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N.º 29

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Novembro de 1981 

A Arte nas Igrejas

– DE ROMA, PELA EUROPA, ATÉ AVEIRO

Por João Gonçalves Gaspar

 

INTRODUÇÃO

A reflexão que resolvemos aqui deixar por escrito tem como primeiro objecto a arquitectura das igrejas cristãs. Depois de uns apontamentos sobre a história da Arte ao longo dos séculos da nossa Era, fixar-nos-emos finalmente nos templos que as comunidades católicas da Diocese de Aveiro nos últimos anos construíram de novo, ampliaram, restauraram ou adaptaram.

No seu sentido lato, a Arte é uma actividade que tem ocupado o homem em todas as épocas, o qual, pretendendo com ela ilustrar e traduzir as suas altas aspirações, necessariamente valorizou o culto divino. Quando a religião, nomeadamente a religião cristã, apenas participa em parte da cultura de um povo, a arte religiosa representa um mero pormenor na história da Arte; mas, quando na Idade Média, por exemplo, a Cristandade Oriental e Ocidental se confundia com a sociedade, então as belas-artes eram, de modo preponderante e quase exclusivo, a expressão do sentimento religioso e tinham como finalidade principal a construção e o adorno dos lugares de culto.

Convém, todavia, esclarecer que nunca a Igreja perfilhou uma «política» no campo da Arte. Todos os estilos podem servir a sua missão de mensageira da Revelação Divina; e, de facto, ela tem falado na língua artística de épocas sucessivas ao longo da história, que, atravessando, iluminou com a luz do Evangelho. Não admira, portanto – e até é de esperar – que cada momento da civilização e cada raça humana hajam trazido a sua expressão de arte à Igreja.

A Arte Contemporânea, por isso mesmo, é também arte da Igreja, quando procura exprimir plasticamente o Mistério Cristão, num testemunho de autenticidade, de sinceridade e de fidelidade; tal se concretizará na medida em que o artista der à nova construção religiosa o seu génio, a sua inspiração e a sua dedicação, enquadrando-se no sagrado evangélico e renunciando ao possível individualismo egoísta. Como o santo sobressai no campo ético e o sábio no verdadeiro, assim o artista o será no plano da beleza; todos, porém, aspiram a encontrar-se no cume da Perfeição Absoluta. São do II Concílio do Vaticano as seguintes palavras: – «Entre as mais nobres actividades do espírito humano estão, de pleno direito, as belas-artes e, muito especialmente, a arte religiosa e o seu mais alto cimo, que é a arte sacra. Elas tendem, por natureza, a exprimir de algum modo, nas obras saídas da mão do homem, a infinita beleza de Deus, e estarão mais orientadas para o louvor e glória de Deus, se não tiverem outro fim senão o de conduzir piamente e o mais eficazmente possível, através das suas obras, o espírito do homem até Deus». (1) E, noutro passo do mesmo documento, o Concílio insiste: – «Recordem-se constantemente os artistas que, levados pela sua inspiração, desejam servir a glória de Deus na Santa Igreja, de que a sua actividade é, de algum modo, uma sagrada imitação de Deus Criador e de que as suas obras se destinam ao culto católico, à edificação, piedade e instrução religiosa dos fiéis». (2)

A Arte, decerto, não pertence à natureza da Liturgia; não é pela Arte que existe a Liturgia, mas aquela serve o culto cristão. Se é verdade que a Liturgia se dignifica na beleza, não se estranhe que se ponha ao serviço de Deus o que a criação tem de melhor. A Igreja procura evitar o desprezo supostamente espiritualista do mundo visível; este, numa concepção de autenticidade, está destinado a participar na glorificação litúrgica de Deus e na apoteose cósmica ao Criador. Aqui, o serviço enobrece.

 

NAS CATACUMBAS ROMANAS

Desde os alvores da Igreja, sempre os Cristãos sentiram necessidade de possuir ou usar lugares permanentes de culto. Nos primórdios, reuniam-se eles numa sala posta à sua disposição pelo proprietário da casa; / 14 / talvez este compartimento continuasse mesmo reservado à oração. Para reuniões mais importantes, podia um cristão oferecer toda a casa, incluindo o próprio jardim anexo.

Todavia, sobretudo a partir do século IV, o número de construções religiosas não parou de crescer, acompanhando em quantidade e riqueza a evolução geral da sociedade e reflectindo a condição económica dos respectivos povos, senão mesmo o esforço colectivo na prossecução de um fim comum. Foi assim em Portugal, no século XII, durante a Reconquista; foi assim nos séculos XV e XVI, aquando da epopeia dos Descobrimentos; foi assim mais tarde, no século XVIII, na altura da mais intensa colonização e exploração do Brasil; é assim ainda agora, numa ocasião em que há um certo desafogo económico. As populações portuguesas generosamente deram do seu melhor para a edificação e ornamentação de locais dedicados ao culto.

Após a vitória sobre Maxêncio em 312, o Imperador Constantino Magno decidiu conceder a liberdade à Igreja Católica; até aí, sofrendo constantes perseguições e martírios, os Cristãos possuíam quase só oratórios ocultos e capelas funerárias nas catacumbas subterrâneas.

Contudo, podemos encontrar vestígios das primeiras igrejas, já existentes no século III. Assim o edifício de Dura-Europos, no Alto Eufrates, põe-nos em presença de uma moradia transformada em templo cristão, ainda antes de 256, onde não falta o baptistério e zonas destinadas à administração eclesiástica e à residência do bispo; nessa extremidade do mundo cristão, apresenta-se-nos uma relíquia saída das areias, com ingénuos mas preciosos documentos: admiráveis frescos em que Jesus acalma a tempestade, cura o paralítico, conversa com a samaritana e caminha sobre as águas.

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O Bom Pastor – séc. III, nas catacumbas de Stª Priscila, em Roma.

Também em Roma uma grande casa da época de Augusto sofreu adaptações no início do século III; sobre ela terá sido construída a basílica de S. Clemente. Em Aquileia, por seu turno, a basílica erguida no tempo de Constantino ocupou o lugar de uma casa transformada em local de culto, dentro do qual foram achados mosaicos dos fins do século III.

Em resumo, pode afirmar-se que nestes anos, aqui e ali, graças a períodos relativamente pacíficos para os Cristãos, eles puderam acomodar casas particulares em lugares de assembleia litúrgica; mais tarde, mesmo nos últimos anos daquele século, a situação iria modificar-se: começar-se-ia timidamente a construir igrejas e a dar-lhes uma forma diferente da que se usava para as moradias habituais.

Aludimos às catacumbas romanas; pois elas merecem-nos mais um apontamento dedicado especialmente ao seu valor pictórico e ao que este representa para conhecer algo da vivência cristã primitiva.

Nesses cemitérios, enriquecidos com frescos murais, Cristo é figurado como o Salvador, sempre jovem, por vezes na imagem do «Bom Pastor» que leva aos ombros ou apascenta as suas ovelhas num reino feliz. Num carácter simbólico e alegórico, as decorações catacumbais, com suas grinaldas, orantes e pastores, queriam significar a bem-aventurança celeste. Os Santos – e como tais apenas se admitiam os Mártires – admiravam-se e evocavam-se como heróis que deram a vida pela fé em Cristo; e, assim como Daniel, Jonas, Lázaro, etc., foram salvos do perigo, também este ou aquele cristão foi libertado das tribulações do mundo.

Era natural que, em época de constantes e terríveis perseguições, na temática das catacumbas não se representassem os símbolos da paixão de Cristo; o que viria à mente dos discípulos de Jesus de Nazaré seria necessariamente a esperança da salvação; por isso, a alegoria referente a Cristo em majestade é frequente. Nesta linha, opondo-se ao sentimento de instabilidade da vida presente, aparece-nos a perenidade da vida futura, a que aspira o homem, liberto dos laços terrenos; ao carácter efémero do mundo actual, contrapõe-se nas catacumbas a salvação depois da morte e o acolhimento na «Casa do Pai».

É ainda dentro destas coordenadas que surgem, embora de execução mais tardia, as cenas do baptismo de / 15 / Cristo, a adoração dos Magos, Jesus e a samaritana, a cura do paralítico, a multiplicação dos pães, a ressurreição de Lázaro, etc. – tudo episódios de salvação.

 

AS BASÍLlCAS PALEOCRISTÃS

Ao aperceber-se da desintegração do Império Romano, Constantino Magno encontrou como solução de a contrariar ou retardar o reconhecimento da Religião Cristã pelo Estado; servindo-se da Igreja, à qual concedia paz, liberdade e privilégios, o previdente Imperador julgava – e não sem razão – que a universalidade do Cristianismo, patente em todos os seus domínios, apesar de ferozmente perseguido, salvaria a universalidade política romana, já então muito atingida. Significava isto uma nova e profunda orientação no governo do Império.

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Primitiva basílica de S. Pedro, em Roma (Reconstituição de Frazer)

Foi precisamente nessa ocasião que, por iniciativa do próprio Constantino, se levantou, em Roma, o primeiro edifício cristão, oficialmente reconhecido – a basílica de S. João de Latrão, consagrada em 324 pelo Papa S. Silvestre. A este templo outros se seguiram, sob o patrocínio do Imperador, como as igrejas dos Apóstolos (hoje de S. Sebastião), de S. Pedro, de S. Marcelino, de Santa Inês e de S. Lourenço.

A Arte Paleocristã extravasou os muros da cidade de Roma e constituiu a primeira expansão artística de carácter universal na história do Ocidente; a confirmar isto mesmo, ainda hoje se encontram testemunhos desde a Crimeia à Península Hispânica, desde a Mesopotâmia à Escócia, desde a Germânia ao Norte de África. E por toda a parte prevaleceu uma sólida unidade sobre as diferenças regionais que evidentemente nasceram. Adviria mesmo, em tempos futuros, a fragmentação religiosa, a desagregação da civilização antiga, as migrações dos povos, a queda do Império, o aparecimento de novos Reinos...; mas a unidade prosseguiria e a arte basilical influenciaria em novas artes, porque o estilo estava em harmonia com as tendências espirituais dominantes. Não só: também se pode concluir que tal expansão da Arte Paleocristã foi favorecida pelo facto de ela conservar as formas do Baixo Império, herdadas da cultura greco-romana.

Todavia, um espírito novo, ultrapassando a mera aparência material, havia de conferir à obra de arte uma expressão mais elevada. A basílica, no seu próprio significado, era a morada do rei; agora, cristianizada, sublimava-se em morada do Rei dos Reis e lugar de culto da comunidade orante.

Os Cristãos, tendo na imaginação o imperador romano com a sua corte, especialmente no exercício das funções governamentais exercidas na sala do trono, aceitaram usos e costumes vigentes; começaram a ter de Cristo uma noção de Imperador e dos Santos a de personagens poderosos que protegiam o povo. Ao mesmo tempo, as basílicas serviam admiravelmente para as reuniões e para a celebração da Eucaristia. A cadeira do bispo colocava-se no lugar do trono e a mesa-altar, com o espaço circundante, era o centro arquitectural de toda a construção, a atrair os olhares e a atenção do visitante e do liturgo. Cristo lá estava figurado, ao fundo, como o «Pantocrator», em majestade, um tanto impassível e misterioso, a receber as ofertas, as homenagens e as orações dos crentes.

A basílica constantiniana compunha-se de um pórtico quadrado ou rectangular, com fonte ao centro, que servia para acolhimento e preparação, de um edifício de cinco naves – ou apenas de três ou mesmo de uma só, nas regiões provinciais; de um transepto; e de uma ábside. Um frontão encimava a fachada, como nos templos da Antiguidade; uma espécie de arco de triunfo, repousando sobre duas colunas, levantava-se entre o coro e os fiéis; o tecto era uma superfície horizontal de madeira; a construção estendia-se em profundidade; a luz inundava a nave central e entrava por aberturas nas paredes superiores, nos intervalos das colunas, enquanto as naves laterais ficavam na penumbra; uma claridade mais intensa, penetrando por amplas janelas próprias, punha em destaque a ábside fronteira; o altar evidenciava-se como ponto fulcral, para onde convergia o edifício. O exterior da construção revelava-se austero e simples, mas o interior era rico, em decorações murais sobretudo em mosaico, onde predominavam elementos de vitória, porque a Religião Cristã havia finalmente triunfado. A ábside consagrava-se especialmente a Cristo vencedor e à sua soberania universal, enquanto as paredes eram reservadas aos ciclos narrativos do Antigo e do Novo Testamento. As relíquias dos Mártires, que antes se encontravam nas catacumbas e sob os altares, tornavam-se agora objecto de particular veneração.

É evidente que, após a morte de Constantino Magno, prosseguiu-se a construção de novas basílicas cristãs. Assim, o Imperador Valentiniano, em 386, mandou erguer / 16 / a de S. Paulo, em Roma. (3) Como a de Latrão, obedeceu a uma planta de cinco naves e um transepto, mas era dotada de maior equilíbrio de proporções, de mais rica ornamentação e de certo ar de frieza clássica. Os Papas, por seu turno, ordenaram a construção da basílica de Santa Maria Maior (352-366; reedificada em 432-440) e a de Santa Sabina (422-432); nesta houve uma nítida tendência para a simplificação, reduzindo-se o número de naves para três e omitindo-se o transepto.

A evangelização da Península Ibérica começou muito cedo, mercê das relações comerciais com o Oriente, da conversão de muitos legionários e da existência de comunidades de judeus. Nos meados do século III já existiam por aqui várias dioceses organizadas; a Igreja aparece-nos regularmente constituída, desenvolvida a consciência cristã e os bispos em ligação com a Santa Sé.

A mais antiga arte cristã da Hispânia está representada em basílicas, baptistérios e mausoléus, além de sarcófagos e mosaicos. Em Portugal, teatro de várias guerras e sucessivas transformações, poucos vestígios da Arte Paleocristã se encontraram até hoje. Mesmo assim, é notável o conjunto de Torre de Palma (Monforte do Alentejo), que nos provém provavelmente do século IV e que se compõe de duas basílicas com ábsides contrapostas, associadas no mesmo plano geral, conforme plantas norte-africanas; lateralmente desenvolve-se o baptistério, cuja bacia, em forma de cruz de Lorena, é a mais complexa da Península. A uns escassos cem metros para sul, está situada uma grande «villa» rural do Baixo Império.

 

A POLlCROMIA BIZANTINA

No ano de 323, Constantino Magno tomou uma resolução de extraordinárias consequências, cujos efeitos se fizeram sentir até aos nossos dias: resolveu transferir a capital do Império Romano para Bizâncio, cidade grega que, daí em diante, passou a chamar-se Constantinopla (hoje, Istambul). Decorridos seis anos, após uma enérgica e laboriosa campanha de construção, a mudança foi oficialmente completada.

Todavia, o Imperador não previra que a deslocação da sede do poder provocaria, mais tarde, a cisão do Estado; tal veio a acontecer, em menos de um século, embora os seus sucessores em Constantinopla não renunciassem às pretensões sobre as Províncias do Ocidente. Depois, enquanto estas foram presa de povos invasores, o Império Bizantino, pelo contrário, sobreviveu àqueles assaltos e, sob Justiniano (527-561), alcançaria nova força e grande estabilidade. Só em 1453, os Turcos viriam a conquistar finalmente a própria capital.

Foi ainda no tempo de Constantino que na nova metrópole se ergueram diversas igrejas cristãs, entre as quais a dos Doze Apóstolos, onde o Imperador mandou preparar a sua sepultura. Nos séculos futuros, ante a severidade ocidental, vemos afirmar-se progressivamente nos Bizantinos o gosto pela pompa, pelo fausto e pelo esplendor, em paralelo com o que se passava na Corte. Esta sumptuosidade patenteava-se também nos santuários cristãos, pelo carácter imponente das linhas arquitectónicas e pela magnificência da decoração. De facto, os séculos V e VI foram, no Oriente, uma época de grande criação artística.

Em todos os tempos se levantaram basílicas de plano rectangular, com tribunas e gineceus reservados às mulheres sobre as naves laterais; mas, sob a influência das igrejas construídas em honra de Mártires que, por sua vez, eram herdeiras dos mausoléus circulares ou poligonais da arquitectura funerária clássica, recorreu-se a combinações de plano central, solução que encontrou o seu mais notável exemplar na nova basílica de Santa Sofia, edificada sob o Imperador Justiniano – obra-prima arquitectural da primeira Idade de Ouro da Arte Bizantina. (4) No seu interior, toda a noção de peso desaparece; a luz desempenha um papel importante; a cúpula parece flutuar, assente num anel luminoso de janelas justapostas no alto das paredes, rasgadas por tantas aberturas que parecem cortinas de renda; a cintilação dourada dos mosaicos completam a «ilusão da realidade»; os pormenores ornamentais ainda se sucedem em molduras e capitéis.

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Cristo Senhor, com os símbolos de Imperador Romano (Mosaico do séc. VI, em Ravena)

Contudo, por ironia da sorte, o mais rico estendal de monumentos da Arte Bizantina não se encontra em Constantinopla, mas em Ravena, no solo italiano. Tornada capital dos Imperadores do Ocidente em 402 e, ao findar do século, de Teodorico, Rei dos Ostrogodos, cujos gostos se modelaram pelos de Constantinopla, Ravena foi sede de um Exarcado do Império Bizantino até 751. (5) Desta forma, as autoridades políticas locais tornaram-se em mecenas de novas construções civis e religiosas; e Ravena convertia-se no bastião da arte sacra do Império, numa sumptuosa imitação de Bizâncio.

Os monumentos mais característicos e magnificentes são o mausoléu de Gala Placídia, o baptistério do Bispo Néon e as igrejas de Santo Apolinário in Classe, de S. Vital e de Santo Apolinário, o Novo. Tais edifícios, quase todos em tijolo, distinguem-se por grande simplicidade externa; o interior, ao contrário, oferece uma riqueza decorativa sem par, sobretudo em mosaicos policromados – esse trabalho admirável feito de pequeninos blocos de mármore, de vidro ou de esmalte, que constitui uma bíblia em imagens de imensa variedade. Por cima das arcadas e ao longo das paredes não existem superfícies sem coberturas de cor. Quem neles entra, não pode deixar de se sentir arrebatado e envolvido por uma atmosfera que é efeito de um conjunto artístico-religioso. / 17 / Em Ravena, encontra-se a mais alta expressão plástica de um certo esplendor celeste; grinaldas de flores e de frutos, fundo azul sobre que se destacam folhagens douradas – eis os elementos mais comuns na decoração. A linguagem simples das formas arquitecturais é de tal modo dominada pela policromia interior, que dá a impressão ao visitante de se encontrar dentro de uma construção supra-arquitectural; parece que se pretendeu transportar o crente para o domínio espiritual, ajudando-o a esquecer, ao menos por momentos, a realidade do mundo sensível. Sublimados pelos valores da cor, os edifícios religiosos adquirem um carácter de espaço sacramental, servindo maravilhosamente a Liturgia. Podemos afirmar que há aí uma antecipação da arquitectura da Idade Média.

Contudo, a decoração não é a única coisa a conduzir a este efeito; as representações figuradas concorrem para criar a ideia sobrenatural do Cristianismo. No mausoléu de Gala Placídia, por exemplo, S. Lourenço, caminhando sem timidez para o local do sacrifício supremo e mostrando tirar a sua força da cruz, que ele leva com coragem, mostra que alcançará a redenção e o triunfo pelo martírio.

No baptistério de Néon, numa cúpula que assenta em paredes enriquecidas com folhagem e figuras realçadas a ouro sobre fundo azul, desenharam um medalhão representando o baptismo de Cristo no Jordão; à volta, os Apóstolos, com as coroas do martírio nas mãos, estão concentricamente dispostos. O sacramento do Baptismo é o penhor daquela vida suprema a que se chega através da conversão, da «metanóia» e do martírio.

Na igreja de Santo Apolinário in Classe, os mosaicos consistem em duas cenas diferentes: Cristo numa transfiguração simbólica, e o Santo Titular numa atitude de prece, posto numa paisagem que recorda a Paraíso.

A decoração da igreja de S. Vital é uma realização artística notável; episódios do Antigo Testamento acompanham a Liturgia dos ofícios celebrados no espaço do coro, e pormenores da vida de Moisés prefiguram a vida de Jesus. Este, adornando a concha da ábside, aparece como Soberano do Universo e, sob Ele, o retrato do Bispo Maximiano e os desenhos dos Imperadores Justiniano e Teodora.

Contudo, onde esplendorosamente se revela a sumptuosidade dos mosaicos bizantinos de Ravena é na procissão dos Mártires, na igreja de Santo Apolinário, o Novo. Os Mártires, dispostos em duas filas, dirigem-se solenemente para o santuário: – os Santos encaminham-se para o trono de Cristo, rodeado de Anjos; as Santas, precedidas dos Magos, vão para o trono da Virgem Maria, também rodeada de Anjos. Com as coroas do martírio nas mãos, que vão oferecer, todos caminham em movimento cerimonioso, que se desenrola numa paisagem sobrenatural, evocada pelas palmas e pelo fundo de ouro. As cenas têm um carácter de majestade: a pompa terrestre de uma cerimónia com todo o aparato da Corte Imperial pretende projectar-se num plano ultra-terrestre, cujos soberanos são Jesus e sua Mãe.

Do século IX ao século XI, dá-se em Constantinopla uma segunda Idade de Ouro; mas não houve outro monumento comparável ao de Santa Sofia. As igrejas de agora são modestas em dimensão, e a sua planta habitual é a cruz grega. Todavia, os ícones de Cristo, da Virgem, dos Anjos e dos Santos, os mármores nos pavimentos e os mosaicos nas paredes e nas abóbadas adornam-nas luxuosa e piedosamente. Aliás, todas as artes trazem a sua contribuição à Liturgia Bizantina, destinada a impressionar profundamente os povos bárbaros, que até ficam extasiados perante ela.

É também em solo italiano, agora em Veneza, que surge o maior e mais sumptuoso edifício cristão desta época – a basílica de S. Marcos, começada em 1063 e concebida para abrigar os cidadãos de uma grande metrópole. Efectivamente, os Venezianos estiveram, por longo tempo, debaixo da soberania bizantina e conservaram-se dependentes do Oriente no campo artístico, mesmo depois de se tornarem uma potência política e comercial soberana; disso ficou-lhes na história este documento singular e imorredouro, centro espiritual da cidade, onde se ratificavam, em forma religiosa, os actos públicos mais importantes, sob a invocação do Santo Patrono. / 18 /

 

A ARTE PRÉ-ROMÂNICA

Mas... a desagregação do Estado e as perturbações políticas e demográficas de toda a espécie contribuíram para o enfraquecimento da civilização ocidental. Antigamente chamava-se à Idade Média a «idade das trevas»; em contraste com o Renascimento, julgava-se que as centúrias precedentes haviam sido uma época de declínio. Tal epíteto, porém, melhor será aplicado àqueles séculos de desassossego, enquanto a Europa se não refez com outros povos e com outra organização.

Entretanto, neste recanto da Península Ibérica, antes do aparecimento das formas românicas, desenrolou-se um estilo a que se convencionou chamar visigótico; essencialmente hispano-cristã, esta arte tem origens romanas, paleocristãs, germânicas, bizantinas e indígenas.

Sobrevive desta época um limitado número de exemplares. As precárias condições económicas do tempo, as lutas constantes e a diversidade dos dominadores, além de longa passagem dos anos, reduziram aquele somatório a raras e mutiladas espécies.

A capela funerária de S. Frutuoso, em Montélios (Braga), é uma singela cópia do mausoléu de Gala Placídia, em Ravena; a influência bizantina está aí bem patente, na mesma planta em cruz de braços iguais, nas mesmas arcadas cegas decorando as paredes, no mesmo corpo central de planta quadrada e nos mesmos telhados em duas águas.

A capela de S. Pedro de Balsemão, junto a Lamego, apesar das reconstruções sucessivas, talvez conserve o plano inicial.

A igreja monástica de S. Gião, a sul da Nazaré, com uma iconostase pouco mutilada e uma tribuna sobre a entrada, espera uma conveniente restauração para ocupar o verdadeiro lugar na paisagem artística pré-nacional.

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Capela de S. Frutuoso (Em Montélios – Braga; do séc. VII)

As duas arcadas de Santo Amaro, em Beja, podem representar as três naves do primeiro projecto.

A catedral de Idanha-a-Velha – ou Egitânia – dá-nos, ainda hoje, a verdadeira imponência de uma sé desse tempo. O baptistério, colocado exteriormente, é digno de registo pela sua singularidade.

O traço comum de toda esta arquitectura visigótica é a pobreza, a exiguidade e o reemprego de materiais retirados de anteriores edifícios romanos.

A conquista muçulmana, subsequente à invasão de 711, não abafou o culto cristão na Península Ibérica nem a construção de igrejas e cenóbios. Os cristãos hispânicos continuaram a edificar, adaptando, por vezes, fórmulas trazidas pelos islamitas, sobretudo decorativas, cujo exemplo mais flagrante é o arco ultrapassado ou em ferradura. Tentariam assim ser amáveis com os invasores e cativar-lhes a simpatia.

De tal estilo, que comummente se designa por «moçárabe» e que, embora com pouco nível, se manifestou nos séculos IX-XI, parece que apenas nos resta um único, mas notabilíssimo, edifício; é a igreja de S. Pedro de Lourosa (Oliveira do Hospital), datada de 912. (6) Tem três naves, transepto e três capelas de cabeceira, com átrio e arcos ultrapassados.

Por seu turno, os árabes, que ocuparam o centro e o sul do nosso território até 1249, pouco nos deixaram da sua arquitectura... ou então os cristãos da Reconquista fizeram desaparecer os seus edifícios de culto. A construção mais apreciável é a antiga mesquita de Mértola, depois transformada em igreja matriz para a liturgia católica.

Em toda a Idade Média, a Arte mais difundida e imponente é, sem dúvida, a arquitectura que, entre as artes, é a única que se destina ao grande público. Se perguntarmos pela obra-prima mais bela, ninguém hesitará em citar alguma das grandes catedrais; a arquitectura legou-nos monumentos de todos os períodos e em todas as regiões; muitos deles podem ser incluídos no rol das maiores criações saídas da inteligência e da mão do homem. Durante mil anos construíram-se e reconstruíram-se igrejas por toda a Europa.

 

A SOBRIEDADE ROMÂNICA

Nos séculos XI e XII, espalhou-se por toda a Europa cristã a chamada Arte Românica; os edifícios deste tempo, que chegaram até nós, são principalmente mosteiros e igrejas. Cheia de variações e tendências locais, resultantes das condições de vida dessa época e da multiplicidade de povos sem unidade política, tal movimento artístico pode dizer-se constituído por vários estilos. Um só ponto comum, mas capital, permite-nos falar da Arte Românica como entidade: a presença em todas as comunidades de uma única fé religiosa. / 19 /

A planta das igrejas, de três naves longitudinais, de transepto e de ábside, derivou das anteriores basílicas cristãs. O altar ficava na abside, de maneira a permitir a celebração da Eucaristia de frente para a assembleia; era uma simples mesa, sem retábulo nem tabernáculo, e sobre ele não se colocavam nem candelabros, nem flores, nem cruz ou crucifixo, mas apenas toalhas, vasos sagrados e missal. Nada tapava a visibilidade ao povo; nada distraía os seus olhares. Era costume herdado da arquitectura paleocristã.

Ao fundo e à volta da ábside, havia um corredor, da largura das naves laterais, chamado charola ou deambulatório, por vezes enriquecido com pequenas capelas, denominadas absidíolas.

As abóbadas, que nas igrejas antecedentes eram de madeira, passaram a ser construídas em pedra talhada, obedecendo ao tipo de berço ou volta perfeita; o facto de serem de pedra – portanto, pesadíssimas – obrigou a que as paredes tivessem de se construir com solidez e grossura, bem como as colunas que separavam as naves. Todavia, as abóbadas de berço não foram a única solução, pois também as há de aresta. Eram de aresta as das naves laterais, mais baixas e mais estreitas do que a central. Além disso, no «cruzeiro» que era o rectângulo do cruzamento na nave central com o transepto – levantou-se frequentemente a cúpula.

Entre a nave central e o altar, continuou a colocar-se o coro dos monges ou dos cónegos; por baixo do coro desenvolvia-se geralmente uma cripta, destinada à guarda das relíquias e à sepultura de benfeitores ou de pessoas insignes.

As colunas e lintéis poderiam ser embelezados com figuras ornamentais; por cima dos capitéis das colunas ou do arranque das abóbadas, corria uma moldura, simples ou decorada com relevos figurativos de pessoas, de animais ou de vegetais.

No exterior, sobressaía a grandiosidade dos pórticos. Faixas de molduras elementares, arcadas cegas, mísulas ou cachorros rematavam as paredes das fachadas e suportavam a cornija com o beiral da cobertura. Os chamados contrafortes ou gigantes, adossados às paredes que eles reforçavam, correspondiam no exterior aos pilares onde, dentro, se apoiavam os arcos mestres das abóbadas.

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Sé Velha de Coimbra - Século XII

Num conjunto maciço de pedra, de altura mediana e de tipo fortaleza, de linhas sóbrias e de ar pesado, os artistas de então multiplicaram o arco redondo ou de volta perfeita, tanto nos portais e nas janelas, como nas mísulas e em vários elementos da construção.

A iluminação, embora fraca, que dava ao interior um ambiente escuro, resolveu-se por pequenas janelas, pela rosácea da frontaria e pela cúpula do «cruzeiro». (7)

Em Portugal, só tardiamente, nos fins do século XI ou na alvorada do seguinte, é que chegou a arquitectura românica, divulgada entre nós sob a influência dos Monges de Cluny, através dos caminhos de Santiago; S. Sernin de Toulouse, Palência e Compostela foram os elos dessa cadeia artística-espiritual, que no Nordeste Peninsular tomou um cunho próprio.

A Reconquista Cristã, no Ocidente Ibérico, foi lenta e cheia de inquietações; por isso, as construções, adensando-se no Norte e rareando no Sul, foram o reflexo bem nítido de uma civilização peculiar, ao traduzir os sentimentos de quem aspirava levantar uma Pátria, com a esperança posta em Deus. A igreja e a catedral, com o aspecto de fortalezas ameadas, ficaram a marcar a existência de um bispo e os primórdios de um Estado; em tempo de paz eram locais de culto, mas em caso de ofensiva muçulmana tornavam-se cidadelas de abrigo e defesa.

O mais antigo edifício, feito neste estilo, embora posteriormente muito alterado, é a sé de Braga, construída durante o episcopado de S. Geraldo (1096-1109).

A igreja que se conserva mais intacta é a sé velha de Coimbra, datada de 1160. Pertencem ao mesmo século XII o mosteiro de Arnoso, S. Pedro de Rates, S. Cristóvão do Rio-Mau, S. João de Almedina e Santa Cruz de Coimbra, Roriz, Almacave em Viseu, S. João de Tarouca, Santa Maria de Salzedas, as sés do Porto, de Lamego e de Lisboa... e tantas outras pequenas igrejas, cuja maioria é de feitura rude e simples. Os Templários, / 20 / por seu turno, ergueram em Tomar a conhecida charola abobadada, de planta circular, envolvendo um santuário octogonal; talvez inspirada na mesquita de Omar, em Jerusalém, constitui, entre nós, um reflexo da Arte Bizantina.

A sé de Évora, do último quartel do século XIII mas sagrada em 1314, fecha com chave de ouro a época românica, apesar de revelar já pormenores de transição para o Gótico.

Talvez pela organização feudal e pelos costumes de então, imbuídos de medo e de superstição, Cristo passou a ser considerado como o Juiz severo; aqui e ali, nos tímpanos de algumas igrejas, desenharam-n'O na visão apocalíptica do Juízo Final, entre demónios, condenados e santos. As grandes calamidades, as invasões dos povos, o cerco muçulmano à Europa, a insegurança social – tudo contribuiu para a visão terrífica da Alta Idade Média. O demónio era quase uma obsessão; como era necessário esconjurá-lo, multiplicavam-se os exorcismos e faziam-se as bênçãos dos campos, dos animais, das pessoas e das coisas. A Arte viria a exprimir este género de piedade, de luta do bem contra o mal, inspirando-se no pecado original, no Inferno e no Juízo Final.

Por outro lado, o povo – os «servos da gleba» – foi afastado da Liturgia oficial. Entre o altar e assembleia colocou-se o coro dos clérigos e, em varandins, ficavam os senhores. Estes rodeavam o altar, enquanto os simples fiéis permaneciam nas naves, sob os olhares das imagens dos Santos, de número muito reduzido.

Dava-se realce, na arquitectura e no símbolo, à cidade terrestre, à autoridade senhorial, ao poder episcopal e à ordem sacerdotal, mas não se atendia, na respectiva medida e respeito, à importância da assembleia cristã; a Liturgia perdera o sentido comunitário. As igrejas desta época são obras reflectidas e dirigidas, produto genial de indivíduos e não do instinto e do amor das multidões. Não eram tanto casas de oração do povo, mas sobretudo sinais da «Cidade de Deus» na Terra.

 

A ELEGÂNCIA GÓTICA

A chamada Arte Gótica ou Ogival foi substituindo gradualmente a Românica, durante os séculos XII-XIV. Nasceu em Paris, com a construção da igreja de S. Dinis, no tempo do Abade Suger, e logo se expandiu pelos diversos países da Europa ocidental.

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Para Suger, o esplendor das luzes e das cores e o brilho do ouro e das pedras preciosas nas paredes e nos vitrais da sua igreja eram uma emanação, um pálido reflexo da glória eterna de Deus. Comparava ele a luz do dia à Luz não-criada; e a alma do cristão podia subir de luz em luz até Deus. Nos portais mandou ele escrever uns versos que traduzem o simbolismo e a força analógica da beleza material: – «Resplandece a nobre construção, mas é preciso que a construção, que tão nobremente resplandece, / ilumine as nossas mentes para caminharmos, iluminados por luzes verdadeiras, / até à verdadeira Luz, Cristo, a verdadeira Porta / ... A mente fraca eleva-se, através da matéria, até à Verdade».

Nave central da Igreja do Mosteiro de Alcobaça
Século XII-XII

Acontecera uma revolução na Arte. O estilo anterior manifestara-se principalmente na edificação de mosteiros e de igrejas em ambientes rurais; o Gótico, ao contrário, surge sobretudo como um estilo urbano e de catedrais.

As construções góticas, que impressionam pela altura, são cobertas por abóbadas de ogivas quebradas, cujo peso se distribui por finas colunas e leves paredes, reforçadas por belos arcobotantes ou contrafortes. As grandes superfícies das paredes foram rasgadas por amplas janelas e rosáceas, guarnecidas de maravilhosos vitrais – espécie de mosaico de pequenas peças de vidro em cores vivas, unidas por fitas de chumbo – que dão ao interior uma luminosidade a contrastar com a obscuridade das igrejas românicas. Ao aspecto pesado da arte anterior seguiu-se um ar de leveza, manifestado na verticalidade das linhas que, no alto, terminam em pináculos; os arcos pontiagudos, quebrados ou «ogivais», o rendilhado de todo o conjunto e a multiplicação de imagens a encher os pórticos, os claustros e os sepulcros... são outras tantas características da Arte Gótica. A basílica / 21 / românica, agachada no solo, cheia de sombra, fortemente condensada sobre si mesma e apoiada sobre as suas bases, convidava à meditação; a catedral gótica, pelo contrário, obedecendo a um estilo de impulso, com flechas a projectarem-se no infinito do céu, convidando a luz para o seu interior, é um edifício erecto, uma igreja de pé, um apelo à admiração e ao louvor. (8)

Em Portugal, apesar de o estilo ogival entrar tardiamente e vagarosamente caminhar, são numerosos os edifícios deste tipo. É verdade que o Mosteiro de Alcobaça, de excepcional execução e grandeza, foi iniciado em 1178; mas este belo cenóbio de Cister, sagrado em 1252, é como que um enxerto na Arte Portuguesa: os seus planos vieram da França, importados pelos Monges de S. Bernardo, e são uma duplicação quase perfeita da Abadia de Claraval. Só pelos meados do século XIII é que decididamente principiaram entre nós os primeiros ensaios do Gótico.

Os monumentos mais representativos são as igrejas de S. Francisco, de Santa Clara e da Graça em Santarém, de S. Francisco de Alenquer, de Santa Clara em Estremoz, de S. Domingos em Elvas, de Santa Maria do Olival em Tomar, de Leça do Bailio, de Santa Clara, a Velha, em Coimbra, de Santa Clara em Vila do Conde, de S. Francisco no Porto, de S. Domingos e de Nossa Senhora da Oliveira em Guimarães, a matriz da Lourinhã e a sé de Silves. Estes templos, com cobertura de madeira nas naves, já obedecendo à simplicidade inspirada pelas Ordens Mendicantes, são habitualmente abobadados em pedra nas capelas dos cabeçais.

Espalhara-se assim, em Portugal, uma nova expressão arquitectónica, quase no fim da Reconquista Cristã. Já não se tratava de prosseguir a guerra contra os Mouros, mas de consolidar as fronteiras do Reino e de levar a bom termo a obra da evangelização. A Arte Gótica dos Mendicantes não buscava grandeza – o que a distingue da cisterciense – mas a austeridade como espelho da vida conventual. As casas religiosas situavam-se preferentemente fora dos muros dos centros urbanos, para se acudir à gente rural com mais facilidade.

Acabou o século XIV com uma construção de grande vulto, qual foi a do Mosteiro da Batalha, iniciado em 1388 pelo Arquitecto Afonso Domingues; à data do falecimento do Rei-Fundador. D. João I (+1433), a parte essencial ia perto do fim, sob a mestria do inglês Huguet. A ampla igreja de S. Francisco. em Évora, bem como a sé da Guarda, de nova estrutura, começadas no século XV, terminaram já na época manuelina.

Entretanto, também a partir de S. Francisco de Assis e por influência dos seus discípulos – seguidos de perto pelos dominicanos, pelos carmelitas e pelos agostinhos – desenvolvera-se a piedade à volta da humanidade e da paixão de Cristo. O Filho de Deus não era considerado tanto como o Juiz que condena, mas sim o Mestre que ensina e o Homem que sofre pelos pecadores. E em redor não só da pessoa de Cristo, mas ainda dos Santos e mormente da Virgem Maria, haveriam de surgir centros de interesse para a Arte.

Na Baixa Idade Média, a plástica encontra um campo magnífico para se inspirar; a anatomia humana e outros valores naturais vão ser constantes. O Pobre de Assis é bem um dos promotores espirituais do Humanismo, na descoberta do Homem nos caminhos do Renascimento.

 

O MANUELlNO – ARTE PORTUGUESA

No último período do Gótico, o nosso País encontrou-se em mais íntimo contacto com o mundo extra-europeu, graças à epopeia das descobertas e conquistas; em consequência, a arquitectura portuguesa, ainda que fundamentalmente gótica, desdobrou-se numa variedade de subestilos. Uma corrente proveio do estilo flamejante do Norte; outra procedeu do plateresco de Espanha; outra ainda surgiu ao gosto mourisco; por fim, uma nova corrente foi fixar-se nas formas naturalistas, inspiradas / 22 / sobretudo em motivos tomados da flora e da fauna e em temas náuticos, marítimos ou africanos e extremo-orientais. Os arcos quebrados desaparecem ou rareiam, dando lugar aos conopiais, de carena ou contracurvados duplos, e ainda aos polilobados, de ferradura e outros mais, tanto independentes como em várias composições. Nas abóbadas estendem-se complexas redes de nervuras. Toda esta arquitectura, usada com forte determinação sobretudo a partir de 1490, ainda em tempo de D. João II, significa um estilo eminentemente nacional e é chamado «manuelino», em honra do Soberano D. Manuel I, que reinou de 1495 a 1521.

A Mateus Fernandes, «o mais gótico dos mestres manuelinos» – no dizer do Prof. Reynaldo dos Santos (9) – deve-se a porta monumental das Capelas Imperfeitas e as abóbadas das capelas radiais, na Batalha; na parte superior das mesmas capelas e nas bandeiras dos arcos do claustro tem o Manuelino a sua alta expressão. Ao francês Diogo Boutaca encarregou D. João II a construção da igreja de Jesus, em Setúbal, e D. Manuel I a edificação do Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, que, começado em 1502, (10) João de Castilho, espanhol de Burgos educado na estética do Plateresco, havia de continuar e terminar em 1517; posteriormente, Boutaca trabalharia nas Capelas Imperfeitas e, a partir de 1504, na sé da Guarda. De Francisco Arruda é a celebre Torre de Belém, erguida em 1515 a 1520; e a seu irmão, Diogo Arruda, pertence a conhecida janela de Tomar – o documento artístico onde o génio do autor ficou espectacularmente documentado.

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Janela da Casa do Capítulo, no Convento de Cristo em Tomar (século XVII)

A Arte Manuelina deixou inúmeras construções por todo o País – no Continente, em Marrocos, nas Ilhas e no Ultramar; viveu-se então um dos maiores surtos de sempre. Simples pelourinhos ou devotos cruzeiros, formosas pinturas e piedosas imagens, ao lado de majestosos edifícios religiosos e civis, espalharam-se por toda a parte. Deveu-se isto às excepcionais condições económicas do tempo, à generalizada confiança das gentes e à acção do próprio Monarca, que gostava de ver o nome ligado a vistosos monumentos que fossem símbolo do seu próprio poder e da grandeza da Pátria.

O RENASCIMENTO NA ARTE

O estilo baseado no sistema greco-romano de colunas, pilastras, entablamentos e frontões, que nasceram na Itália no século XV, só no segundo quartel da centúria seguinte se difundiu em Portugal. Embora se estivesse em pleno período do Manuelino, já as formas renascentistas começavam a aparecer, mas somente na decoração: medalhões, grinaldas, brutescos e arabescos. Trazidos pelos biscainhos que trabalhavam no Norte do País, ou pelos escultores franceses que operavam em Coimbra e no Sul, tais elementos plásticos não chegariam a caracterizar a nossa arquitectura.

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A primeira manifestação séria do Renascimento numa verdadeira obra de arquitectura verifica-se na varanda sobre o pórtico das Capelas Imperfeitas, na Batalha, devida a João de Castilho que, como tal, já se declarara nos pilares da igreja dos Jerónimos.

Aos artistas da Renascença ficaram a dever-se diversas construções, como as da reforma joanina do Convento de Cristo em Tomar, da capela da Conceição na mesma cidade, da capela-mor dos Jerónimos, do Jardim da Manga em Coimbra, das igrejas de S. Gonçalo em Amarante e de S. Domingos em Viana do Castelo, e das catedrais de Leiria, Portalegre e Miranda do Douro. As obras desta corrente são relativamente poucas, pois o vigor da época manuelina fez prolongar a vida do Gótico e o Maneirismo cedo se soube impor.

Interior da Capela de Nossa Senhora da Conceição, em Tomar (século XVI)

Na arquitectura, os edifícios articulam-se em bons planos, tendo em vista o espaço interno e externo; há proporção e simetria; desce neles a tendência vertical e equilibra-se a horizontal. Na decoração, é sempre a figura humana que prevalece. Na escultura, procura dar-se independência e individualidade às imagens, desligando-as das paredes.

A Renascença tornou-se mais realista do que a arte anterior, porque nela pesavam os valores do Homem; a perfeição anatómica e o que é bom na natureza – tudo foi assimilado e transformado pela arte da Igreja. Celebrou-se o Homem e a sua personalidade. / 23 /

A expressão que melhor poderá caracterizar o Renascimento é dizer-se que foi uma época de grandes descobertas. Descobriu-se o mundo e alargou-se o seu horizonte; reencontrou-se o passado; enveredou-se pelos caminhos da Ciência; analisou-se a estrutura do corpo humano; estudou-se a zoologia, a botânica e a geologia; fizeram-se renascer os valores estéticos da Antiguidade. Mas uma obra do Renascimento não é melhor nem pior do que uma obra medieval. A «Ceia» de Leonardo da Vinci, por exemplo, não é célebre por aquilo que nos descreve mas por aquilo que nos sugere. Decerto que o pintor não salvaguardou os dados históricos; atendeu, sim, aos parâmetros do tempo, como a anatomia, a perspectiva, a composição geométrica e simétrica. A «Ceia de Cristo» deu o tema ao autor, deixando-o livre no conteúdo e na forma. Não é na descrição que está o valor; é na liberdade da composição plástica.

A ESCULTURA RENASCENTISTA

No primeiro quartel do século XVI, assiste-se em Portugal a um movimento artístico invulgar também no sector da escultura, introduzido por mestres estrangeiros: em 1517, o francês Nicolau Chanterenne foi encarregado da traça do pórtico axial da igreja dos Jerónimos – o que marca, entre nós, o início das formas escultóricas do Renascimento italiano ou italianizante.

Tornou-se notável o ciclo de Coimbra, onde talvez tenha trabalhado o mesmo Chanterenne, com a colaboração de outros artífices. Na Lusa Atenas, encontramos inumeráveis obras deste estilo, devidas não só ao trabalho de tais entalhadores da pedra, mas também a Diogo de Castilho, Filipe Hodart ou Duardos e, sobretudo, a João de Ruão. Este foi realmente um mestre insigne, extremamente operoso. Depois de terminar a fachada da igreja da Atalaia, em 1528 radicou-se em Coimbra, onde faleceu no ano de 1580. Fundou uma oficina, criou gerações de artistas e espalhou obras por todo o vale do Mondego, principalmente retábulos, baixos-relevos e composições decorativas. Da primeira época, minuciosa e delicada, a obra capital é a da Varziela, perto de Cantanhede; da segunda, sóbria e de grande nobreza de figuras, contam-se o grande retábulo da catedral da Guarda e, em Coimbra, o retábulo da Nossa Senhora da Misericórdia e a capela do Sacramento, na sé velha.

Não só: da Renascença Coimbrã são também, por exemplo, os retábulos do Sacramento em Cantanhede e em Águeda e os túmulos de Góis e da Trofa do Vouga. As figuras da Ceia do Convento de Santa Cruz, em Coimbra, saídas do génio de Hodart, mostram a forte personalidade do seu criador e são impressionantes pelo naturalismo expressivo dos seus rostos e pela violência e vigor dos seus gestos. (11)

O MANEIRISMO

Na preocupação de se inspirarem nas formas greco-romanas, os artistas do Renascimento facilmente viriam a cair na tentação de trazerem para o campo religioso trabalhos que, aos olhos dos cristãos, não se coadunavam bem com o ambiente espiritual das igrejas. Deste modo, surgiu uma reacção contra o influxo paganizante da Arte Renascentista, revalidando o conteúdo contra a forma. O «Maneirismo» – nome que se deu a esta corrente artística, por se inspirar nas grandi maniere de Leonardo da Vinci, Rafael, Miguel Ângelo, etc. – é o eco da inquietação política, religiosa e social com que o Ocidente se debatia e o símbolo do movimento ascético que então nascera.

A piedade oscila entre dois pólos: o activismo e a mística. A união entre os dois é condição necessária para que aquela seja integral. Santo Inácio de Loiola e Santa Teresa de Ávila conseguiram uni-los; optaram pela vida religiosa personagens reais e senhores nobres, como Francisco de Borja, Luís Gonzaga, Francisco Xavier, Carlos V. E a Arte inspira-se neste pendor místico, que bafejou o século XVI.

São desta época igrejas de uma larga nave única, destinada a abrigar o maior número de fiéis, em perfeitas condições de audição dos pregadores e de boa visibilidade do altar-mor. Sem transepto aparente, a nave é franqueada por capelas fundas, unidas entre si por pequenas passagens. Os Jesuítas irão adoptar e difundir estes moldes maneiristas em quase todas as suas igrejas, de que são exemplares, ao gosto português, as igrejas do Espírito Santo, em Évora, e de S. Roque, em Lisboa, e a sé nova de Coimbra. A igreja de S. Vicente de Fora, em Lisboa, foi iniciada em 1582 sob a traça de João Herrera, arquitecto do Escorial, e construída segundo a direcção de Filipe Terzi e de Baltasar Álvares, para suceder ao velho templo românico, modificado na época gótica; acabada em 1629, sob a orientação de Pedro Nunes Tinoco, é essencialmente uma construção dominada por uma gramática maneirista de grande simplicidade e equilíbrio, de modelo claramente italianizante.

Outra característica das nossas igrejas maneiristas é a existência de tribunas com balcões, dando para a nave ou para a capela-mor, muitas vezes comunicando entre si por pequenos corredores ao nível das janelas. Mais ainda. Ao traçado exterior, de singelos efeitos lineares, corresponde um requinte, por vezes extravagante e desordenado, de decoração interior, num conflito de massas e volumes que quebra a antiga harmonia do edifício da Renascença; contudo, não se pode negar que o azulejo, a talha dourada e os quadros a óleo deram aos templos um ambiente propício, que serviu o ideal da Contra-Reforma.

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O BARROCO

Os dois séculos seguintes – XVII e XVIII – são marcados, na Arte, pelo Barroco. Tudo o que nele é exuberância, vida e gesticulação não obedece a outro ideal senão ao espírito de triunfo. Ao Concílio de Trento e à Companhia de Jesus deve ele indirectamente a sua força e a sua expressão.

A Igreja fora humilhada e enfraquecera. O saque de Roma pelos Germanos em 1527 constituíra um duro golpe; os Turcos às portas de Viena causavam permanente dúvida e inquietação; o Protestantismo roubara-lhe povos inteiros. Mas agora, animada com renovado vigor e decidida a levar o Evangelho a todos os Continentes, sente-se reavivar em esperança de Mãe e Mestra de gentes sem número. Assim, neste contexto, surge o triunfo do Barroco na interpretação da vida, da natureza, do êxtase e do entusiasmo. Por tal razão, o primeiro cliente dos arquitectos, dos escultores e dos pintores dos séculos de então, antes dos soberanos e dos príncipes, foi a Igreja. E a nova Arte, nascida em Roma, provocaria o fervor das multidões, criaria a surpresa, suscitaria o deslumbramento; ela própria tomar-se-ia espectáculo.

A Arte Barroca procurou, pois, afirmar e enaltecer todas as verdades religiosas iluminadas pelo Concílio Tridentino. Ante a negação da Presença Eucarística pelos Reformadores, nasce a exaltação do Santíssimo Sacramento; ante a ignorância generalizada, surge a necessidade da pregação. Desta forma, constroem-se os tronos nos retábulos e os púlpitos nas igrejas-salões. Se eram exíguos e não correspondiam às necessidades da Igreja, os próprios templos anteriores não se poupavam para, em seu lugar, se erguerem maiores edifícios; com o fim de criar condições materiais favoráveis à evangelização, destruíram-se certamente antiguidades de séculos, que hoje fariam parte do nosso património. A preocupação era outra e urgia.

A arquitectura barroca portuguesa caracteriza-se mais pela decoração do que propriamente pelas plantas e alçados ou pela concepção do espaço. Nota-se nela a repetição de formas movimentadas, curvilíneas e envolventes, num sentido de equilíbrio simétrico ou assimétrico; a talha dourada e o azulejo são a contribuição mais original do nosso Barroco, formando conjuntos decorativos sem par.

Assim, as plantas de origem maneirista perduraram entre nós ainda por largo tempo; a parede ondulante, tão característica no Barroco italiano, só muito tardiamente se assinala em Portugal. Apenas no reinado de D. João V, com o enriquecimento do País motivado pela importação do ouro brasileiro e com a vinda de mestres estrangeiros, como Ludovice, Laprade e Nazoni, a nossa arquitectura se tornou decididamente barroca, logo resvalando para o Rococó. Começou-se por obedecer à planta rigorosamente circular, como no Convento da Serra do Pilar, fronteiro ao Porto, e na capela de Santo Amaro, em Lisboa; avançou-se depois para a planta poligonal, como na igreja das dominicanas em Elvas, na capela do Senhor da Cruz em Barcelos e em diversos templos religiosos existentes na zona aveirense. Mas a igreja de planta centrada de maior interesse é a de Santa Engrácia, construída em Lisboa a partir de 1682, rica no seu acentuado barroquismo interior, feita sob o desenho e a orientação de João Antunes, arquitecto da Casa Real.

Torre dos Clérigos, no Porto. Século XVIII

A expansão do Barroco no território português atingiu uma importância verdadeiramente extraordinária com a construção desse gigantesco edifício que é o palácio-convento-igreja de Mafra, onde trabalhou João Frederico Ludovice – ou Ludwig – o mestre alemão italianizado, que antes dera provas admiráveis como arquitecto da surpreendente capela-mor de sé de Évora. Iniciado em 1717, o esplendoroso edifício de Mafra foi sagrado em 1730; mas as obras continuaram até 1744. Aí se conjugam elementos transalpinos (fachada e torres da igreja), alemães (cúpulas bolbosas) e portugueses (torreões laterais); porém, a arquitectura chã continua na / 25 / severidade das fachadas, exceptuando a do corpo central da frontaria. O estilo romano de Ludovice, dando origem a uma escola generalizada, orientou o centro e o sul do País.

Em Coimbra, aponta-se a Biblioteca da Universidade como criação do francês Cláudio de Laprade. Em Lisboa, D. João V empreende a construção do aqueduto monumental das águas livres. O Porto setecentista é marcado pela presença inconfundível de Nicolau Nazoni, que lhe deu a destacada torre e igreja dos Clérigos – a sua obra-prima, concluída em 1763. Este arquitecto toscano, que dominou a região nortenha, soube encontrar um novo estilo, inteiramente adaptado ao gosto nacional, fantasista e cenográfico, rico em efeitos de luz e sombra, onde o granito toma as formas mais expressivas e movimentadas. Com Nazoni e a partir dele, o Rococó atinge uma enorme vulgaridade; em Lisboa, o húngaro Carlos Mardel participa na reconstrução pombalina e Mateus Vicente de Oliveira trabalha no Palácio de Queluz e na Basílica da Estrela, iniciada em 1779 e consagrada após onze anos.

Deve também mencionar-se a capela de S. João Baptista, na igreja de S. Roque, em Lisboa – preciosa jóia da arte italiana dos meados do século XVIII, paga pelo ouro de D. João V. Executada em pedraria, ela constitui, na opinião do Prof. Reynaldo dos Santos, um «conjunto de harmonia e riqueza, como nem mesmo em Itália existe outro igual». (12)

Nesta época, ainda se verifica uma desmedida profusão de imagens, ao gosto rococó, de madeira policromada e estofada. Se nos primeiros tempos do Cristianismo os Santos eram heróis, na Idade Média protectores, em toda a Idade Moderna eles foram considerados como exemplos a imitar e a seguir.

Outrossim aqui se lembra o nome famoso de Joaquim Machado de Castro (1731-1822) – o mais insigne escultor português do século XVIII, que se ocupou da estátua equestre de D. José I para o Terreiro do Paço e de algumas imagens para a Estrela; a ele se deve o presépio da sé de Lisboa, cujas figuras são de barro cozido e policromado.

No barro também trabalharam numerosos artistas, quase todos anónimos; Aveiro foi um dos mais notáveis centros barristas de Setecentos.

O SÉCULO XIX NA ARTE

À actividade artística que dominou o século XIX, sem grande criatividade, convencionou-se dar o epíteto de Neoclassicismo. Pretendendo erguer-se contra as extravagâncias do Rococó, os arquitectos, pintores, escultores e decoradores inspiraram-se sobretudo nas formas do Gótico, do Manuelino, do Renascimento e até da Arte Muçulmana.

Dessa maneira, construíram-se edifícios neogóticos – como a capela dos Pestanas, no Porto; neomanuelinos – como a parte ocidental dos Jerónimos e o palácio do Buçaco; neorenascentistas – como o Palácio da Ajuda, o Teatro de S. Carlos e o Teatro Nacional de D. Maria lI, em Lisboa, o Hospital de Santo António e a igreja da Ordem Terceira de S. Francisco, no Porto, e a igreja do Bom Jesus do Monte, em Braga. Por outro lado, a Arte Árabe tornou-se também uma fonte inspiradora dos nossos artistas; aqui e ali – como na Praça do Campo Pequeno, em Lisboa – vêem-se arcos ultrapassados ou em ferradura e torreões ao gosto de minarete.

O século XIX, com todas as convulsões sociais e políticas que sofreu, não foi favorável a construções de igrejas ou conventos. Pelo contrário: a extinção das Ordens e Congregações Religiosas provocou a destruição ou mutilação de muitos edifícios de valor artístico e sobretudo a perca ou dispersão do seu espólio. Só no final de Oitocentos e no início do século actual se levantaram alguns modestos templos, seguindo estilos anteriores, como aconteceu com a capela de Santa Luzia, sobranceira a Viana do Castelo, o santuário do Senhor da Serra (Coimbra), a igreja de Espinho, a igreja dos Anjos, em Lisboa, e a basílica do Sameiro, em Braga. O século, cruzado por uma arte eclética, morre sem grandes voos nem originalidade. Uma sucessão de «estilos de revivência ou de ressurgimento» dominara a arquitectura; a autoridade das formas históricas, contudo, tinha de ser frontalmente quebrada, para que a era industrial pudesse criar um estilo autenticamente contemporâneo.

A ARTE NOVA... E NÃO SÓ

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Fachada de um prédio, no Porto (R. de Cândido dos Reis, 75 – Séc. XX)

O clima de instabilidade governativa, a implantação da República e o deflagrar da primeira Guerra Mundial fizeram com que os primeiros anos do século XX não fossem propícios a uma renovação artística em Portugal; continuava a verificar-se a utilização dos esquemas eclectistas anteriores, embora aos mestres não faltasse competência. É de notar, porém, a influência da chamada «Arte Nova», que fez proliferar, principalmente na decoração, o emprego sistemático de curvas e contracurvas, de estilizações florais, de artifícios de estuques, de pinturas em azulejo e, sobretudo no Norte, de ferro em portões, varandas, grades e mesmo em estruturas.

A «Arte Nova» apareceu em 1889, numa exposição universal de Paris; procurou ser uma hipótese de modernidade, de criação de algo de actual e autêntico, aspirando reagir contra as contínuas repetições que vinham a acontecer desde os meados do século XVIII. Começando a declinar em 1910, acabou por desaparecer em 1925, com a exposição do «Esprit Nouveau», também em Paris. Fora efémera a sua duração. / 26 /

Nos últimos anos da primeira metade do século XX, construiu-se, em Lisboa, a igreja de Nossa Senhora de Fátima, desenhada por Pardal Monteiro (1938), que, durante certo tempo, foi apontada como exemplar único e válido de uma moderna arquitectura religiosa em Portugal. Da mesma época é o Seminário de Cristo-Rei, nos Olivais, com a sua igreja; um pouco posteriores são as igrejas de S. João de Brito e de S. João de Deus, em Lisboa, e a de Nossa Senhora da Conceição, no Porto. Entretanto, ia-se erguendo o conjunto arquitectónico do Santuário de Fátima, sem originalidade nem carácter, mas acolhedor de milhões de crentes que aí buscam a paz de consciência e a luz do Evangelho, sob a protecção de Maria.

Porém, após a segunda Guerra Mundial (1939-1945), assistiu-se a um sério esforço na procura de novas formas artísticas que, passado algum tempo, dariam os seus frutos. A um período de estagnação arquitectural sucederia uma época de ousadas construções, usando plenamente os novos materiais. A igreja de Moscavide, em Lisboa, traçada pelos Arquitectos João de Almeida e Freitas Leal em 1956, na sua austera simplicidade revelou que era possível introduzir entre nós o moderno estilo da Arquitectura Universal e serviu de ensaio para uma melhor funcionalidade litúrgica.

AS NOVAS IGREJAS

Na Arte da Igreja, além das suas qualidades gerais, terá de haver um quê de mistério e de transcendência: é claro que a preocupação em conseguir tal objectivo, levará o artista a exprimir, em cada época, esta ou aquela faceta da multiforme personalidade de Cristo e a encarar mais especificamente, num ou noutro pormenor, a riqueza da Liturgia e a devoção aos Santos. Como a Arte é um dos modos da comunicação humana e social, a sua manifestação religiosa no conteúdo e na forma – que não no tema (13) – adapta-se ao tempo e ao espaço, segundo o grau de cultura e a capacidade espiritual de quem serve, e a direcção cultual e piedosa das comunidades. Nesta evolução, já não vale tanto para nós o Pantocrator bizantino ou o Juiz medieval; fala-nos mais o Cristo irmão e trabalhador, que eleva e salva a humanidade, vivendo e sofrendo com ela.

Nos finais do século XIX, mas sobretudo no nosso século, surgiu um movimento de renovação litúrgica e começou a dar-se relevo ao sacerdócio comum dos fiéis. A Liturgia deixou de ser propriedade exclusiva dos ministros oficiais do culto, porque a própria assembleia voltou a participar nela e a ser actora na Acção de Cristo.

Desta maneira, os progressos do movimento litúrgico não apenas influenciaram a vida espiritual dos católicos, mas também exerceram grande impacto sobre a evolução da Arte Sacra. Esta, após dois séculos de mediocridade, adquiriu uma nova face. O desejo dos liturgistas em favorecer a participação activa dos crentes e de colocar em relevo o altar conjugou-se com as possibilidades oferecidas pelos modernos processos de construção. Assim, puderam e podem construir-se igrejas mais funcionais, onde os espaços são elaborados em função das necessidades litúrgicas e onde, com a supressão de paredes, a luz e a cor dos vitrais colaboram com as massas e com as linhas para a criação do espaço sagrado.

Após algumas tentativas anteriores à Guerra Mundial de 1914-1918, a primeira realização verdadeiramente artística de uma igreja em cimento armado foi a de Notre-Dame du Raincy (1921-1923), de elegância ao mesmo tempo audaciosa e tradicional. Todavia, na França, este exemplo permaneceu isolado; entre as duas guerras, foram a Alemanha, a Suíça e a Holanda os países onde a renovação da arquitectura sacra produziu os frutos mais notáveis. Rompia-se deliberadamente com os métodos herdados do passado e harmonizavam-se as igrejas com as tendências actuais.

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Igreja paroquial de Rio Maior (Arq. José Luís Zúquete e José Bruschy – 1966/1968

Os templos de agora querem ostentar a verdade dos materiais, para serem símbolo e testemunho da Verdade. Os diversos elementos de construção não podem desaparecer debaixo da forma, mas esta procurará adaptar-se-lhes. Se o betão, por exemplo, é modelado, tendo em conta a sua natureza forte e deixando perceber o seu aspecto negro, sem a falsidade do reboco ou do estuque e sem a mácula da pintura, então ele é verdadeiro; mas, se com o cimento se imita a pedra, se fazem arcos, se alindam superfícies, então ele serve a falsidade. Por tal razão é que os artistas modernos, dentro do contexto da autenticidade, têm procurado esforçar-se por valorizar os materiais e daí arrancarem as propriedades / 27 / de um novo estilo. A madeira é deixada sem pintura, o granito não é lavado, o betão não é escondido, O ferro aceita-se na sua cor. Tudo isto parece exprimir, na época de sinceridade em que vivemos, a simplicidade do Cristianismo puro dos primeiros séculos, mas renovado à maneira dos nossos tempos. Além disso, quando na construção dos edifícios religiosos se aplicam os materiais da região, sem riqueza e com economia, dá-se ao povo uma obra que ele aceita; se os cristãos virem consagrados na casa de Deus o seu tijolo, o seu granito, o seu calcário ou o seu azulejo – o que todos usam nas próprias habitações – eles amarão decerto ainda mais as suas igrejas, como símbolo do que os rodeia e como continuação espiritual dos seus lares.

As igrejas modernas visam principalmente um centro convergente, que se corporiza no altar; pela dedicação ritual, ele representa o próprio Cristo, que faz a unidade dos baptizados; ele é a mesa onde se desenrola o Mistério Eucarístico. Portanto, o altar aparece-nos realçado, iluminado e enriquecido, em nobreza e proporção, sem ornamentos a desfigurarem uma peça que se tem de impor por si mesma. Colocado o mais possível próximo da assembleia, envolve-o um espaço que baste para a dignidade da Liturgia. Ele, que é a razão de ser de toda a construção, tem valor por si mesmo; a própria cruz – ou o crucifixo – introduzida na Liturgia após o século XIII, ocupa um lugar secundário. Assim se retomou a consciência de que o altar precede o templo; antes de pensar neste, o homem crente construiu aquele, para oferecer à Divindade dons e sacrifícios.

Mas as igrejas modernas também consideram com devido relevo um outro aspecto importante, qual é a disposição das pessoas no espaço sagrado. Toda a assembleia, sem classes sociais – porque só há aqui uma única fraternidade social, que deriva do Corpo Místico de Cristo – quer ser «assembleia litúrgica», em especial na celebração da Eucaristia. Não se concebe hoje uma celebração cultual realizada de costas para o povo, com o altar arrumado no muro da ábside, como suporte de retábulo e de imagens ou como mesa de candelabros e de vasos de flores e de plantas.

A devoção aos Santos passou para o sítio apropriado: eles são os amigos de Deus e os nossos amigos, que nos ajudam a caminhar com Cristo; por conseguinte, na hodierna arquitectura, as suas imagens fazem parte mais do povo do que do altar, para onde o Barroco as havia levado. Maria ocupará apenas um lugar especial, porque, no plano salvador, ela tem uma missão única, como Mãe de Deus e Mãe da Igreja.

Todo o espaço sagrado deve, portanto, ajudar a que os crentes se aproximem de Deus, na simplicidade e na autenticidade. A Igreja, que sempre deu grande liberdade aos artistas, não deseja que a Arte alguma vez possa ofender a Doutrina, a Liturgia e o senso comum dos cristãos. O demasiado profano, a complicação e a falsidade são outros tantos defeitos que não se acham nos moldes dos nossos tempos. Embora funcional, a igreja contemporânea não é a fria conclusão de um mero espaço útil, porque aqueles que dela se servem têm propósitos de santificação. Se os espectadores vão a uma sala de cinema para ver e sentir cada um por si, o mesmo não se pode dizer da assembleia cristã, reunida à volta do altar: aqui há participação espiritual, donde flui a paz e o amor fraterno. A igreja actual, isenta do supérfluo, dos nichos e dos altares devocionais – que poderão construir-se numa cripta ou em espaços reservados – há-de inspirar calma, recolhimento e abrigo à gente fatigada do barulho, do movimento e do trabalho; atraiçoaria a sua missão sublime, se fosse construído no meio da poluição sonora, dos gritos do comércio, dos sons de altifalantes ou dos cartazes de propaganda. Ao lado do coração das povoações, ela tem de ser um outro coração, onde os utentes encontrem Cristo. A Arte Contemporânea é instrumento disto mesmo, pelo seu valor expressivo e natural.

 

O II Concílio do Vaticano confirmou e pôs em relevo o valor intrínseco da Palavra de Deus e a necessidade da leitura e da reflexão da Bíblia Sagrada. Dentro deste espírito, surgiu a necessidade de se reservar, no templo, um lugar para a proclamação da Boa-Nova libertadora.

Nas igrejas actuais, em sítio bem visível e à frente da assembleia, coloca-se o ambão, para as leituras e para a pregação, que se fazem ouvir, se for necessário, com o auxílio de amplificação sonora. Modelado no estilo do altar, o ambão aparece-nos decorado com motivos alusivos ao Evangelho ou a Cristo – a Palavra Viva e Pessoal do Pai no meio dos homens. Afinal, restaurou-se o que já se fazia em séculos passados, como se pode observar em Roma, na basílica de S. Lourenço fora dos muros e na igreja de Santa Maria in Cosmedin.

Outro lugar que os artistas contemporâneos procuram ter em grande consideração é o baptistério, cuja solução ainda não parece evidente. Duas correntes se entrechocam na colocação da fonte baptismal, provenientes / 28 / de concepções diversas: a) – O Baptismo é o primeiro sacramento da iniciação cristã e, por isso, considera-se como a porta de ingresso na comunidade dos filhos de Deus; consequentemente, concluem alguns que aquela deve ser posta junto à entrada da matriz. b) – Mas, dado o seu valor único na Igreja, o rito deve desenvolver-se com a participação da assembleia; assim pensam outros que a pia baptismal ficará melhor em sítio mais apto à visão de todos.

A segunda hipótese é aquela que vai sendo habitualmente seguida em adaptações de igrejas e em novas construções.

Outrossim, não é de menosprezar o lugar do Sacramento da Reconciliação, onde os sacerdotes atendem os cristãos não só em confissão auricular tradicional mas também na direcção espiritual. Tratado com essa finalidade e colocado em sítio patente, ele chama a atenção das pessoas para a constante actualização da misericórdia de Deus, que não deseja a morte do pecador mas que se converta e viva.

E, se o templo conserva o Santíssimo Sacramento para a adoração dos fiéis e para a reserva destinada aos doentes, prevê-se no seu contexto uma capela ou um espaço recolhido destinado ao sacrário, que atraia e chame sem violência. Aí deve sobressair naturalmente um ambiente de silêncio e de oração, bem propício ao crente que deseja encontrar-se com Cristo, Pão partido para a sua fome de amor, de paz e de infinito.

Não é de somenos importância o problema da iluminação das nossas igrejas, a qual não pode ser tão reduzida que impeça a visão, nem tão clara que obste ao recolhimento. Também aqui é de aplicar o velho adágio: no meio termo está a virtude.

Quanto à luz eléctrica, o seu uso só se justifica na igreja com o fim de a iluminar, mas sóbria, digna e austeramente. Todavia, um foco de luz indirecta poderá fazer realçar uma imagem, um motivo artístico ou mesmo o altar da Eucaristia.

RESTAURO E AMPLIAÇÃO DE IGREJAS

A restauração de quaisquer monumentos ou edifícios é um problema complexo, cuja resolução tem de atender a vários factores; em consequência, se um restauro se antolha delicado, mais difícil é a sua concretização.

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Igreja Paroquial de Calvão (Arq. Abrunhosa de Brito e Manuel Magalhães – 1969/1970)

No caso específico das igrejas, há que encarar não só os possíveis aspectos arqueológicos ou artísticos, mas também o lado utilitário, se elas ainda estão abertas ao culto; há que ver se a sua construção obedeceu a um único estilo ou se, edificadas ao longo de séculos, manifestam vários estilos; há que considerar se foram destruídas ou mutiladas violentamente por incêndio, terramoto ou bombardeamento, ou se se foram deteriorando por natural decomposição.

Hoje em dia, já não se pensa como na época da Renascença, quando os artistas estavam convencidos de que tudo o que era medieval não tinha significado; por tal motivo, Bramante destruiu a velha basílica de S. Pedro, no Vaticano, para aí levantar a actual. Também não se pensa em fazer desaparecer edifícios, só porque recordam a tradição cristã, como aconteceu no período louco da Revolução Francesa. Pelo contrário: procura-se conservar e valorizar tudo o que os nossos antepassados nos legaram, respeitar pormenores de monumentos e até utilizar os edifícios, dando-lhes a mesma função para que foram construídos ou, se esta se tem por desnecessária, uma outra que seja útil à população. Não obstante, abandonam-se as reconstituições integrais, quando não se sabe como anteriormente eram os monumentos ou as obras de arte.

Dado o aumento demográfico verificado em certas regiões, acontece tornar-se urgente a ampliação de igrejas e capelas. Para isso, os responsáveis e os arquitectos estudam previamente se a construção aguenta o aumento, sem aberração; isto dificilmente poderá fazer-se em monumentos antigos, que veriam a sua traça adulterada ou mutilada.

Onde é possível e necessária, a ampliação será concebida decerto na mesma escala e não destruirá as proporções e o ritmo; obedecendo a um carácter de simplicidade, embora dentro de planos modernos, não tenderá à unificação do estilo, mas conservará tudo o que de bom exista no monumento.

Se são difíceis os restauros e as adaptações de igrejas, mais difíceis se tornam as ampliações; agir com prudência é a norma basilar para todos os responsáveis.

UMA CAPELA DE VANGUARDA

No nordeste da França, na Prefeitura de Belfort e Diocese de Besançon, num sítio chamado Ronchamp, ergue-se, desde 1955, uma das obras mais célebres, revolucionárias e ousadas da arquitectura religiosa moderna. / 29 /

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Capela de Nossa Senhora do Alto, em Ronchamp, Franca (Le Corbusier, 1950/55)

É uma capela executada conforme o plano de Le Corbusier – um grande artista do nosso tempo que lançou o seu documento para a posteridade.

Le Corbusier foi simbólico em Ronchamp, para além do prático. Ao conceber a capela de Nossa Senhora do Alto, pensou que a devoção dos fiéis, que subissem o cimo da montanha, era mais poética e mística do que a da vida paroquial; por isso, escutou os horizontes e, ao desenhar a sua capela, quis que ela fosse um eco dos longes da paisagem circundante. Sem copiar a natureza, inspirou-se nela; foi um arquitecto do espaço.

As paredes maciças parecem obedecer a uma força invisível, que as faz inclinarem-se e enrolarem-se como papel; e o telhado saliente sugere a aba de um enorme chapéu, ou uma fortaleza, ou o fundo de um navio rachado no sentido do comprimento pelo contraforte aguçado de que está suspenso.

Convidado a criar um santuário num cume de montanha, Le Corbusier quis, além disso, evocar o impreciso passado pré-histórico e colocar a sua obra numa linha de sucessão directa dos velhos templos. Daí, evitou toda a correlação entre o exterior e o interior: as portas, que estão escondidas, procuram-se como fendas, no flanco da montanha, e transpô-las é quase penetrar numa caverna secreta e sagrada; só no interior nos apercebemos do aspecto especificamente cristão de Ronchamp. A luz filtrada por janelas de vitrais tão pequenas que de fora pouco mais parecem do que rasgões ou buracos rectangulares, volta a ser o que foi na arquitectura medieval: o reflexo visível da luz divina.

Em Ronchamp há autêntica religiosidade; mas também vagueia uma qualidade estranhamente inquietante, uma nostalgia pelas certezas de uma Fé que já não é aceite sem discussão. Ronchamp reflecte a condição espiritual do homem moderno – o que é bem a medida da sua grandeza como obra de Arte.

De plano irregular e sem fachada definida, a capela de Nossa Senhora do Alto compõe-se de uma única nave, que desce interiormente para o altar, e de um alpendre, com lugar de culto ao ar livre, para as grandes multidões. Ao procurar entendê-la – e para isso tem que a amar – o visitante concluirá ser o Cristianismo capaz, também no nosso tempo, de inspirar os génios da Arte, que continuam livres na obediência ao Sagrado. Além disso, Le Corbusier poderá dizer ao arquitecto moderno que se enquadre no espiritual com verdade e simplicidade, sem deixar de respeitar o urbanismo geográfico e social, de ouvir a melhor tradição e de atingir o «símbolo». O arquitecto moderno, ao pretender ser mensageiro e apóstolo de valores cristãos, procurará certamente que as suas criações sejam sacramentais, testemunhando aos homens e à natureza a presença actuante de Deus Criador e Salvador. É que há muita gente que espera encontrar no interior dos nossos templos oásis de paz e silêncio, senão poderosos auxílios em ordem à concretização da verdade perante o erro, do amor perante o ódio, da segurança perante a incerteza; e estas esperanças não podem ser frustradas por aberrações que não são manifestações de Arte.

Na sequência deste pensamento, vem a propósito citar o último Concílio Ecuménico, quando afirma: – «Deve trabalhar-se por que os artistas se sintam compreendidos, na sua actividade, pela Igreja e que, gozando de uma conveniente liberdade, tenham mais facilidade de contactos com a comunidade cristã. A Igreja deve também reconhecer as novas formas artísticas que, segundo o génio próprio das várias nações e regiões, se adaptam às exigências dos nossos contemporâneos. Sejam admitidos nos templos quando, com linguagem conveniente e conforme às normas litúrgicas, levantam o espírito para Deus». (14)

Não falecem já em Portugal certos edifícios sacros, espalhados pelo País, que obedecem a estas preocupações de verdade e singeleza. As matrizes de Arroios, de Paço d'Arcos e do Coração de Jesus em Lisboa, a paroquial de Rio Maior, as igrejas dos Padres Dominicanos em Fátima e da Sociedade Missionária Portuguesa em Valadares, os templos do Carvalhido, de Cedofeita e da Boavista no Porto, as novas igrejas de Negrelos em Santo Tirso e de S. Lázaro em Braga, e a cripta do Sameiro... são meros exemplos de uma Arte Religiosa dos nossos dias, neste final do século XX.

UM RELANCE POR AVEIRO

Num rápido e simples bosquejo pelo território da Diocese de Aveiro, sem a preocupação de ser completo e muito menos exaustivo, indicar-se-ão uns tantos exemplares da arquitectura religiosa. / 30 /

Sabemos que muitas das nossas terras já se encontram nomeadas em documentos anteriores à própria fundação da Nacionalidade Portuguesa; há, por exemplo, uma alusão à presença cristã na zona do Antuã em 569, quando Teodomiro, rei dos Suevos, mandou reunir um Concílio em Lugo. Teria por aí existido algum templo visigótico?

Muito posteriores são as referências a outras povoações: 883 – São Lourenço do Bairro; 959 – Aveiro, Alquerubim e Sangalhos; 961 – Arcos; século X – Aguada de Baixo, Barrô e S. Cucufate da Moita; século XI – Anadia, Águeda, Cacia, Eixo, Mamarrosa, Monsarros, Soza, Tamengos e Vilarinho do Bairro; século XII – Albergaria-a-Velha, Avelãs de Caminho e Avelãs de Cima. Também se pode concluir pela existência de mosteiros moçárabes: 922 – nas margens do rio Antuã, talvez Santa Marinha de Avanca; 957 – Lamas do Vouga; 964 – Santo André de Sever do Vouga; 1002 – Rocas do Vouga; 1050 – Cedrim do Vouga; 1095 – Eixo.

Contudo, não nos chegou qualquer edifício cristão nas formas do Românico; apenas se conhece uma única imagem da Virgem Maria, esculpida nesse estilo, que, tendo estado na igreja de Soza, foi retirada do culto e substituída por uma outra em traços góticos, da primeira metade do século XV. Decerto que o primitivo templo que abrigou aquela imagem, mandada executar pelos Congregados de Santa Maria de Rocamador, aí presentes desde 1192, seria de construção românica, como românicas teriam sido outras igrejas de vetustos povoados, erguidas após a Reconquista Cristã, mas sacrificadas mais tarde para darem lugar a novos e mais espaçosos edifícios. (15)

Como prova desta asserção, em igrejas actuais ainda se conservam diversas lápides, referentes à fundação ou dedicação de templos antigos. Vejamos: – Uma inscrição lítica em Lamas do Vouga informa a dedicação de uma igreja no ano de 1170; (16) uma outra, na matriz de Avelãs de Cima, atesta o ano de 1173; ainda outra, existente em São Lourenço do Bairro, fala da igreja medieval fundada em 1181; mais outra, esta em São João de Loure, indica a dedicação de uma igreja em 1186; e, na paroquial da Moita, documenta-se a reconstrução do templo em 1195. Já posterior – de 1253 – é a lápide comemorativa da dedicação de uma igreja em Sant'Iago de Beduído (Estarreja), embora se saiba ter aí existido um centro de culto nos fins do século X ou princípios do seguinte.

Diz-se também que a vetusta igreja de S. Miguel, que altaneira se erguia em Aveiro, remontava ao século XI, talvez ao tempo do Conde D. Sisnando, senhor de Coimbra e das terras entre o Douro a as fronteiras com os Mouros ao sul do Mondego, por doação feita em 1086 por D. Fernando, rei de Leão. Foi demolida em 1835, após o desfecho das guerras liberais, não fosse o nome do celeste Arcanjo lembrar constantemente, no meio da Urbe, o do Rei proscrito. Restam dela algumas relíquias de reconstrução renascentista, guardadas no Museu de Aveiro.

Um outro santuário antigo, nesta zona, é a capela de Nossa Senhora de Vagos – ou, como diziam os medievos, Santa Maria de Vagos – que, no meio de um vasto ermo campestre, é procurada por devotos e peregrinos.

Segundo a tradição, antes do edifício existente, houve outro, afastado do sítio actual. Afirma-se mesmo que esta primeira ermida datava do século XII ou do início do seguinte. Foi entregue por el-Rei D. Sancho I ao Mosteiro de S. Salvador de Grijó, mediante documento de doação de 18 de Agosto de 1200 (1238, da Era de César). Mais tarde, o mesmo Soberano doou-lhe o Couto de S. Romão. Embora de Grijó, cujos monges tratavam do templo e do culto, a ermida continuaria a ser lembrada pelos nossos Reis, em agradecimento de favores recebidos por intercessão da Mãe de Deus. D. Afonso II legou-lhe, em testamento de 1221, cem morabitinos, para a compra de uma propriedade. Mais tarde, D. Manuel I, em carta de 22 de Fevereiro de 1505, autorizou Gonçalo Gil, prior da ermida, a doar-lhe umas marinhas de sal que de novo fizera.

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Lápide de Lamas do Vouga – Vestígios da igreja de 1170 (Era cristã)

A actual capela é de aspecto corrente; há por lá vestígios de construção anterior, como as cruzes da sagração, o arco de volta perfeita na entrada principal, a pia de água benta junto à porta travessa – tudo dos meados do século XVI. O brasão terá feito parte do epitáfio de Estêvão Coelho, que, depois de devotamente por aí viver, morreu em 1515 e lá teve sepultura. A imagem da Padroeira também parece datar do mesmo século XVI.

Ao Gótico das Ordens Mendicantes obedeceram as traças iniciais do Convento de Nossa Senhora da Misericórdia dos Padres Dominicanos, então à ilharga de Aveiro, e do vizinho Mosteiro de Jesus – aquele principiado em 1423 e este em 1458. A demonstrar a veracidade desta afirmação temos os restos preciosos de paredes dos primitivos edifícios, tanto na velha igreja daquele Convento (actual sé episcopal) como no Museu / 31 / de Aveiro; o campanário, os arcos em ogiva e as pedras sigladas marcam o nascimento quatrocentista de ambos. Também em Aveiro existiu uma capela gótica, dedicada a Santa Catarina, Virgem e Mártir; desapareceu da nossa paisagem em 1835, demolida com a igreja de S. Miguel.

Efectivamente, não possuímos edifícios em estilo ogival; mas ele ficou bem documentado nas muitas dezenas de imagens, ainda hoje ao culto em pequenas ermidas, em capelas e em igrejas, ciosamente guardadas e acarinhadas pelas populações. Feitas em calcário, mais ou menos artisticamente, atribuem-se aos séculos XIV e XV e princípios do XVI. Da mesma época são as pias baptismais de Águeda, de Avelãs de Caminho e de Vila Nova de Monsarros, uma pia de água benta em Sangalhos, o túmulo dos Borges na matriz da Moita e uma rosácea na capela do Brunhido, na freguesia de Valongo do Vouga.

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Registo especial se reserva agora à escultura gótica da Virgem sentada com o Menino, que é a Titular da capela de Nossa Senhora dos Banhos, na freguesia de Vilarinho do Bairro. A sua existência nesta ermida indica que, antes do actual edifício, outro ou outros existiram.

O modesto e vulgar santuário encontra-se implantado na parte baixa da aldeia; o seu verdadeiro interesse não é o artístico, mas o religioso e o etnográfico. Há sob o altar um pequeno poço rectangular, ao qual se desce por uma escadita; era a fonte inicial donde se tirava água para as pessoas beberem, se banharem e levarem para casa. Tal água, fria, vem sendo procurada, desde tempos recuados, pelas suas qualidades minero-medicinais. Por isso, na capela se encontram muitos ex-votos e até lápides de reconhecimento.

Um testemunho da arte gótica em Aveiro, no Mosteiro de Jesus, hoje Museu de Aveiro – Século XV

Do Gótico arcaizante é a imagem de Cristo, no cruzeiro de S. Domingos, em Aveiro; mas já é do Manuelino a cruz, com seus remates em flor de lis, com seus cairéis a rebordar e com seus arcos conopiais a abrigar os relevos da Paixão do Senhor. Do Manuelino são algumas portas no velho Mosteiro de Jesus e ainda o arco interior na capela de Santa Maria de Sá, também em Aveiro, que atestam construções ou reconstruções; pertencem-lhe outrossim as pias baptismais das matrizes de Sangalhos e de Valongo do Vouga, e a da capela da Moita, na freguesia de Oliveirinha.

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Cruzeiro Gótico-Manuelino, em Aveiro

séculos. XV-XVI

A Arte da Renascença e do Maneirismo firmou-se nas nossas terras em muitas obras religiosas. A matriz de Sever do Vouga sofreu uma reforma no século XVI, de cunho renascentista. Em Aveiro, no ano de 1554, levantou-se o cruzeiro de Sá, com templete; na igreja dos Padres Dominicanos (hoje, sé) construíram-se as capelas devocionais à nossa direita, todas com as datas de 1559 e 1560; e ergueram-se os retábulos da Visitação e da Misericórdia e fez-se a deposição de Cristo e o sepulcro de D. Catarina de Ataíde – todos da escola coimbrã. Um / 32 / pouco posteriormente, em 1562, ergueu-se a capela de A-dos-Ferreiros, na paróquia do Préstimo, e, em 1568, construiu-se a pequena capela de S. Bartolomeu, na freguesia da Vera-Cruz (Aveiro).

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Do mesmo ciclo mondeganho são os túmulos da igreja de Trofa do Vouga, a deposição de Cristo e o retábulo do Sacramento em Águeda, o nicho de Nossa Senhora da Graça em Eixo, os arcos-cruzeiros da capela de Assequins, em Águeda, e das paróquias de Travassô e de Frossos, os retábulos da capela de S. João de Anadia, em Sangalhos, dos Santos Físicos de Aguim e da capela da Mata, em Tamengos, e a pia baptismal de Frossos. Enquadraram-se no mesmo estilo alguns restos existentes na capela de S. Silvestre, em São João de Loure, e nas matrizes de Aguada de Baixo, da Moita e de Tamengos. Obedecem-lhe também muitas imagens e outros artifícios, que, apesar das reconstruções seguintes, chegaram até aos nossos dias. À época final e tardia da Renascença pertencem os arcos que foram das capelas laterais na igreja de Águeda, o retábulo da Visitação na paroquial de Esgueira e muitos dos nossos cruzeiros, com templete, que fazem parte da riqueza artística e histórica de várias das nossas freguesias.

Pórtico da Igreja da Misericórdia, em Aveiro Século XVII

Em 1600, procedeu-se ao arranjo da capela do Beco, em Macinhata do Vouga, e iniciou-se a construção da igreja da Misericórdia, em Aveiro – o templo mais sólido que a cidade possui: obedecendo talvez ao debuxo do italiano Filipe Terzi, o edifício, essencialmente renascentista, marca a transição para o Maneirismo. Deste período é, outrossim, a reforma do claustro do Mosteiro de Jesus, os conventos do Carmo em Aveiro e no Buçaco e o pórtico principal de Sant'lago de Beduído (Estarreja).

Neste momento, não se esquecem as capelas circulares de Nossa Senhora das Neves, em Avelãs de Cima (hoje sacristia de um templo do final do século XVII), de S. Simão, no Bunheiro (1600), de S. Sebastião, em Vagos (1614), e do Espírito Santo ou de Santo António, também em Vagos. Desta centúria ainda provêm as capelas de Nossa Senhora das Lezírias, em São Lourenço do Bairro, e de Nossa Senhora das Neves, em Vila Nova de Mansarros.

Da época barroca é a maior parte das nossas igrejas, edificadas numa altura em que Portugal se enriquecera, mercê do ouro vindo das minas brasileiras. Todavia, são características as capelas poligonais da Madre de Deus (século XVII), dos Santos Mártires (1670), de S. Gonçalinho (1714) e do Senhor das Barrocas (1722) – todas na Cidade de Aveiro – a que se acrescentam a de Nossa Senhora das Areias, em São Jacinto, ainda do século XVII, e a das Almas da Areosa, em Aguada de Cima, já tardia de 1769.

Espécime singular do Rococó é, na Vista Alegre, a formosíssima capela de Nossa Senhora da Penha de França, onde jaz o movimentado e magnífico túmulo do Bispo de Mirando do Douro, D. Manuel de Moura Manuel, obra executada por Cláudio Laprade (final do século XVII). / 33 /

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Portal da Capela do Senhor das Barrocas, em Aveiro – Século XVIII

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Estátua tumular de D. Manuel de Moura Manuel na capela da Vista Alegre, Ílhavo – Final do século XVII

Não são menos notáveis, neste templo, com proporções de igreja, outros mimos artísticos em que o Prelado se esmerou, sem olhar a despesas. O retábulo maior em mármores polícromos e mais dois em madeira dourada exemplificam bem o Barroco pedrino; a Árvore de Jessé e a Assunção da Virgem decoram as abóbadas, respectivamente, do corpo e da capela-mor. Interessa ainda salientar os azulejos figurativos que revestem por inteiro as paredes da nave, onde ressalta a intensidade da pintura azul e o encanto das cenas representadas; atribuem-se a Gabriel del Barco, de naturalidade espanhola mas com residência em Lisboa.

Ao falar de azulejaria, lembram-se os belos conjuntos de algumas igrejas: os do interior da Misericórdia, em Aveiro, os de Esgueira, os de Águeda e alguns de tipo tapete na sé – todos do século XVII e de fabrico lisbonense. Não só. Um acompanhamento azulejar, de fabrico coimbrão e com data de 1737, completa o adorno da igreja das Carmelitas, em Aveiro, onde predomina a talha dourada. A parte inferior das paredes da igreja de Jesus, também nesta Cidade, foi coberta por azulejo, provavelmente de fabrico coimbrão, à volta do ano de 1740. Ainda em Aveiro, a igreja de Santo António ostenta grandes painéis de azulejos de Coimbra, pintados a azul, que provêm dos finais da primeira metade do século XVIII. Da mesma ocasião e do mesmo fabrico são os da igreja de S. Francisco, anexa à anterior. A capela-mor da igreja de Arcos foi embelezada em 1741 e 1747 por quatro painéis parietais, onde se exprimem cenas alusivas ao Sacramento da Eucaristia. Ao concheado rococó obedecem os azulejos da nave da sé de Aveiro, que demonstram pertencer ao ciclo da fabricação coimbrã de Sousa Carvalho, ou seja, da época próxima de 1790.

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A maioria dos nossos templos foi enriquecida com altares, tribunas, retábulos e mesmo apainelamentos de talha de madeira dourada, nas suas diversas e sucessivas manifestações: inicial, esplendorosa e concheada. Em Aveiro são conjuntos únicos no género os das referidas igrejas de Jesus e das Carmelitas; e, se alargarmos a vista, encontraremos jóias artísticas em numerosas igrejas, como nas de Águeda, Albergaria-a-Velha. Arcos, Barrô, Branca, Murtosa, Oiã, Oliveira do Bairro, Sangalhos, São João de Loure, Talhadas e Vera-Cruz.

Túmulo de Santa Joana Princesa, em Aveiro, no Mosteiro de Jesus, actual Museu da cidade – inícios do século XVIII.

É justa uma especial alusão ao túmulo da Princesa Santa Joana, executado em 1698-1709, segundo o projecto de João Antunes, arquitecto da Casa Real. No antigo coro de baixo do Mosteiro de Jesus, ricamente guarnecido de talhas e mármores, está este sepulcro, todo em mármores policromos, embutidos com suma delicadeza e perfeição – exemplar equilibrado, sóbrio e digno do Barroco nacional, que Aveiro se orgulha de possuir. Magistralmente concebido e minuciosamente acabado, o sarcófago representa um tão aturado trabalho de reunião de milhares de minúsculas pedrinhas que, se não fossem as diferenças de colorido, levar-nos-ia à ilusão de se tratar de uma peça única. Consta de uma arca rectangular, assente sobre um bloco de mármore de Carrara, onde se esculpiu uma Fénix, mas parece sustentada por quatro querubins que, de braços erguidos, se vêem nos cantos. Outros anjos ostentam, sobre a arca, o escudo português, encimado pela coroa real, entre volutas. Pode afirmar-se que, no género de embrechado, é um dos mais belos monumentos fúnebres do mundo.

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Um aspecto do Seminário Diocesano de Aveiro (1942)

Não tiveram grande relevo e carácter, entre nós, obras de finalidade religiosa, relativas ao período neoclássico. De 1863 é o pórtico da capela de Nossa Senhora dos Navegantes, no Forte da Barra, que poderá considerar-se um exemplar do Neomanuelino; também os retábulos / 34 / de altar da igreja de Fonte de Angeão, apesar de executados em 1950, obedecem à Neo-renascença e ao Neomanuelino.

Talvez não seja descabida aqui uma nota sobre o santuário de Nossa Senhora do Socorro, em Albergaria-a-Velha, construído em 1856-1857. Não tem qualquer valor arquitectónico; a sua importância advém-Ihe – isso sim – do motivo da sua edificação e do lugar que ocupa na piedade dos católicos da vila e da região. Situado na colina do Bico do Monte, denominada «Pedra de Águia» em 1117, no tempo em que a Rainha D. Teresa concedeu a carta do Couto de Osseloa para se instituir uma albergaria, o modesto e pequeno templo deve a sua construção a um voto feito pelo povo de Albergaria-a-Velha em Outubro de 1855, aquando da terrível epidemia do cólera-morbus. E, desde então, a capela tem sido meta de peregrinações, de concentrações e de preces comunitárias e individuais.

 

Contemporânea da Chamada «Arte Nova» – a que pertencem numerosos pormenores de fachadas, interessantes pinturas em azulejo, belos relevos em pedra, elegantes gradeamentos de varandas em ferro-forjado e graciosos tectos em estuque – é a cúpula que abriga o altar da Eucaristia, na catedral de Aveiro. Executada na última década do século XIX para o camarim do Senhor dos Passos, que se destruiu em 1974 a fim de se proceder à ampliação da igreja, a referida cúpula, em gesso, foi aqui refeita, peça por peça, no ano imediato; além de outros, há nela símbolos da paixão de Cristo.

Entretanto, a Diocese de Aveiro, que havia sido instituída em 1774 e extinta em 1882, fora restaurada em 1938. D. João Evangelista de Lima Vidal, colocado à frente dos seus destinos religiosos – primeiro como Administrador Apostólico e logo depois como Arcebispo-Bispo – pensou imediatamente na edificação de um imóvel para instalar o Seminário Episcopal; o projecto acabou por ser entregue aos arquitectos portuenses Cunha Leão, Morais Soares e Fortunato Cabral (ARS – Arquitectos), que apresentaram o estudo preliminar em 1942.

A ideia que normalmente se tem de um seminário, como de um mosteiro, é a de casa fechada, quase triste habitação de quem nunca teve ou perdeu a alegria de viver, ou para lá foi mandado contra a própria vontade. Em Aveiro, os responsáveis do Seminário procuraram criar um ambiente atractivo, cheio de luz, de carinho e de alegria. Por isso, a capela, o refeitório, os quartos, as salas e outras divisões abrem-se em amplas rosáceas e janelas. Toda a construção, funcional, séria e acolhedora, inspira simplicidade e leveza. Usando os materiais cerâmicos da zona, o Seminário enquadra-se perfeitamente no panorama da região, como produto do nosso trabalho e resultado do nosso esforço; também por tal motivo ele é amado pelos diocesanos de Aveiro.

 

Dado o aumento demográfico das nossas freguesias por um lado, por outro o estado envelhecido ou ruinoso de algumas igrejas, e, ainda por outro, as exigências da renovação litúrgica e pastoral do II Concílio do Vaticano, nasceu por toda a parte um movimento quase generalizado em ordem à ampliação, remodelação e adaptação dos antigos templos, senão mesmo à construção de novos, dotados de espaço mais largo.

Anterior a este período é o início da edificação das igrejas paroquiais de São Bernardo (1956-1966), da PaIhaça (1957-1964), de Bustos (1959-1964) e da Ribeira de Fráguas (1959-1971; (17) todas elas, apanhadas pela renovação conciliar na fase das obras, assinalam a tentativa de adaptação da planta rectangular numa solução que desejou pôr o altar junto da assembleia. Não obstante, a fonte baptismal permaneceu perto da entrada principal e o sacrário ocupou a presidência.

As ideias atrás expostas, em consonância com a presente actualização litúrgica e com a respectiva resposta da parte dos artistas, estiveram subjacentes na elaboração dos projectos das novas igrejas paroquiais de Santo António (1966-1971), Paradela do Vouga (1968-1973), Gafanha do Carmo 1968-1974), Calvão (1969-1974), Ponte de Vagos (1971), Gafanha da Boa-Hora (1971-...) e Santo André (1979-...) (18) O mesmo se tem procurado executar nas remodelações e ampliações de antigos templos, como aconteceu na Gafanha da Nazaré, Vera Cruz, Canelas, Ancas, Beduído, Nariz, Cedrim do Vouga, Couto de Esteves, Vagos, Ílhavo, Silva Escura e Barrô.

Todas estas preocupações pela modernização das casas de oração obedeceram a uma concepção da Igreja, como família de Deus; na ordem plástica, elas são a concretização do próprio Mistério da Igreja. É que o templo destina-se, outrossim, a ser um «sacramento», isto é, um sinal visível de realidades invisíveis, um indicativo da presença de Deus no meio dos homens. Também os arquitectos, falando a linguagem da catequese, / 35 / são responsáveis pela genuinidade da fé daqueles que visitam ou frequentam as obras saídas do seu talento e do seu amor.

ALGUNS EXEMPLOS

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Para não tornar demasiado longo este já longo apanhado – e só por isso – reservamos os últimos períodos apenas a alguns edifícios religiosos, novos ou remodelados, cujas linhas nos parecem coincidentes com as actuais e felizes exigências da Liturgia e da Pastoral e com os anseios da Arte Moderna. Neles, pela linguagem da concepção do espaço e pelo desenho e disposição das diversas peças sagradas, os projectistas têm deixado não apenas a expressão do seu saber, mas ainda o testemunho do seu amor. Além disso, como não há-de sentir-se ditoso o arquitecto da época do cimento armado, ao ser-lhe dada a facilidade técnica de vencer grandes espaços e de construir templos mais ajustados à teologia da Igreja?

Igreja paroquial de Sever do Vouga (remodelação e ampliação em 1966/67).

É de notar que em todas estas obras, dentro das possibilidades, também se vai dando importância aos locais para a catequese das crianças e para a formação dos jovens e dos adultos; assim se responde às recomendações do Papa João Paulo lI, na sua Exortação Apostólica «Catechesi Tradendae», quando fala da prioridade do ensino cristão nos planos pastorais: – «A Igreja é convidada a consagrar à catequese os seus melhores recursos de pessoal e de energias, sem poupar esforços, trabalhos e meios materiais, a fim de a organizar melhor e de formar para a mesma pessoas qualificadas». (19) E, mais adiante, lembra ainda o mesmo Pontífice: – «Todas as paróquias têm o dever de proverem ao que é necessário para uma catequese considerada em todos os seus aspectos, de multiplicarem e adaptarem os locais de catequese, na medida em que isso for possível e útil, e de vigiarem pela qualidade da formação religiosa e pela integração dos diversos grupos no corpo eclesial». (20)

No campo das remodelações com ampliação, pode destacar-se o que se fez na igreja de Santa Maria de Sever do Vouga, em 1966-1967, obedecendo ao estudo feito pelos arquitectos portuenses Abrunhosa de Brito e Manuel Magalhães. O templo era um edifício acanhado e escuro, de três naves separadas por grossas e inestéticas colunas.

Desde logo se resolveu conservar todos os elementos de interesse arqueológico e artístico, poupando-os escrupulosamente e conferindo-lhes um lugar no espaço remodelado; ao mesmo tempo, tornava-se imperioso modificar, mais ou menos profundamente, tudo aquilo que prejudicasse as modernas exigências da acção litúrgica e pastoral.

Dentro destes parâmetros, destruiu-se a estrutura interior das três naves e criou-se uma nova estrutura para uma única tão ampla quanto possível, com boa visibilidade e sem obstáculos à participação; além disso, construiu-se um balcão para aumentar ainda mais a capacidade e deu-se ao presbitério a largueza indispensável sem mobilizar a zona dos fiéis.

O altar foi trazido para a boca da antiga capela-mor, a fim de ser facilitada a celebração face ao povo; no ambão utilizou-se uma boa peça de talha de madeira; a fonte baptismal foi condignamente implantada de modo a ser facilmente lembrada e venerada; o lugar da Reconciliação colocou-se próximo do lugar do Baptismo, porque ambos os sacramentos são sinais de renúncia ao pecado.

Exteriormente, poupou-se a torre sineira e a fachada; esta, porém, encontrando-se em mau estado, depois de apeada, reconstruiu-se fazendo-a rodar sobre a pilastra comum da torre. Com isto, mais se desenvolveu a área interna.

Dentro, realçaram-se as três capelas abobadadas numa das quais se conserva o Santíssimo Sacramento e aproveitou-se o grande púlpito, que é uma das peças tidas em maior consideração. A imagem da Padroeira, junto à porta principal, parece receber maternalmente todos os que vão abrigar-se sob aquele tecto, no meio daquelas paredes em que se mostra a Verdade no betão à vista e no tijolo maciço, para reflectirem na Palavra de Deus e para comungarem a Cristo na totalidade do seu amor. / 36 /

A Igreja de Sever do Vouga é um exemplo de como se pode ajustar o moderno ao antigo.

Em 1967-1968 edificou-se, no concelho de Aveiro, a igreja matriz de Nossa Senhora de Fátima, para servir de centro de culto a uma paróquia eclesiástica, instituída uns anos antes; desenhou o plano o Arq. Luís Cunha, do Porto. A ideia-base que presidiu ao trabalho foi a criação de um local de encontro em todo o sentido do termo: encontro com Deus, evidentemente e em primeiro lugar, mas também encontro entre os homens e as mulheres, neste caso os habitantes de duas povoações equidistantemente próximas.

Na sua composição geral, os volumes, mais ou menos fragmentados mas aglutinados em volta de um núcleo mais alto, não diferem essencialmente de casas que venham a construir-se em redor da igreja; assim, esta não será um corpo estranho ao aglomerado a que certamente dará origem. Construtivamente, o edifício é simples, tendo havido o cuidado de evitar a variedade de materiais; daqui resultaram valores de pureza e de dignidade, que tão importantes são para traduzirem alguns dos aspectos mais característicos da Igreja do nosso tempo.

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Igreja paroquial de Nossa Senhora de Fátima – Aveiro (1967/68)

Quem olha de fora tão singular construção, toda em tijolo maciço à vista e em betão sem revestimento, não vê nela senão uma obra a parecer incompleta, com torres truncadas. Foi exactamente o que se pretendeu; dessa forma, ela causa uma séria interpelação ao viajante da vizinha estrada e dir-lhe-á que a Igreja, presente embora no mundo, jamais aqui alcançará a perfeição. Só na parusia, para lá dos tempos e dos séculos, é que a comunidade dos redimidos completamente se realiza no amor.

Mais ainda: o projectista quis tirar-lhe o aspecto exterior de templo para afirmar que só quem entra e está na Igreja é que conhece algo da sua vida e do seu mistério; há que ultrapassar os umbrais para encontrar o símbolo do Baptismo, a mesa da Eucaristia, o sacrário da Reserva e a imagem do Crucificado. A própria verdade do tijolo e a fortaleza do cimento são outros sinais da Verdade e da Fortaleza de Deus. No interior, houve uma geral preocupação de organizar os espaços de modo a permitir uma acção litúrgica correcta: unidade da assembleia, disposição desta em relação ao santuário, colocação deste em franca comunicação com aquela, apesar de definido por nível desigual do pavimento, luz intensificada e movimento ascensional do tecto. Previu-se ainda a articulação de outros elementos menos ligados a uma acção litúrgica comunitária, mas muito importantes na vida da Igreja, como a capela do Sacramento e o baptistério.

Se isto não bastasse, o próprio crucifixo, idealizado e construído por Luís Cunha, foi feito de pequenas placas de espelho, onde o visitante ou o cristão se podem ver reflectidos. A mensagem mostra-se evidente: o homem só é grande, num prisma de fé, quando se projecta em Cristo e procura que a sua vida se adapte e se confunda com a d'Ele.

Em Soza, entre os anos de 1971 e de 1973, efectuaram-se profundas obras na igreja paroquial, segundo o projecto e a orientação da arquitecta aveirense D. Maria Adozinda Gamelas de Albuquerque.

O edifício, dos finais do século XVII, encontrava-se em mau estado e era incómodo e pequeno para a freguesia. Desde logo, portanto, mereceu uma dupla atenção: o restauro e a remodelação interior e exterior, e o aumento da área, lançando-se-lhe um transepto mas respeitando-se-Ihe a estética. Com a execução de tal plano, conseguiu dar-se-lhe uma maior capacidade, necessária para as habituais celebrações comunitárias da Liturgia.

Simultaneamente, colocou-se para cá do arco-cruzeiro o altar da Eucaristia, o qual foi assente sobre uma bela e artística pedra que era o suporte do púlpito. À frente dos fiéis ficou também a pia baptismal; as paredes forraram-se a azulejo; as peças de interesse foram valorizadas; e voltou ao culto a imagem gótica quatrocentista de Santa Maria de Rocamador.

Numa paróquia dos subúrbios de Aveiro, de criação recente, foi dedicada ao serviço religioso, em 1976, a nova igreja de Santa Joana, cuja construção, delineada pelo já mencionado Arq. Luís Cunha, teve início em 1972. Ela constitui como que o monumento comemorativo do quinto centenário da chegada da Santa Princesa à então Vila de Aveiro.

Ao traçar o projecto, o seu responsável atendeu sobretudo a dois princípios bem actuais: – a) o relevo dado à celebração da Eucaristia, que o levou a realçar o altar e outros elementos com ele directamente relacionados, sem colunas que afectassem a visibilidade e sem elementos decorativos que diminuíssem a importância / 37 / dos ritos litúrgicos; b) a ênfase posta no sentido comunitário desses mesmos actos, que fez com que criasse condições de igualdade para os fiéis, dotando a nave de uma forma não muito distanciada da que espontaneamente toma uma multidão, quando é fortemente solicitada por um interesse que atinge por igual todos os seus membros.

Todavia, a conveniência das comunidades cristãs não se pode circunscrever à exclusiva participação na Liturgia; muitas outras actividades, tais como conferências, cursos, espectáculos ou simples convívios em tempo de lazer... contribuem para que os laços de amizade se reforcem e consolidem. Para isso. também aqui se previram lugares apropriados.

Mais coisas se poderiam enumerar, como a nudez ornamental que se identifica com o sentido de pobreza, ou a escassez de imagens que estimula a uma devoção esclarecida; mas seria impertinência entrar em minúcias de pormenor.

Em concreto, surgiu um complexo com: – um sector estritamente reservado à acção litúrgica, onde está o altar, o sacrário, a pia baptismal, a pintura da Padroeira e a imagem da Virgem Maria; um sector polivalente, também destinado a sessões de cultura, de formação e de recreio; um sector de salas para catequese, biblioteca, etc.; e um sector de convívio, com bar e sala de estar. Todos estes espaços estão directa ou indirectamente em conexão com o espaço central e podem ser isolados, por meio de divisórias de correr.

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Igreja paroquial de Santa Joana – Aveiro (1972/76)

A igreja de Santa Joana é, de facto, uma construção pouco vulgar, onde os volumes se desenvolvem predominantemente na horizontal, harmonizando-se com a vastidão da planície aveirense; apenas a verticalidade da torre denuncia a sua presença. Talvez lembre as antigas basílicas bizantinas, tanto pela grandeza interior como pela configuração externa e ainda pelo movimento dos telhados que se entrelaçam e combinam uns com os outros.

No tímpano central da frontaria, figurou-se Cristo em majestade, como Senhor do Universo; separados, outros dois símbolos foram desenhados no cimento: a Mão do Pai e a Pomba do Espírito Santo. Noutros tímpanos da mesma fachada, o arquitecto modelou algumas alusões a Santa Joana.

No santuário, Luís Cunha tornou-se também pintor e... pintou o políptico da Padroeira, comentando a sua vida em linguagem surrealista; será uma expressão artística que pretende dizer mais do que aquilo que os olhos vêem. Aí se descobre, à volta da figura central, a tomada de hábito e o corte dos cabelos, o diálogo com D. João II e o sonho da morte de Ricardo III, o martírio das pestes e a saída de Aveiro, o funeral e a devoção à paixão de Cristo, simbolizada na coroa de espinhos. Por cima, numa saliência triangular, representa-se o Mistério da Trindade: a Mão, a Pomba e a Cruz... uma cruz cujo braço esquerdo se alonga no espaço e no tempo, como que a abarcar toda a história humana.

Por trás do sacrário, na parede, desenvolve-se um grande vitral, em forma de rosácea, de vidros policromados, semelhando um potente foco de luz irradiante. Do outro lado, mais cinco pequenas rosáceas, dispostas em forma de cruz grega, dizem-nos que o Espírito de Deus paira sobre as ondas do mar e da vida e enche a terra inteira.

 

Em Pessegueiro do Vouga desde há muito que se tornava imperiosa a ampliação da igreja local; foi o que se fez em 1972-1978. Porém, aproveitou-se a oportunidade para dar ao espaço mais funcionalidade, em consonância com as modernas regras litúrgicas.

No desenvolvimento do programa, demoliu-se uma das paredes laterais e acrescentou-se, por aí, a nave; junto à outra parede, que para isso foi adaptada, colocou-se o altar da Eucaristia. Houve assim uma rotação de noventa graus.

Interiormente, todas as superfícies verticais foram azulejadas; a luz começou a cair mais intensamente sobre o presbitério; o ambão, a pia baptismal e a presidência distribuíram-se por lugares próprios e visíveis. Não se menosprezaram os elementos antigos de interesse, como o retábulo principal – agora à nossa esquerda – onde ficou a Sagrada Reserva; o «Apostolado», em tela, que não se apresentava com destaque, ocupa actualmente um lugar de maior proeminência do que seria de desejar.

No sítio da capela-mor, formaram-se a sacristia e umas salas; e, junto à entrada habitual, estendeu-se uma alpendrada. O templo, dos finais do século XVIII, viu-se também remoçado com as obras de beneficiação que / 38 / foram realizadas com critério e cuidado, conforme o plano da mencionada arquitecta aveirense D. Maria Adozinda Gamelas de Albuquerque.

 

Foi o Arq. Pedro Corujo Bernardes, de Ílhavo, quem se encarregou de projectar a nova capela de Vale de Ílhavo, construída em 1973-1976.

No seu exterior, o edifício não pretende distinguir-se demasiadamente da zona residencial envolvente, senão apenas no tamanho; mas tal diferenciação é discreta. Houve, pois, a preocupação de coordenar o seu carácter com as moradias circunvizinhas, não lhe dando nem riqueza nem monumentalidade.

À entrada, um átrio aberto destina-se a uma zona de recepção e de convívio, e serve de ponto de partida para a assembleia. No interior, não há expressões que, de algum modo, possam significar individualismo, mas sim um espaço que ajuda a criar comunidade e a fomentar um ambiente de família. As condições de luz apropriada, de boa acústica, de simplicidade pobre, sem isso significar miséria – tudo são pormenores fundamentais que contribuem para o bem-estar de uma participação litúrgica, fraterna e alegre, à volta de Jesus Cristo Ressuscitado.

 

A igreja de Águeda apresentava-se carecida de benfeitorias, dado o seu envelhecimento. Porém, fazer obras nesta altura pós-conciliar subentendia necessariamente uma profunda remodelação em ordem a torná-la mais funcional.

O templo oferecia, contudo, além de peças mais ou menos isoladas mas de grande interesse histórico-artístico, um conjunto de soluções introduzidas ao longo dos séculos, como o valioso retábulo renascentista em pedra, os retábulos em talha de madeira dourada e a pia baptismal gótica, colocada em lugar inadequado. De todo o volume interno, destacava-se a nave lateral da esquerda, única, pois no lado oposto somente existia uma sucessão de capelas; aquela tinha interesse, não obstante o primarismo das ogivas, de feição popular, e nestas haveria de se ter cuidado em salvaguardar os arcos de entrada. Outro elemento de valor a poupar seria o tecto em caixotões, que constituía a cobertura da nave central.

Exteriormente, a única fachada com trabalho em granito e coerência de desenho era a frontaria com sua torre.

Ao mesmo tempo, desejava-se dotar a comunidade católica de Águeda de um programa consentâneo com as exigências litúrgicas e pastorais do momento presente, respeitando os valores da história e da arte, mas dotando o complexo religioso de um mais amplo lugar de culto, de um lugar para as celebrações baptismais, de várias salas, de um museu e de uma capela mortuária. Fora, integrado na construção antiga, delineava-se um átrio de entrada, para abrigo da chuva e do calor, para diálogo amigo entre as pessoas e, sobretudo, para acolhimento e princípio de interiorização – atitude indispensável ao entrar no santuário.

Elaborado todo o plano pelos Arq. Abrunhoza de Brito e Manuel Magalhães, já citados, as obras decorreram desde 1974 até 1977; foi responsável último pela execução dos trabalhos o Eng. Neftali Sucena, de Águeda. Houve carinho pelo passado, na secular igreja de Santa Eulália, mas olhou-se decidida e corajosamente para o presente, porque os edifícios são para servir as comunidades, e não vice-versa.

 

Dada a impossibilidade de recuperação da igreja de Ouca, pelo estado precário e ruinoso em que se encontrava, a paróquia encarou definitivamente a sua demolição e decidiu-se a levantar um novo templo; foi o que concretizou nos anos de 1975-1977.

O aludido Arq. Pedro Corujo Bernardes idealizou um plano trapezoidal, tendo como chamada um alpendre coberto a enquadrar uma torre sineira e a servir de resguardo à entrada.

O arranjo do espaço interior foi concebido de maneira a criar-se uma assembleia tanto quanto possível em volta do altar. Este, o sacrário e a pia baptismal constituem um conjunto simples e integrado junto à parede do fundo, onde não falta a decoração feita com peças de talha setecentista da velha igreja.

A iluminação, suficientemente reduzida, incide sobretudo no altar. Todos os acabamentos são caracterizados pela singeleza, quer nas brancas paredes a crespo, quer no acentuado da estrutura em betão aparente. Se alguma coisa se destaca arquitectonicamente neste templo, integrado na ambiência local, é apenas a torre sineira com seu carrilhão, que anuncia festivamente as horas do dia e convida os crentes à oração.

 

Desmembrada do Bunheiro, a paróquia da Torreira foi instituída em 1928; aos poucos, conforme se conseguiam fundos monetários, ergueu a sua igreja matriz entre 1934 e 1955. Devido à demora da construção e à pobreza dos materiais empregados, o edifício cedo começou a apresentar indícios de envelhecimento precoce, senão mesmo de ruína.

Contudo, para além deste motivo ponderoso, outros se impuseram para que fosse estudado o problema da consolidação, remodelação e ampliação: – a necessidade de um espaço onde as celebrações comunitárias da Liturgia pudessem ser valorizadas, a dignificação de uma casa que não desmerecesse das outras que a cercam, e a urgência de um salão para apoio de certos trabalhos pastorais, indispensáveis à promoção humana, social e religiosa do povo. / 39 /

Com tais propósitos, a Arquitecta Maria Adozinda Gamelas de Albuquerque projectou um plano que, aceite pelos responsáveis, foi concretizado em 1977-1979.

A igreja da Torreira, agora inteiramente azulejada e libertada das colunas que estorvavam a visibilidade, tomou novo aspecto, sóbrio, simples e belo, criando e oferecendo um ambiente de recolhimento. Local de comunhão com Deus e de uns com os outros, é o resultado de uma solução arquitectural de feição moderna. Todas as confluências de luz, de orientação, de realce, de motivos... se fixam na zona da presidência, francamente desafogada e contendo os elementos fundamentais: altar, ambão, fonte baptismal e sacrário. Uma imagem de Cristo Ressuscitado e glorioso, se representa directamente a realidade do Morto-Vivo, é outrossim o símbolo de uma religião que liberta.

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Vai já extensa esta série de notas; não obstante, ousamos ainda deixar um ligeiro apontamento sobre as obras realizadas na catedral de Aveiro – a velha igreja de S. Domingos – nos anos de 1974-1976.

Encontrando-se a capela-mor em estado ruinoso e todo o corpo precisado de restauro, aproveitou-se então a oportunidade para se efectuarem trabalhos de maior amplidão, no sentido de se alargar o espaço interno; a igreja poderia, assim, servir convenientemente a comunidade católica de Nossa Senhora da Glória e ser lugar apropriado para as grandes celebrações diocesanas.

Catedral de Aveiro (Remodelação e ampliação em 1974/76)

Feito pormenorizadamente o estudo prévio pelos Arq. Abrunhoza de Brito e Manuel Magalhães, acabou por se demolir toda a capela-mor, salvaguardando-se o que possuía de valor artístico, para depois se reconstruir: as primitivas paredes góticas, o túmulo renascentista, os cadeirais dos fins do século XVII, o órgão e o retábulo da centúria seguinte. Aí, para um lado e para o outro, abriu-se um espaçoso transepto – o que fez duplicar a capacidade da zona destinada à assembleia numa igreja rejuvenescida, arejada e adaptada à nova pastoral litúrgica. É certo que o templo não obedece a um único estilo; é antes um espaço onde os séculos deixaram a sua diversificada marca artística e escultórica, desde 1423 a 1976. Mais uma vez, também agora se optou por uma solução actual, em detrimento de uma imitação, não só despropositada como talvez mais dispendiosa. Respeitou-se da anterior igreja tudo o que merecia ser conservado, mas a nova construção desligou-se dela estilisticamente. Foi um critério válido e honesto.

É claro que semelhante posição requereu sensibilidade na forma de fazer; um partido de grande simplicidade de linhas foi o caminho mais seguro de uma integração sempre difícil. Todavia, uns pedaços góticos de parede, no interior, servem de traço de separação-união.

 

No termo desta reflexão sobre a Arte nas Igrejas – de Roma, pela Europa, até Aveiro – não me referi a tantos documentos da Arte, que mereciam uma alusão; seria enfadonho nestas despretensiosas colunas. Nem sequer tive a veleidade de inventariar todos os edifícios religiosos que, nas terras de Aveiro, testemunham, a seu modo, as novas formas do estilo. Estes, porém, se desejam evitar anacronismos e reflectir o nosso tempo, hão-de exprimir a Verdade de Deus na nudez dos materiais e manifestar a Simplicidade do Evangelho na singeleza das linhas; na funcionalidade que facilita a participação da assembleia, eles constituem certamente um válido instrumento da Igreja-Comunidade.

Estando ao serviço do culto, os nossos templos – igrejas e capelas – não podem ser apenas peças inanimadas de um passado mais ou menos longínquo; sem desprimor pelo que tem interesse histórico ou artístico, eles serão objecto de abertura às hodiernas necessidades litúrgicas e pastorais, sofrendo as adaptações úteis e indispensáveis. A vida não se compadece com pesos mortos; estes, ou ressuscitam, ou perdem-se na memória dos homens. O seu lugar é nos museus, como objecto de simples estudo ou de mera curiosidade.

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NOTAS:

(1) – Sacrasanctum Concillum, n.º 112.

(2) – Id., n.º 117.

(3) – Destruído por um incêndio em 1823, foi logo reconstruído.

(4) – Depois da tomada de Bizâncio, os Turcos transformaram-na em mesquita e acrescentaram-lhe quatro minaretes.

(5) – Entretanto, Roma, sob a égide do Papado, prosseguiu numa certa continuidade artística; é desta altura, por exemplo, a reedificação da igreja de Santa Maria in Cosmedin (finais do século VIII).

(6) – Ano de 950 da Era de César, então em vigor.

(7) –Entre as Igrejas e catedrais europeias, de estilo românico, enumeram-se: a) na França – Saint-Sernin de Toulouse, Saint Nectaire, Notre-Dame-Ia-Grande de Poitiers; b) na Itália – Catedral de Parma, Catedral de Pisa, Santo Ambrósio de Milão; c) na Espanha – Sant'lago de Compostela, Catedral de Zamara, S. Vicente de Ávila, Santo Isidoro de León.

(8) – Pertencem ao estilo gótico: a) na França – S. Dinis de Paris, Catedral de Reims, Catedral de Chartres, Catedral de Amiens, Catedral de Laon, Catedral de Notre-Dame de Paris; b) na Itália – Catedral de Milão, Catedral de Florença; c) na Espanha – Catedral de León, Catedral de Burgos.

(9) – Cit. por Flórida de Vasconcelos em A ARTE EM PORTUGAL – I (Verbo Juvenil), 2.ª edição, pg. 75.

(10) – Fora autorizada pelo Papa Alexandre VI em 1496, logo após a subida do Venturoso ao trono e ainda antes da viagem marítima para a Índia e da descoberta do Brasil.

(11) – Já no século XVII, o mais notável escultor português é Manuel Pereira, artista atraído pela Espanha; a sua obra-prima é a estátua de S. Bruno, patente na Cartuxa de Miraflores (Burgos).

(12) – Cit. por Miguel de Oliveira em HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE PORTUGAL, 4.ª edição, 1968, pg. 331.

(13) – Numa criação artística há três coisas a considerar: – o sujeito ou tema, que existe fora do artista e lhe é independente; o conteúdo, que é a maneira como o artista apanhou e sentiu o tema; e a forma, que é a sua revelação externa e sensível. Por isso, o mesmo tema ocasiona reacções diversas, porque o conteúdo depende da personalidade do artista; assim, a expressão plástica tem mesmo de resultar diversa.

(14)Gaudium et Spes, sobre a Igreja no Mundo Actual, n.º 62.

(15) – Aquela imagem românica, que se descobriu numa das paredes do templo aquando das últimas obras de restauro e ampliação em 1971-1973, encontra-se hoje convenientemente guardada numa das salas da referida Igreja paroquial de Soza.

(16) – Estas datas são do calendárlo da Era Cristã; nas lápides encontra-se Indicada a Era de César, avançada 38 anos sobre aquela. Foi el-Rei D. João I que, em 1422, decretou a adopção da Era de Cristo em Portugal.

(17) – Os autores dos projectos são respectivamente: – São Bernardo e Palhaça – ARS – Arquitectos, do Porto; Bustos – Arq. Rocha Carneiro, de Águeda; Ribeira de Fráguas – Arq. Mário Bonito, do Porto.

Entretanto, os Padres Salesianos também construíram a sua Igreja, anexa ao Instituto ou Seminário, em Mogofores (1958-1963); é um edifício de tipo tradicional, na linha dos anteriores templos salesianos em Itália.

(18) – Respectivos arquitectos: – D. Maria Adozinda Gamelas de Albuquerque, de Aveiro; Fernando Seara, do Porto; Fernando Abrunhoza de Brito e Manuel Magalhães, do Porto (Gafanha do Carmo, Calvão); Diogo Lino Pimentel, de Lisboa; Santos Malta, do Porto; e José Pires Roque, de Águeda.

Algumas povoações têm igualmente construído novas capelas, por vezes espaçosas, para a celebração do culto, que obviamente, obedecem aos mesmos princípios.

(19) – Doc. cit., de 16-10-1979, n.º 15.

(20) – Id., n.º 67.

 

BIBLIOGRAFIA

MANUEL CARDOSO MENDES ATANASIO, Arte Moderna e Arte da Igreja, Coimbra, 1959.

WLADIMIR SAS-ZALOZIECKY, Arte Paleocristã, ed port. da Verbo, Lisboa, 1970.

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páginas 13 a 40

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