uma jubilação acomodada na glória conseguida, teve o condão de lhe temperar a mola criadora.

Firmado, como já atrás se deixou patente, num incompressível critério organicista que foi uma constante em toda a sua trajectória médica, seguramente convicto na crença de uma psiquiatria neurologizante, Egas Moniz dá consigo a congeminar na possibilidade de, por meio do ferro cirúrgico, intervir sobre o cérebro com o fito de conseguir curar ou, pelos menos, melhorar o prognóstico de certas psicoses.

Dez anos decorrem entre a angiografia cerebral e a realização da primeira leucotomia pré-frontal e é, durante estes dois lustros, que a ideia vai sazonando no seu espírito ao mesmo tempo que estuda o problema, quer ao contacto de livros e revistas, quer observando os comportamentos dos operados de tumores cerebrais do seu serviço.

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Suponho que deixar marcado que a arrojada intervenção foi acolhida estimulante para a ânsia de prosseguir no afã de trazer à Ciência novas veredas e novos caminhos no rumo de aliviar a (rua da amargura) do sofrimento humano em todo o mundo com crepitante curiosidade e que variadíssimos clínicos e neurocirurgiões a levaram a prática, ajuntando que, também, à sua roda se estabeleceram as mais vivas controvérsias mas que, e apesar de tudo, o Prémio Nobel da Medicina e da Fisiologia foi atribuído ao sábio português com base nesse trabalho, será mais do que suficiente para deixar, expressivamente, patenteada a marca do génio que está na sua origem.

Realmente, desde o entusiasmo mais expressivo que se verificou nos Estados Unidos da América do Norte, sobretudo encabeçado pelo pro­fessor Walter Freeman, até à interdição total da intervenção em todo o território da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, muitas gradações se poderiam anotar, de entre as quais a do Vaticano que, se bem que opondo certos poréns frenadores a prática da leucotomia na medida em que intervém na personalidade do doente, não condena o seu uso, nem deixa cair anátemas sobre os seus resultados.

Uma tempestade dialéctica com origens em vários quadrantes do saber humano se desencadeou sobre o novo processo intervencionista na evolução de certas psicoses. E, desde motivações sacadas no terreno da neurofisiologia, afundamentos vertebrados de razões filosóficas, e, até, de objecções erguidas pelas éticas e nutridas pelo pensamento religioso, toda a gama de argumentos, pró e contra, se entrechocaram no sentido do esclarecimento da delimitação do espaço que era legítimo deixar disponível para a prática do inovador processo terapêutico.

O certo, apesar de tudo, é que sejam quais forem as restrições que se levantarem ou venham a levantar, julgo que ficaremos com motivo suficiente (e mais do que suficiente) para acompanharmos este juízo projectivo de Almeida Lima:

"...se chegar um dia em que não se executem já leucotomias cerebrais, a influência da descoberta de Egas Moniz permanecerá, porém. Continuará a influir no pensamento psiquiátrico, nas concepções filosóficas e na orientação dos neurofisiologistas."

Também eu creio que, concepções mesmo no momento em que o leucótomo resvale da mão da cirurgia para a vitrina do museu, as aquisições trazidas pela leucotomia permanecerão, não apenas na História da Medicina como ideias cadavéricas e mumificadas, mas como um momento alto da evolução das ciências médicas que iluminou saguões da luz indecisa e desanuviou algumas brumas que toldavam o problema da correlação cérebro-espírito.

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As sua antecipações começaram por embater no pirronismo sistemático de certa "invidia medicorum" e, algumas vezes, até, foram molhadas com a peçonha do "odium medicorum". A isso se juntaram os rancores levantados na sua rota pela saliva viscosa de uma politiquice que cultivava um nacionalismo com musgo e que a não deixava ver os méritos presentâneos senão através de distorções sectárias. E foi com base nesse nacionalismo arcaizante de meirinhos e almoxarifes que um corifeu da seita ousou, com o aplauso frenético, até, dos governantes, apodar o Prémio Nobel que o enobreceu de "um meio bilhete premiado da lotaria!"

E não apenas isso: um dia levou mais longe o ímpeto conspurcante encarregando um decuriãozote de pacotilha da guarda pretoriana do cesarismo então imperante, sendo Egas Moniz director da Faculdade de Medicina de Lisboa, de lhe falar de mãos nos bolsos e em linguagem grossa de viela, antes de o conduzir, sob prisão, à cadeia do Limoeiro! À cadeia do Limoeiro onde os novos Pina Maniques continuavam a guardar, ciosamente, a tradição do sinistro lntendente da Polícia!...

Um professor de Letras, abordado um dia por um jovem licenciando que queria tratar, na sua dissertação de licenciatura, de um escritor ainda vivo, respondeu-lhe, todo seguro de sua borla e seu capelo:

"– É cedo. Espere, pelo menos, que ele morra." .

Frederico de Moura

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* - Extraído do artigo de Frederico de Moura, em 1874-1974, no I Centenário do Nascimento de Egas Moniz. Edição da Junta Distrital de Aveiro, Lusitânia, Aveiro.

Visita à «Casa Museu de Egas Moniz» em Avanca.


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