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N.º 19

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1975 

Comemorações aveirenses do III centenário do nascimento de Camões (1880)

Por Eduardo Cerqueira

Jornalista e publicista

Com maior ou menor realce, sempre Aveiro se tem associado às comemorações nacionais de grandes figuras e acontecimentos.

Na modéstia dos seus recursos e no seu restrito âmbito, pode não atingir brilhantismo que consinta cotejo com outras localidades da sua igualha em algumas dessas celebrações, mas não se esquece, nem abstém desse dever cívico.

Para cada caso conta sempre, se não com a generalizada memória desperta, com alguém que esteja atento, e tome sobre si a tarefa de assinalação das grandes datas da história local ou da nacional, e dos vultos que particularmente a honraram ou ao País, ou promova os actos rememorativos, e para eles crie o ambiente colectivo e os estímulos necessários.

Terão tomado, maior tomo e projecção, na generalidade, as realizações consagradas às efemérides de mais alto significado local, como: os primeiros centenários do nascimento (1809) e da morte (1862) de José Estêvão; o quinto centenário do nascimento da Santa Joana Princesa (1452), na sequência de amiudadas demonstrações de culto, desde há séculos; o centenário da Revolução liberal de 16 de Maio de 1828; e, coincidentes, no mesmo ano de 1959, as prolongadas festas do Milenário da existência documentalmente comprovada de Aveiro e do segundo centenário da sua elevação a cidade.

Mais discretas, poderiam apontar-se as evocações centenárias dos nascimentos: do panfletário famoso e grande paladino do progresso da sua terra que foi Homem Cristo – a que a conjuntura política fez desluzir o programa –; do pensador e escritor, ocasionalmente envolvido na vida pública, Jaime de Magalhães Lima; do jurisconsulto José Maria Barbosa de Magalhães; e, mais recentemente, o do prelado insigne, obreiro principal da Diocese aveirense, D. João Evangelista de Lima Vidal.

Encontram-se, todavia, por jornais e outras publicações, testemunhos de diverso tomo e mérito, dos empreendimentos memorativos de Aveiro ou de aveirenses ou das datas de maior expressão nacional.

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1.ª página do jornal "Campeão das Províncias" dedicado a Camões.

Na circunstância que determina estas linhas, um rol exaustivo dessas demonstrações de civismo – para as quais não tentamos sequer uma prospecção para além do que temos mais presente ou ao fácil alcance – afigura-se-nos desnecessário. Cingir-nos-emos, assim, antes de traçar um bosquejo da que nos propomos lembrar, pois o IV Centenário da Publicação dos Lusíadas a torna azada, a mencionar algumas delas.

Citaremos, assim, em primeiro lugar, celebrado em 1882, o Centenário do Marquês de Pombal, que inclui a, ainda recordada com apreço e encómio, exposição retrospectiva de arte decorativa. Organizou-a o Grémio Moderno por inspiração e sob a orientação competente e diligente acção do erudito e operoso aveirógrafo Marques Gomes, patrocinador constante da valorização e divulgação do património artístico e histórico da sua terra natal.

Nesse ensejo se publicou um número único de um jornal exclusivamente consagrado à memória de Pombal, a quem Aveiro devia, entre outros benefícios, os foros de cidade e a criação do seu bispado. Inseria colaboração das mais eminentes figuras aveirenses da época, desde Homem Cristo (que na data precisa da comemoração e da saída da publicação – 8 de Maio – perfazia 22 anos e era o mais novo dos colaboradores) até ao General Joaquim da Costa Cascais, poeta e dramaturgo, de Francisco Regala, Almeida Vilhena, Joaquim de Melo Freitas, Jaime de Magalhães Lima, Joaquim Simões Franco, Marques Gomes, Manuel de Melo e seu irmão Joaquim da Silva Melo Guimarães, a Agostinho Melício, Alexandre da Conceição, Carlos Faria (depois Barão de Cadoro), Agostinho Pinheiro e outros mais.

Também «O Povo de Aveiro», recém-fundado, dedica integralmente um dos seus números à efeméride, / 52 / com a mesma data. Como habitualmente, Homem Cristo, fundador e principal animador do famoso semanário – que quase redigiria mais tarde da primeira à última linha – não subscreve nenhum dos artigos insertos. A sua qualidade de militar inibia-o de figurar abertamente num jornal de declarada feição republicana. Mas assinavam artigos individualidades como Teófilo Braga, Anselmo Xavier e Alexandre da Conceição, como Carlos Faria e Egberto de Mesquita (redactores efectivos do novel periódico e ainda Teixeira Bastos, A. Ponce Leão Barbosa, G. Benevides, F. R. Francisco Regala, apenas apondo as iniciais para não se comprometer, demasiadamente ?), Tavares de Castro, Bessa de Carvalho e outros de menor notoriedade.

Ainda no mesmo dia (deliberadamente escolhido para simultaneamente «render um preito de homenagem simpatia e gratidão a dois nomes /.../, ambos gloriosos e dignos da consagração popular e da apoteose nacional», como escrevia o «Povo de Aveiro») (1) foi solenemente lançada a primeira pedra para a estátua de José Estêvão.

O IV Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo para a índia deu motivo, pelo menos, a um excelente número do «Campeão das Províncias», organizado e quase Inteiramente preenchido – com prosa do próprio punho ou transcrições de trechos menos acessíveis – pelo mesmo benemérito exumador do passado aveirense, o fecundo Marques Gomes, patrocinador constante e incansável obreiro da memoração e realçamento dos valores patrimoniais artísticos e históricos da sua terra.

Nesse número especial, com muitas prestimosas compilações, sobre alguns aveirenses notáveis – D. Frei Duarte Nunes, D. Frei Miguel Rangel ou João Afonso / 53 / e, por exemplo, a menção dos pilotos de Aveiro, conhecidos no século XV, documenta alguns aspectos do papel que a sua terra, através de algum filhos de maior evidência, houve, antes ou pouco depois, de relação com o facto comemorado.

Mas, para além da evidenciação dessas efemérides, correm impressas – já mais ou menos raras e pouca divulgadas nas rememorações – livros e artigos de aveirenses, redigidos a propósito do centenário da Guerra Peninsular.

Pertence mesmo ao General Costa Cascais (aveirense nado e de afecto fidelíssimo à sua terra, que nem mesmo com um afastamento de um período que se alongou por mais de meio século declinaria nas demonstrações ininterruptas) a memoração da Batalha do Buçaco, em que a estrela napoleónica deu os primeiros indícios de vir a apagar-se.

Não passaram sem evocação as datas em que se cumpriram as centúrias de anos sobre os nascimentos de Alexandre Herculano ou de Eça de Queirós – este, aliás, estreitamente ligado a Aveiro pela ascendência paterna, e, como ele próprio se declarou, «filho de Aveiro, educado na Costa Nova, quase peixe da ria».

*

*   *

No mesmo caso, como se impunha, estiveram as celebrações camonianas: – já no ano transacto, celebrando o IV Centenário da Publicação de «Os Lusíadas»; já em 1880, evocando e glorificando a figura do Épico, quando se perfaziam quatro séculos sobre a sua morte.

Sobre estas nas deteremos. Volvido quase uma centena de anos, estão os factos esquecidos. E, conquanto não atingissem proporções de excepção, será talvez oportuno relembrá-los. Se não como paradigma, que os meios de que hoje dispomos, facilitam e, porventura, impõem, em circunstâncias similares, mais ambiciosas organizações, pelo menos darão a prova de que as elites aveirenses oitocentistas – aliás, talvez como em tempo nenhum da história de Aveiro, ricas de valores – sabiam cumprir, melhor que as de hoje, essas obrigações cívicas.

Para além da posição marcada pela Imprensa local a que mais adiante faremos a alusão devida, a comemoração centenária teve dois actos principais, enquadrados em galas exteriores que, embora sucintamente também, mencionaremos.

Não encontramos, nos relatos do tempo, ecos evidentes da agitação de ideias que se verificou especialmente em Lisboa e teria uma tão influente projecção no incremento da partida republicana. Em Aveiro, não se pressente a infiltração da nova parcialidade, aliás

ainda sem qualquer vislumbre de organização aglutinadora, que só viria a verificar-se, tempos depois, por iniciativa de Homem Cristo, a quem se ficaram devendo os princípios da constituição do partido.

As cerimónias puderam decorrer, assim, sem qualquer sintoma de propaganda adversa aos poderes constituídos, gizadas ou orientadas pelas entidades Oficiais, sem intromissões que as perturbassem.

Andariam já os estudantes do liceu, esses porventura com mais sangue na guelra, mas sem notória quebra de irreverência ou propósito discrepante, a gizar o seu programa, em acordo com o reitor quando à Câmara foi sugerido o dia 10 de Junho como a oportunidade mais apropriada à inauguração de um edifício escolar que a municipalidade mandara construir na Vera-Cruz.

A ideia partiu de Francisco Vitorino Barbosa de Magalhães, aveirense que especialmente se tornou conhecido pela actividade jornalística. Com efeito, deu assídua colaboração ao «Campeão das Províncias», (onde, ainda aluno do liceu, nascido em 1846, ao dobrar para o decénio de sessenta, se estreou, e de que viria a ser redactor efectivo) e a outros periódicos locais como o «Distrito de Aveiro», o «Parlamento» e «Beira Mar», e ao semanário viseense «O Viriato», onde fez inserir, além do mais, dois romances, em folhetins: – «A Rosa do Adro» e «Mistérios do Coração» hoje caídos em espesso esquecimento, mas que parece terem despertado e comovido as sensibilidades românticas dos leitores ou leitoras do periódico.

Funcionário da Fazenda por profissão, desempenhou largo tempo, com infatigável solicitude, funções de correspondente de diversos diários, como o «Jornal de Notícias», a «Actividade», o «Diário Popular» e o «Correio da Tarde». Farejador dos acontecimentos, pressuroso em transmiti-los ainda palpitantes, a desabrolhar aos primeiros raios da aurora, minucioso no seu relato, e assim ganhando jus a que, entre faceta e familiarmente lhe chamassem o «Francisquinho das Notícias», este aveirense estimável, como todos aqueles que se situaram já na penumbra do segundo plano, ficou mais pelo apelido, que José Maria Barbosa de Magalhães e, depois, com maior evidência ainda, o filho e homónimo deste, altamente ilustrariam, do que pelos seus méritos e acção próprios.

E, entretanto, a par da produção literária, de efémeros ecos, caduca cama as notícias que se apressurava a difundir, frescas como as colhera, reuniu no «Campeão» um «Cancioneiro Popular», que, porventura, valeria uma exumação total ou parcial, e dava sugestões, por vezes adoptadas e úteis.

Assim, sucedeu, que se aproximavam as comemorações do centenária camoniano, e nada se prenunciava que ficasse a assinalar materialmente, como um / 54 / acontecimento concreto e perduradouro, a quota parte de Aveiro nessas demonstrações de exaltação patriótica.

Em 16 de Abril, desse ano de 1880, Francisco de Magalhães, com ou sem prévio contado oral, dirigiu-se ao presidente e vereadores: «Constando /.../ que está próxima a conclusão da casa da escola que essa ilustre e zelosa corporação mandou edificar no largo da Vera-Cruz, e tendo lugar no dia 10 de Junho próximo futuro a solene comemoração do tricentenário do nosso primeiro épico – Luís de Camões – a maior das nossas glórias pátrias – que por toda a parte se preparam para festejar, entende o signatário que é essa a melhor data em que deve ser inaugurada solenemente a nova escola».

 

E, como o tempo já não sobejava, completava a sugestão, que a municipalidade acolheu com simpatia e pronta anuência, para, no caso de esta se verificar, não se protelarem os convites aos possíveis intervenientes na sessão inaugural. Era conveniente dar-lhes tempo bastante, «aos cavalheiros que quisessem abrilhantar (as cerimónias) com discursos, poesias ou recitações, tão patriótica festa da civilização», para se prepararem».

A Câmara tinha então a exercer a presidência o vice-presidente, José Antunes de Azevedo, comerciante, estabelecido na Praça do Comércio. Antes chamava-se a Praça do Pão, mas, porque contígua aos Arcos (e já essa circunstância a distinguia) e a de maior movimento para o negócio, designavam-na como se fosse singular, singelamente despida de qualquer aposto toponímico identificador, e, pois, por «A Praça», tout court.

Homem prático, não subestimando o valor das letras nem de outra qualquer forma de cultura, antes o prezando no sentido de o fruir não só se ilustrando, mas conduzindo os filhos – um dos quais um aveirense de evidência, o Dr. António Emílio de Almeida Azevedo – promoveu, sem pressas, mas sem perdas de tempo, à proporção das disponibilidades dos sempre ratinhados cofres municipais, mas com dignidade, as diligências preliminares para a concretização da aprovada proposta.

E, após os contactos directos, o assentar em troca de impressões orais, primeiro nas linhas mestras e, depois, nos pormenores do programa, para só então, pôr «o preto no branco».

Em 29 de Maio, oficiava ao Comissário de Estudos do Distrito de Aveiro, o Dr. João de Moura Coutinho de Almeida de Eça, que era também reitor do liceu. Oficialmente lhe participava que a municipalidade, desejando «associar-se ao pensamento geral e aos outros municípios do país» resolvera escolher o dia 10 de Junho «para a inauguração da nova casa da escola da freguesia da Vera-Cruz, convidando para esse acto as autoridades da cidade e concelho, e principalmente o pessoal docente do liceu e todos os professores primários desta circunscrição».

Solicitava-lhe o parecer e conselho sobre os pormenores da projectada comemoração camoniana certo que «com a maior boa vontade se dignaria coadjuvá-lo neste empenho, como é próprio do seu patriotismo e amor das boas-letras», e para que os festejos da iniciativa camarária em tudo se harmonizassem com a celebração promovida pelo liceu.

Solicitava-lhe ainda que se encarregasse do discurso da inauguração ou indicasse o professor ou professores a quem fosse confiada essa missão.

A 4 de Junho, foram expedidos os convites às autoridades e, em 7, estabeleceu-se definitivamente o programa. Foi redigido, textualmente, nos seguintes termos:

Art. 1.º – No dia 10 do corrente mês terá lugar a fim de celebrar a comemoração do tricentenário de Luís de Camões, a inauguração da escola para os dois sexos, que esta Câmara mandou construir no Largo da Vera-Cruz, para os alunos desta freguesia.

Art. 2.º – Pelas 9 horas da manhã do mesmo dia, uma banda marcial percorrerá as ruas da cidade, indo em seguida colocar-se no dito largo da Vera-Cruz, em frente do edifício da Escola.

Art. 3.º – Para a inauguração serão convidados, além do Ex.mo Governador Civil do Distrito, e demais autoridades do Concelho, o pessoal docente do Liceu e Seminário, a imprensa, os professores da instrução primária, de ambos os sexos, deste Concelho, e mais pessoas distintas da cidade, que é da praxe e costume convidar para tais actos.

Art. 4.º – Às 11 horas da manhã sairá do edifício dos Paços do Concelho a Câmara Municipal, acompanhada de todas as autoridades, professores e demais convidados, que, para esse fim, ali estiveram reunidos, dirigindo-se à dita casa da escola, pelas ruas da Costeira, dos Mercadores, travessa da mesma rua, rua de José Estêvão, da Vera-Cruz, e largo do mesmo nome, entrando pela porta principal da escola, cuja chave será previamente entregue ao Ex.mo Comissário dos estudos, pelo Presidente da Câmara, para a cerimónia de abertura da mesma escola, à qual fará guarda de honra o destacamento estacionado nesta cidade. As autoridades e convidados, que não se reunirem nos Paços do Concelho, entrarão no edifício da escola pela porta do lado esquerdo.

Art. 5.º – Na sala da dita escola tomarão lugar: no topo, e tomando a presidência, o Ex.mo  / 55 / Comissário dos estudos, rodeado pelo corpo docente do Liceu e Seminário, tendo à sua direita o Ex.mo Governador Civil, e seu Secretário Geral, e a Câmara Municipal, e, à sua esquerda, todas as mais autoridades da cidade. O estandarte Municipal será colocado à direita da mesa da presidência. Em seguida à Câmara Municipal, e fazendo parede, pelo lado direito da sala, estarão as professoras de instrução primária do Concelho e, em frente, do lado esquerdo, os professores do Concelho. Os convidados tomarão lugar em frente da presidência. Haverá duas mesas para os conferentes que quiserem discursar sobre o objecto do dia e acto, depois de obterem, previamente, da presidência, a palavra.

Art. 6.º – O Ex.mo Comissário dos estudos, presidente da assembleia, fará o discurso da inauguração. Logo que ele, no fim dos discursos dos conferentes, declare inaugurada a dita escola, subirão ao ar girândolas de foguetes, e repicarão os sinos dos Paços do Concelho, tocando o hino nacional a banda marcial, colocada no largo da escola.

Art. 7.º – Terminados os discursos, dos que, para isso, obtiveram permissão do Ex.mo Presidente, será dado por concluído o acto, voltando aos Paços do Concelho a Câmara, autoridades, professores e convidados, pela mesma forma, e pelas mesmas ruas por que se dirigiram à escola. O Estandarte Municipal, tanto à ida, como à volta, será levado por um cavalheiro para esse fim especialmente convidado.

Art. 8.º – Chegada a Câmara, autoridades, professores e convidados, aos Paços do Concelho, a Câmara tomará o seu lugar, ordenando o presidente dela ao seu Escrivão que leia o auto da cerimónia, que será exarado no livro das sessões municipais, e assinada pela Câmara, e todos os presentes – feito a que se dará por terminado o acto.

Aveiro e Secretaria da Câmara Municipal, 7 de Junho de 1880.

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Fachada principal da Casa da Escola de Instrução Primária, na freguesia da Vera Cruz.

Da forma como se deu efectivação ao programa deixaram registo os periódicos locais – «para que se saiba no país que Aveiro tomou parte também na grandiosa manifestação do dia 10». (2)

Sigamos, assim, um desses circunstanciados relatos. E sintetizemo-lo: «A manhã acordou ao som dos hinos nacionais, que uma banda marcial soltava pelas ruas da cidade, por iniciativa da comissão de estudantes do liceu». Porque, diga-se, o corpo discente daquele estabelecimento de ensino organizou, em cooperação com os professores, e paralelamente à da municipalidade, uma comemoração da efeméride, que tomara tão empolgante projecção e penetração.

«O largo municipal – prosseguia a reportagem do mesma órgão da Imprensa aveirense (3) – apareceu vistosamente embandeirado. No centro elevava-se um formoso adorno, cercado de galhardetes, sob cada um dos quais se viam datas comemorativas. Na fachada do liceu, em grandes letras encarnadas, lia-se a palavra «Camões».

No Largo da Vera-Cruz (hoje denominado Largo do Capitão Maia Magalhães), a decoração fora gizada no mais estreme estilo da época. Aliás, a descrição, também rigorosamente fiel aos empolados gostos de então, com ela se harmonizava inteiramente: «...em volta do elegante edifício da escola municipal – o elegante edifício é o mesmo que ainda hoje lá se encontra em ruína e agora consideramos extremamente modesto, se não mesquinho – tremulavam muitas bandeiras, cujos mastros se ligavam entre si por festões de murtas e flores».

Decepcionantemente, «a manhã estava triste». E, pior, «ameaçando aguaceiros eminentes». Mas, de muito vale a vontade, ou a fantasia de um cronista imaginativo: «No entanto, os hinos da festa atroavam os ares e as girândolas de foguetes que estoiravam no ar mantinham na linha de respeito as nuvens acasteladas».

O programa cumpriu-se como fora prescrito. Saiu o cortejo, ao meio-dia prefixo, e rompeu ao som dos repiques dos sinos da torre dos Paços do Concelho, como é da velha e subsistente regra. Somente o cortejo, no tom de circunstância do narrador era mais pomposamente «o préstito», como convinha à dignidade da comemoração.

À boa maneira idealista, porque a escola era tida como um templo, o cívico préstito de preito camoniano ia «sagrar a escola», enquanto o povo, que nem sempre tinha festas daquele tomo, num tempo de muito escassas distracções, «se apinhava em volta da gentil construção». E, entregue a chave, como no programa se prescrevia, ao Comissário dos Estudos, doutor de capelo e borla, e que desse atributo se não dispensava de acompanhar a assinatura onde quer que a exarasse – o Doutor João de Moura Coutinho de Almeida Eça – , este abriu a porta.

Claro que o cronista teria de afinar todo o relato do histórico acontecimento pelo mesmo diapasão de ataviada linguagem, para revelar a magnitude e projecção da cerimónia: «Abriu-se a porta do templo e os sacerdotes entraram».

Evidentemente que entre estes sacerdotes tinha lugar o clero, desde o Vigário-Geral da ainda não extinta diocese, ao corpo docente do Seminário e demais cleresia citadina, mas, ali, o «Sacerdos Magnus» era o Dr. João de Moura, e oficiantes os oradores que / 56 / mencionaremos, o venerando Manuel José Mendes Leite – o intrépido e impoluto soldado da liberdade que, sendo a mais insigne e respeitada figura de Aveiro, conduzira o estandarte municipal –, os camaristas, as autoridades civis e militares, o professorado.

Abriu a sessão o Comissário dos Estudos, que proferiu «um bem ligado discurso» sobre a instrução e sobre a festa do dia, e, «em frases dignas do seu muito cavalheirismo e cortesia, endereçou à Câmara as suas felicitações».

Seguiram-se no uso da palavra: António Maria dos Santos Freire – «um dos mais distintos professores do país», na qualificação do noticiarista a que vimos arrimados –; José Reinaldo Rangel de Quadros – «que recitou uma das suas formosas produções poéticas».

Francisco de Magalhães, que, como vimos, lançara a ideia de assinalar-se a data da inauguração do novo edifício escolar, achou que não podia ficar silencioso na cerimónia que a consagrava: «Sabendo que estava prestes a conclusão deste belo edifício, concebi a ideia de ser inaugurado neste faustoso dia em que a nação paga uma dívida enorme ao imortal cantor das nossas glórias, e por isso, tomei a liberdade de apresentar à nossa ilustre vereação uma proposta que ela benevolamente acolheu, e mais brilhantemente efectuou, pelo que não posso deixar de tributar-lhe o meu eterno reconhecimento».

Ao saudar, com exuberante júbilo, aquele «dia festival», salientou: «Portugal não podia deixar de festejar condignamente este dia como um dos principais da sua brilhante história, e para que a mocidade – esperança da Pátria – e o povo – tesouro da Nação – aprendessem a venerar aquele nome, como o do mais ilustre varão, que pôs todo o empenho em tornar grande o ninho seu paterno! E Aveiro, que se ufana de possuir aquela que se aponta como sendo a Natércia de Camões, não podia deixar despercebida esta data gloriosa».

Outro orador, poeta festejado e filigranador da prosa com minuciosos esmeros, Fernando Vilhena, quintessência as superlativações e encómios:

«A terra em que nasceu a mais brilhante manifestação do génio e da inteligência humana, José Estêvão Coelho de Magalhães, vai hoje inaugurar uma escola abrindo à sacratíssima legião da infância mais um horizonte luminoso».

E na sua maneira ditirâmbica, ao que parece de tanto agrado e aplauso dos auditórios de então, subia nos mais altos voos retóricos:

«Augusta sagração da verdade! Sublime festa da Ciência é esta, em que a chave de oiro do mais acrisolado civismo vai abrir as portas do sacrário da instrução. Soberbo facho de luz ilumina de um só jacto os domínios da escuridão, sepultando nos abismos o demónio da ignorância».

Os últimos discursos da sessão, de certo mais sóbrios, mas de que não topamos qualquer transcrição, foram proferidos por Barbosa Ponce Leão e pelo aveirógrafo Marques Gomes, sempre presente nas celebrações das datas históricas e nos grandes momentos da sua terra.

Foi depois reorganizado o cortejo e, na sala das Sessões dos Paços do Concelho, onde as principais entidades se dirigiram, lavrado, lido e assinado o auto da inauguração que integralmente transcrevemos: 

Auto da inauguração da Caza da escola de instrução primária, para os dois sexos, da freguesia de Vera-Cruz, construída no largo do mesmo nome.

Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil e oitocentos e oitenta, aos dez dias do mez de Junho do dito anno, nesta cidade de Aveiro, e Paços do Concelho, achando-se reunida na sala das suas sessões a Câmara Municipal sob a presidência do seu Vice-Presidente, o Sr. José Antunes d'Azevedo, e estando assim presentes os vereadores da mesma, Ribeiro, Simões, Santos Gamellas e Carlos Guimaraens, diversas auctoridades, o Ex.mo Comissário dos estudos, professores do Lyceu, do Seminário e de instrução primária do Concelho, representantes da Imprensa, e outras pessoas convidadas, todos abaixo assignados, disse o Snr. Presidente que, estando designado o dia de hoje para a inauguração da escola para os dois sexos que a Câmara mandara construir no largo da Vera-Cruz, comemorando, por esta forma, o tricentenário de Luiz de Camões – o grande e immortal épico –, cujo poema tornaram immorredouro o nome portuguez, convidava todos os presentes a acompanharem a Câmara nesse acto solemne.

E logo pedindo ele Snr. Presidente ao Ex.mo Manoel José Mendes Leite que se dignasse tomar o estandarte municipal, o qual se achava arborado na salla atraz delle seguiram a Câmara e todos os convidados pelas ruas da Costeira, dos Mercadores, travessa dos Mercadores, ruas de José Estevam e da Vera-Cruz, e largo do mesmo nome, dirigindo-se ao edifício da escola. E ali convidando o mesmo Snr. Presidente o Ex.mo Comissário dos estudos e Reitor do Lyceu a assumir a presidência, e tomando todas as autoridades, funccionários e convidados, os lugares que lhes estavam assignados no respectivo programma, o referido Commissário dos estudos, / 57 / o Ex.mo Dr. João de Moura Coutinho d'Almeida d'Eça, fez um discurso proprio da occasião e ausivo ao acto, dando em seguida a palavra a diversos cavalheiros que, para esse fim, a pediram. Findo o que o Ex.mo Comissário declarou inaugurada a escola para os dois sexos, construída no largo da Vera-Cruz, e voltou a Câmara, autoridades, funccionários e convidados, pela mesma forma e peIas mesmas ruas, a esta salla das sessões camarárias, onde o Snr. Presidente mandou que se lavrasse este auto, que para constar foi escripto por mim, por ordem delle, e vai ser assignado pella Câmara, e todos os presentes, depois de lido por mim Francisco de Pinho Guedes Pinto, escrivão da Câmara, que o escrevi e assigno.

José Antunes d'Azevedo

José Maria Ribeiro

Manoel Nunes d'Oliveira Sobreiro, Adm.or do Concelho, Manuel Rodrigues Simões, José dos Santos Gamellas, Carlos da Silva Mello Guim, Dr. João de Moura Coutinho Alm.da d'Eça, Manuel Batista da Cunha, Professor do Seminário, Calisto Simões da Costa, idem, Alexandre José da Fonseca, idem, José Candido Gomes de Oliveira Vida, idem, António Vilas Boas Salgado, Comandante militar, o Juiz de Direito da Comarca Barão de Paçô Vieira, Francisco Augusto da Fonseca Regala, João J.e Per.ª de Sousa e Sá, professor do Iyceu, Visconde da Azinheira, Elias Fernandes Pereira, professor do Iyceu, Abílio César H.es d'Aguiar, idem, Adriano Monteiro, Secrtr.º, Alfredo Gouvêa Osório, thesour.º pagador do Distrito, João Maria Garcia, 1.º Substituto do Juiz Ord.º d'Aveiro, Alvaro de Moura Coutinho d'Almeda d'Eça – professor do Iyceu, Manoel Ferr.ª Corr.ª de Souza Escrivão Faz.da, José Pereira de Carvalho, P.e Manuel Ferreira Pinto de Sousa, Anacleto Pedro da Cunha, Joaquim de Mello Freitas, Francisco Augusto de Paixão, Jozé António de Resende, Francisco José Barbosa, Francisco Victorino Barbosa de Magalhães, J.e Augusto Marques Gomes, Fernando de José Maria Barbosa de Magalhães, Alfredo Rangel de Quadros, António Ponce de Leão Barbosa, António Maria dos Santos Freire, Professor d'ensino primário, Agostinho D. Pinheiro e Silva, Manoel José Mendes Leite, José Fernandes Mourão; Commissão Escolar, promotora dos festejos do tricentenário de Luiz de Camões: Manoel António de Sousa, Anselmo Augusto Maria da Silva, José Rodrigues d'Ameida, Joaquim Alfredo Mourão, António. Rodrigues Cosme; Júlio Alfredo Lourenço, professor d'instrução primária, José Reynaldo de Quadros Oudinot, Manoel António Loureiro de Mesquita, Silvério Augusto Barbosa de Magalhães, Domingos dos Santos Gamelas, Arthur Ravara, Manoel José Marques da Silva Tavares, J.e Ferreira da Cunha e Souza, João d'Almeida Vidal, professor de Instrução Primária, Francisco de Pinho Guedes Pinto. / 58 /

As comemorações promovidas pelo liceu efectuaram-se à tarde.

Organizou-se uma comissão de estudantes com a seguinte constituição completa: presidente, José Gerardo Vieira; vice-presidente, José Fernandes Mourão; secretário, Anselmo Augusto Maria da Silva; tesoureiro, Manuel António de Sousa; vogais, Joaquim Alfredo Mourão, António Rodrigues Cosme e José Rodrigues de Almeida.

O programa elaborado pelos jovens estudantes que foram naturalmente permeáveis à propaganda, que tomaria nítida feição republicana, lançada em Lisboa, para as celebrações do centenário – iniciou-se às três horas da tarde – hoje diríamos pelas quinze – com a distribuição pelos presos da cadeia de um abundante jantar. Aliás, os reclusos, já que a cadeia se encontrava instalado no andar térreo dos Paços do Concelho, eram, por assim dizer, vizinhos do liceu. De qualquer modo, era muito apropositado o comentário do cronista da época, acentuando que tinha sido um «acto altamente comovente e que muita honrara os sentimentos da mocidade estudiosa».

Duas horas depois, no salão da biblioteca do Liceu – «magestosamente adornado» e em frente de cuja entrada se erguia o busto de Camões – efectuou-se uma sessão solene.

Usaram da palavra o Reitor – o mesmo Dr. João de Moura Coutinho de Almeida de Eça –, Abílio César Henriques de Aguiar, José Reinaldo Range! de Quadros – que recitou uma poesia intitulada «Luís de Camões», no dia imediato lido no Palácio de Cristal, no Porto -, Marques Gomes – que pronunciou um discurso histórico acerca de D. Catarina de Ataíde –, Fernando de Vilhena, Silvério Augusto Barbosa de Magalhães, de novo Rangel de Quadros, declamando outro poema da sua autoria, e a encerrar, pela segunda vez, portanto, o Reitor.

Entretanto, no termo de cada discurso, a «orquestra académica», regida por João Rodrigues Franco Júnior, executou uma composição e, segundo o narrador que temos acompanhado, «com escrupulosa afinação, cuidadosa regência e admirável certeza».

Pertenceram ainda à iniciativa da citada comissão de estudantes, as festas realizadas à noite.

A fachada dos Paços do Concelho foi iluminada ao gosto da época, e, bem assim, o Largo Municipal, com invulgar profusão de lumes.

Assim se deduz do registo do acontecimento, mesmo descontando a propensão para o encómio exagerado do cronista, de tão regurgitante veia literária e que não se dispensou de assinalar a «admirável iluminação»: «nunca, talvez, nesta cidade, pródiga em festas, se viu iluminação mais vistosa».

Esta estendia-se, logicamente, à frontaria do edifício do liceu, onde «brilhava em cintilações formosas a palavra «Camões».

Resta acrescentar que, quer a Banda Aveirense quer a da Vista Alegre, executaram, alternadamente, com todos os primores de que eram capazes, ao longo de algumas horas, as melhores peças dos seus reportórios.

Não seria nem fácil nem aconselhável num trabalho sem pretensões exaustivas – pois que apenas se propõe apresentar um conspecto pouco mais de objectivamente enunciativo da participação aveirense na celebração que tanta influência tomaria no incentivo do proselitismo dos ideais republicanos – tentar um rol, próximo do completo, dos aveirenses – lato sensu – que deixaram produções em prosa e/ou em verso, por publicações de ocasião ou periódicos, nesse momento de glorificação do Épico Nacional e de acendrada exaltação patriótica.

Apontaremos, todavia, alguns jornais a que topamos referência, ou mesmo conhecemos por algum raro exemplar. E referiremos não apenas os que ao acontecimento tão geral e relevantemente consagraram, na Imprensa, números especiais, integralmente dedicados a Camões, mas ainda um punhado dos que, embora não de forma exclusiva, incidiram salientemente na fausta memoração da efeméride.

Aludiremos, assim, em primeiro lugar, a alguns números sucessivos (2892 a 2896) do «Campeão das Províncias». A primazia seria devida, para além de haver sido o jornal que mais desenvolvida e demoradamente se deteve sobre o grande acontecimento nacional, por se tratar do decano dos jornais da cidade e do distrito.

De alguns desses números nos socorremos já e com eles continuaremos a abonar-nos. Do primeiro dos mencionados, porque de Aveiro mesmo ou da circunscrição administrativa que a tem por capital eram, por nascimento ou adopção, os colaboradores, relacioná-los-emos um a um.

Todos, mais ou menos, em diversos sectores de actividade, com maior ou menor constância e préstimo, prestaram serviços à sua terra e nela tiveram notoriedade.

Aliás, dessa edição da tão difundido e creditado periódico aveirense – que constitui, sem dúvida, um muito apreciável espécime camoniano, ainda que compreensivelmente ditirâmbico, porventura mais em jeitos de aureolação histórica do que com intuito de valorativa apreciação de crítica literária – extratamos, para o final desta notícia exumativa, o poema de Francisco Joaquim Bingre – já aí repetido, que não ainda inédito, mas quase ignorado. Segundo julgamos, bem merece ser trazido à luz da ribalta mais uma vez neste ainda que modesto teatro das letras. / 59 /

Com representar uma contribuição para divulgar a produção bingreana e numa mal conhecida faceta do festejado e longevo árcade, que pelo seu pseudónimo de «Francélio Vouguense» e depois com o mais popularizado de «Cisne do Vouga», tanto ficou ligado à região aveirense, constitui uma crítica severíssima a José Agostinho de Macedo, e ao seu pretensioso «Oriente», em que inflado pavorescamente se propunha «fazer esquecer o que há na repartição das Epopeias até agora». (4)

Clicar para ampliar.

Francisco de Joaquim Bingre.

Nesse escalpelar do poema, sem que o autor famoso da «Besta Esfolada» e outros contundentes panfletos do mesmo teor e vigor, «julga que conseguiu a possível perfectibilidade, e que não cabe mais nas forças humanas» (5), com a exaltação reabilitadora de Camões, reduz-se, com o exagero da sátira, a vanglória fátua e petulante a proporções de rasteira inspiração.

Na verdade. como lucidamente acentuou Castelo Branco Chaves (6) «Julgando (José Agostinho) que a posteridade o veneraria como poeta e, deliciada e atenta, se debruçaria sobre os seus poemas, comunga dessa estrondosa quimera do amor próprio, que é a celebridade, tendo sido justamente o mau poeta que tem feito esquecer e desprezar nele o polemista insigne, o panfletário vigoroso, másculo e pitoresco, o satírico admirável, o critico sensato, erudito e penetrante que, de facto, foi».

Crítico, mas não autocrítico com agudeza e bitola válida, não sabemos o que porventura haja ripostado e com que verrina e faceta veia ridicularizadora, ele que era todo «rebeldia, orgulho, vaidade, intolerância, sarcasmo /.../, uma organização especialmente apta para a inteligência discursiva, dentro da qual iria criar, entre nós, um novo género – o panfleto político – a que deixou vincado o nome e a marca da sua natureza apaixonada e violenta». (7)

Sabemos também que outro órgão da Imprensa aveirense, «O Distrito de Aveiro», semanário fundado por José Estêvão e órgão local do tribuno, igualmente com bastante audiência e circulação, em diversas oportunidades vigoroso antagonista do «Campeão das Províncias» – consagrou à efeméride, integralmente, a sua edição relativa à própria data (n.º 865), e, em grande parte, a da semana imediata.

Nesta inseria circunstanciado relato das comemorações aveirenses, redigido pelo próprio director do periódico, nesta segunda fase da sua existência, António Augusto de Sousa Maia.

Na primeira publicava, além de um artigo, «Duas Palavras», do mesmo Sousa Maia –autodidacta que apurara a pena na tarimba esforçada da Imprensa – e produções do redactor principal do semanário, Agostinho Duarte Pinheiro e Silva, («Homenagem a Camões»), de Marques Gomes, António Marques dos Santos, F. Vieira, J. F. Silva, Ivo Augusto, G. de Castro e Rangel de Quadros.

Este operoso investigador, indevidamente esquecido, aliás, versejador de pouco comum facilidade, por igual dedicado às rimas mais copiosas e densas que inspiradas, e à historiografia local, espalhou por diversas publicações as suas produções camonianas, suscitadas pelas celebrações centenárias.

Ficou-se-lhe mesmo a dever um número especial de «A Verdade», de Oliveira de Azeméis, preenchido quase inteiramente com trabalhos seus, em prosa e verso.

Temos ainda conhecimento de apenas um outro hebdomadário do distrito que fosse dedicado integralmente (ou quase) ao centenário de Luís de Camões – a «Soberania do Povo», de Águeda, ao tempo dirigida por Albano de Melo.

Provavelmente outros teriam tomado similar iniciativa mas não nos foi possível, nem porventura importaria aos propósitos restritos desta desambiciosa notícia evocativa, fazer uma averiguação de pormenor.

Passaremos, assim, a gizar um rol, também necessariamente muito lacunar, mas que dará uma ideia do interesse e da participação de que deram provas os aveirenses com mais ou menos firmados créditos nas letras ou na vida pública da época.

Na circunstância – como, aliás, noutras idênticas – considero aveirenses não apenas os efectivamente naturais / 60 / da cidade capital do distrito, mas de diversos concelhos da circunscrição administrativa, e, pois, na mesma relação, sem qualquer estulto propósito de absorção usurpadora, mas também sem discriminação, já que o distrito só se valoriza e realça quanto mais na sua variedade, de tão rica gama de tons, panorâmicos, humanos, de actividades económicas o aponto.

Dispenso-me, neste passo, como é lógico, de repetir para vários deles, alusões já anteriormente efectuadas, mesmo muito sucintas, como a índole deste registo rememorativo recomenda.

Darei primazia, pelo número de produções e, até, em geral, pelo mérito literário, à menção ao poeta, ensaísta, jornalista, antagonista de Camilo numa das suas agrestes e famosas polémicas (na qual se não abitolou pela estatura do genial contendor, mas não fez mesquinha figura), engenheiro de ofício e provadas aptidões – o ilhavense Alexandre da Conceição.

Andam arrolados poemas e produções em prosa desse ardoroso e arguto combatente e doutrinador dos ideais republicanos, não apenas vindas a lume em jornais aveirenses – e lembre-se que Alexandre da Conceição foi um dos nomes que Homem Cristo levou a figurar no primeiro período do «Povo de Aveiro». Em jornais de fora de Aveiro, regista-se-lhe colaboração – que conseguíssemos apurar – nos seguintes, de maior ou menor projecção e sobrevivência:

«O Primeiro de Janeiro» (n.º 135 – XII ano); «Distrito da Guarda» (número comemorativo); «Progresso de Lisboa» (n.º 1017 – IV ano); «Comércio da Figueira» (n.º 124 – I ano); «Correspondência de Coimbra» (n.º 45 – IX ano); «Bejense» (folha extraordinária comemorativa).

Da sua obra «Alvoradas» (Porto, 1875) já se lhe cita um poema, «A Camões», iniciado do seguinte modo: «Influência fatal da tua estrela! Há destinos assim, e o teu, poeta, quase nos faz descrer da Providência»...

Figura também na «Descrição da Festa do Tricentenário /.../ pelo Retiro Literário Português do Rio de Janeiro», e também nas «Outonais» (Porto, 1880, pg. 22) o seu estro retoma o Épico Nacional como tema.

Albano Coutinho, bairradino de irradiante idealismo republicano e primeiro governador civil de Aveiro após a implantação do regime de que foi prosélito devotado, que conseguíssemos averiguar, deixou escritos de seu punho, nessa oportunidade, em «O Comércio do Porto» e «O Comércio Português», ambos da capital do Norte, e ainda no «Partido do Povo» n.º 223, III ano).

De Sebastião de Magalhães Lima – que o facto de haver nascido no Rio de Janeiro não impede de incluirmos, pelos laços paternos e os tempos moços aqui vividos, entre os aveirenses de evidência – aparece-nos menção a um artigo no mesmo «O Comércio Português» (N.º 131 – V ano) a par com dois outros, incluídos no «Imparcial de Guimarães» (n.º 694 – IX ano) e em «A Revista de Camões» (n.º 1).

O Dr. José Maria Barbosa de Magalhães, que, numa larga fase da sua vida teve assídua actividade jornalística, figura, nesse ensejo, também, além da participação no «Campeão», entre os colaboradores de «O progressista», de Coimbra (n.º 88 – IX ano) e de «O Progresso» de Lisboa (n.º 1018 – IV ano). Neste igualmente veio inserto num artigo de José Eduardo de Almeida Vilhena, um aveirense que alcançou uma posição de relevo no jornalismo, não só da sua terra, mas na Imprensa diária da capital.

Dois poetas de maior mérito e projecção, um nascido em Águeda, outro pelo coração e ascendência paterna intimamente ligado a Aveiro (ambos com sua passagem mais ou menos notória pela acção política, e nesse pendor exercendo a função de governador civil do distrito) respectivamente Fernando Caldeira e Luís de Magalhães, não deveremos neste enunciado olvidar.

Do primeiro anda mencionado um «Brinde oferecido aos assinantes de «Moda Ilustrada», com o título «A Luís de Camões», e não só com versos, mas também com música da sua lavra. Aliás, em «Mocidades», três das poesias que incluiu no volume são dedicadas ao autor de «Os Lusíadas».

Ao segundo, o filho de José Estêvão, deve-se pelo menos, a poesia «As Navegações» (8), recitada no Teatro Académico de Coimbra no sarau literário ali realizado, na véspera da inauguração do monumento a Camões.

Do já apontado José Reinaldo Rangel de Quadros, nas fontes de que me socorro aparece ainda registada a participação que deu à «Homenagem dos Poetas», emparceirando com alguns nomes de evidência, e uma página solta, com o título «Três Séculos», de um poema seu, extraído do «Álbum Literário».

José de Melo Freitas, emigrado no Brasil, aí preenche um rodapé de «A Província de Minas», da cidade de Ouro Preto. Intitula-o «O Tricentenário de Camões», e, conquanto o não subscreva com o próprio nome, só depois desvendado, logo se denuncia como homem da região de Aveiro, adoptando o pseudónimo – e nele se envolvendo e ocultando como num gabão de Augusto Varino.

Outro aveirense nado – e, embora desde muito novo ausente da terra natal, sempre fielmente a ela ligado e solicitamente presente em todos os momentos em que a sua cooperação era suscitada – o General Joaquim da Costa Cascais, dramaturgo e poeta, professor de ensino militar, com bagagem, predicados e a indulgência que justificassem a denominação carinhosa de «Pai Cascais», que lhe davam familiar e afectuosamente os discípulos – deverá ser citado neste já estiradíssimo, mas naturalmente muito deficiente, rosário de nomes e trabalhos literários com eles firmados. / 61 /

O General Costa Cascais, além do poema que proporcionou ao «Campeão das Províncias», escreveu, pelo menos, para uma homenagem poética a Camões, no «Diário de Notícias», colaborado por vários dos então mais conceituados cultores das Musas – uns cuja memória persiste, outros caídos no olvido – o poema «Fiat Lux», e ainda uma produção que teria estado nas causas da inauguração do «monumento que à memória do egrégio poeta consagrou a pátria reconhecida» – como se dizia no «Álbum de homenagens a Luís de Camões», seleccionada colectânea do que nessa altura (1870) fora publicado na Imprensa periódica.

Finalizaremos com uma renovada menção a Francisco Joaquim Bingre, o já desde há longo tempo falecido «Cisne do Vouga».

Poderia, além do que transcrevemos no final desta notícia, arrolar desse longevo vate, diversas produções de mais ou menos sedutora inspiração espalhados um tanto a esmo em colectâneas póstumas das suas poesias. E desde, suponhamos, um «Soneto inédito sobre a catástrofe de D. Inês de Castro» aos «Quadros Pitorescos dos Mais Belos Episódios de Camões», desenhados cada um em um soneto.

Foram publicados no jornal «Civilizador» (9), do Porto. Esses episódios eram os seguintes: 1.º – A Camões; 2.º – Concílio dos Deuses; 3.º – A frota de Mombaça; 4.º – Súplica de Vénus; 5.º – Morte de Inês de Castro; 6.º – Sonho de D. Manuel; 7.º – O Adamastor; 8.º – Naufrágio de Sepúlveda; 9.º – Baco entrando nos Paços de Neptuno; 10.º – Tritão; 11.º – Os Doze de Inglaterra; 12.º – A Tempestade e 13.º – A Ilha dos Amores.

*

Como já acentuámos, não tivemos o propósito de efectuar um trabalho exaustivo, que aliás redundaria em dobradamente fastidioso.

Como apontamento de um facto, digamos, uma curiosidade do passado local, colocada no devido grau da escala dos casos do passado local, cremos que dá alguns pormenores evocativos de algum interesse. Lembra o que e aqueles que estavam esquecidos. Constitui, assim, de algum modo, um acto de justiça à memória dos aveirenses que nos precederam e alicerçaram com afervorada devoção, ainda que modestamente nas realizações sempre aquém dos anelos, a Aveiro de hoje.

_____________________________________

NOTAS

(1) – N.º 14. de 1-5-1882,

(2)Campeão das Províncias, n.º 2894, de 16-6-1880.

(3) – Idem, idem.

(4)José Agostinho de Macedo, «Obras Inéditas», Vol. I, pg. 145.

(5) – Idem, idem, pg. 148.

(6) – Estudos Críticos, 1932, pg. 51.

(7)Castelo Branco Chaves, ob. cit., pg. 17.

(8) – Coimbra, Imprensa da Universidade. 1881, Vol. 8.º de 19 págs.

(9) – N.º 823. de 9-X-1872.

Vol. II. 1861-1862. pgs. 66-68 e 79-80. Voltaram a ser publicados no «Museu Camoneano», Porto 1880, pgs. 66-78.


 

 




 

 

EPÍSTOLA AO REVERENDO SENHOR JOSÉ AGOSTINHO DE MACEDO 

Tu nihil magno doctus reprehendis Homero?

Horat. Lib. 1 Saf. 10 – v. 52
 

 

José autor de versos bem rimados (1)

Na lusitana incude assás batidos,

E com lima subtil alguns limados:

Que louvores, José, te são devidos

Pelo longo romance que fizeste

Em doze cantos orientais seguidos?

Como afoito de Homero a par correste?

Que pincho sobre o épico latino?!

Que tombo ao torto português não deste?

Eu não sei como ergueste o épico sino;

Mais que sete da alfândega tens força

Pois que levaste o grão badalo a pino:

E não se há-de encontrar, não, quem te torça?

Ora eu sempre vou dar-te uma carreira,

Bem que pulo dás maior que corça.

Olha: se eu te galgar pela dianteira,

Eu te farei palrar, pois que insensato

Corres tanto pela íngreme ladeira.

Como aqui te pilhei, eu vou-te ao fato.

Tu, José, queres ser cisne beócio?...

Tu, que em tanques comuns, grasnando és pato?

Para boa te deu, José, teu ócio:

Quando te era melhor compor em prosa

Coisinhas de fazer algum negócio  / 62 /

Tu embocas a tuba majestosa?

Nem gaita de pastor tocar tu podes

            Pela falda de Pindo pedregosa.

            Para poeta tu não tens bigodes.

Se asas não te quis dar a mãe natura, (2)

Porque de cera as ícaras sacodes?..

Temerário subiste à mesma altura

Do censurado torto; mas baqueias

De trambolhão na mesma audaz censura.

Tu podes censurar mil epopeias;

Mas fazer uma, não. O teu ORIENTE

Voa pesado e opresso de cadeias.  (3)

Camões, águia imortal, quando ergue a frente

Emboca a tuba de oiro, e as asas bate,

Vai no disco poisar do Sol ardente.

Nasceu vate, foi vate e há-de ser vate

Enquanto viva luz der Febo no mundo,

Sem seu nome morder o cão que Iate.

Se a muitos imitou, também facundo

A muitos excedeu no dom divino

De um estro que talvez não tem segundo.

Se ele ao grego cantor, cantor latino,

Muitas vezes seguiu com seu compasso

Mediu as dimensões com gosto e tino.

E tu, José... Mas vamos passo a passo.

Quem seguiste no teu poema chamado?

Ah! meu padre, que assim me cais no laço!

Não foi pelo caminho já trilhado (4)

Do censurado vate, que levaste

Segunda vez o Gama decantado?

            Dize, podes negar que não furtaste

Muito pano a Camões com que vestiste

O façanhoso Oriente, que geraste?

            Mas ah! quão francamente tu cerziste

Os furtados remendos! As costuras

Da remendada capa descobriste.

Tu censurando as imortais pinturas,

Divinas cópias de um pintor famoso,

Foste depois fazer mil borraduras.

Seja a primeira um sonho venturoso

Do rei, amado herói, que Ásia enfeitada

Viu a seus pés depondo ceptro honroso:

Ora dize, meu padre, esta dedada,

Ou borradela, que em teu quadro deste

Ao nosso grão cantor não foi furtada?...

Dos verandos rios a colheste; (5)

Tu as guardas viraste à fechadura,

Pois fazê-la de novo não pudeste.

Seja Ia segunda a célebre pintura (6)

Do bom velho de aspeito venerando,

Que a tua pena roubou a quem censura.

Mas vê com que energia, meneando

Por três vezes a fonte encanecida,

Melhor que o velho teu foi declamando.

E aquela pincelada de fugida

Que o levita profético lançam

Julgando não seria pressentida?

E pensavas, José, que me escapara

Tapar coas mãos o ouvido, o moiro imundo, (7)

Que a Camões, canto dois, o teu bifara?

E o cabo austral, medonho e furibundo, (8)

Transformado na feia idolatria,

Que fizeste surgir do pego fundo?

Este furto, José, não se faria

Ao gigantão dos dentes amarelos?

Eu não sei com que cara andas de dia.

No teu quadro ias dando uns traços belos;

Mas como foste sempre um mau padeiro,

Amassaste a farinha co’os farelos.

            Galo que canta tanto em seu poleiro,

Faz tentar a raposa, quando passa,

De assaltada lhe dar no galinheiro.

Mandam as musas que eu justiça faça.

O engano de Satã na ilha encantada

Não é o mesmo engano de Mombaça? (9)

Naquela do anjo mau acção danada

O justo Henrique mostra ao luso Gama; (10)

Nesta Mercúrio aponta-lhe a cilada.

E o fogo que na aldeia acende a chama,

Não é o mesmo fogo que tu viste (11)

Ateado em Camões na seca rama?

Ora repara bem como caíste

Também, padre José, censor ufano,

Na mesma cova que em Melinde abriste.

Ao velho rei insone melindano (12)

Como Camões a história não contaste

Da fundação do reino lusitano?

Porém, quão secamente lhe narraste

Dos nossos lusos reis a heróica história!

Como com ela ao sono convidaste!...

O caso triste e digno de memória (13)

Passaste, como gato passa as brasas,

E outros, que aos reis dão fama, e ao todo glória.

            Mas os patos só dão voadelas razas;

As altas são dessa ave, que alevanta

Sobre o disco do Sol as pandas asas.

Camões dos lusos reis a história canta

Tu dos lusos reis a história contas:

Teu Gama narra só, e o outro espanta,

E as formigas, que tu, tontinho, apontas (14)

Entre as comparações também roubadas?...

E de fazer o mesmo não te afrontas?!

            Olha que tão famosas pinceladas

Vais dando em teu painel! que finas tintas

Por tua mão grosseira esperdiçadas!

Para que tu, José, me não desmintas,

É que te vou fazendo apontamentos

Dos furtos, de Camões, com que tu pintas. / 63 /

O teu Gama lutou co’os mesmos ventos:

Do Gama de Camões não é diferente.

Senão em ser mais pobre de ornamentos.

E foi isto compor originalmente? (15)

Não havendo Lusíadas, de certo

Não vinha à luz o celebrado Oriente.

E foi isto fechar livros esperto (16)

Para compor, sem ver, o teu poema?

Ora sempre a Camões deixaste aberto

            De teu longo sermão foi este...

E para neles teres venda boa

            A censura meu padre foi sistema.

Fugiste dos parceis; deste co’a proa (17)

Nos escolhos, que o torto embicar fora;

Não sei como surgiste à plaga eoa.

Mas paremos aqui; vamos agora

Tesourar no romance um bocadinho;

Tem paciência José, já que és tesoura.

Isto acontece àquele que é daninho,

Pois que, tendo de vidro o seu telhado,

Vai atirar co’a pedra, ao do vizinho.

            Primeiramente o título foi dado

Contra a melhor opinião corrente, (18)

Por ser da acção e não do herói tirado.

Faltou depois no façanhoso Oriente

A invocação também, regra prescrita (19)

N'alta epopeia ao vate inteligente.

Qual é a musa tua que te incita

Ao épico furor? Mas um romance

De auxílio divinal não necessita.

E queres que o leitor não durma e canse

Co’a narração monótona que fazes,

Sem encontrar um pouco onde descanse?

Os episódios todos que tu trazes

São à força de malho ali metidos;

De alegrar o leitor não são capazes.

São férreos, secos são, nunca floridos;

Não são filhos do génio, são bastardos;

Vêm para ali os pobres constrangidos.

Os marinheiros teus, os teus soldados

Nunca têm um deleite, em mar bonança,

Co’a narração de feitos sublimados.

Enfastia, aborrece, amarga e cansa

Longa viagem ao triste navegante (20)

Se a algum prazer no mar a mão não lança.

Que aventuroso o seu Quixote andante

E os seus Sanchos encontram nas florestas,

E nos cerros de assombro nigromante?

Logo ao primeiro desembarque entestas

Ao teu herói com colossal figura, (21)

Que no alto cerro aos nautas manifestas

Quem, poria essa estátua em tanta altura

Para o Tejo apontando? E quem na base

Apontaria a profética escritura?

Mago vate inventor, magia faze

Nigromâncias fatídicas ião belas

Para o teu romance arraste e traze...

E o portentoso tríduo das donzelas

Pretas que iam no fogo ser lançadas (22)

Co’a carapinha ornada de capelas?

Se não fossem as lúcidas espadas

Dos lusos em favor da natureza

Não livrava Veloso as desgraçadas.

Nem se a viúva Malabar francesa

Te não lembrasse esta aventura andante

Não tinha o teu Quixote esta alta empresa.

E a outra tal da negra Unhamba amante

A quem os dois pretinhos se votaram (23)

Por negro fado e negro amor constante?

Por voluntária súcia se mataram

Todos os três amantes negregados.

Que temo raro os nautas dois toparam!

Todos os teus pincéis são ensopados,

Meu padre em negra tinta; em lindas cores

Nunca uma vez sequer senão molhados?...

Lá vai Veloso e os seus exploradores

O templo descobrir no canto quinto

Dos mausoléus dos reis e seus horrores.

Este dos mortos funeral recinto

E seu bonzo ansião foi furtadela

Que tu fizeste a Fernão Mendes Pinto. (24)

A pincelada de Lindara bela

Que no grão mausoléu inchado deste (25)

Foi tua, que eu conheço a borradela.

Sempre és bem córneo! E coração tiveste

Em fazer com que o rei matasse a amante?...

Dar-lhe outra volta, padre, não pudeste?

Não vês que da natura está distante

Sem choque de paixão tão pronto lance?

Ceder de a pôr no trono era bastante,

Porém, importa pouco que eu me canse

Em te inspirar ternura: é vã empresa;

Deixemos tal, tornemos ao romance:

Em tão comprida história uma beleza

Não se encontra sequer, nem que digamos:

– Benza-te Deus, José, que tens viveza!

Ora um pouquito ver agora vamos

Todo o histórico fio: ou não diviso (26)

Causa nova: debalde a procuramos.

            Tu tens erudição, tu tens juízo; (27)

Não to nego, José, mas não tens gosto;

És monótono sempre em teu repiso;

            Não tens outro bordão nem outro encosto:

Os vindouros sucessos do Oriente

            Mudam de personage, e não de rosto. (28)

            Sonha lá D. Manuel: Ásia potente (29)

Lhe aponta logo ali glória futura,

E o mesmo faz também o anjo esplendente. (30) / 64 /

Em dois sonhos depois Henrique augura

As ditas orientais e lhe repisa (31)

Na Índia, do Gama teu, lusa ventura.

O mesmo em sonho o Samorim divisa (32)

Em sonhos Alexandre ao Gama fala (33)

E S. Tomé o mesmo profetiza. (34)

No princípio em Belém já se não cala

O levita ancião; iguais proezas (35)

Aos nautas vaticina em voz que estala.

No pedestal da estátua, as portugueses

Acções orientais se vaticinam. (36)

Em velhas letras garrafais chinesas.

Enfim, por toda a parte se amotinam

As proféticas ditas lusitanas (37)

Com que tanto as cabeças se amofinam.

Enfastiam quem lê tantas indianas,

Repisadas acções mil vezes ditas

Por bocas divinais, bocas profanas.

E és tu, ó padre meu, esse, que gritas

Tanto contra Camões, que degradá-lo

Do Parnaso, onde mora, premeditas?

É ele o historiador ou tu? Abalo (38)

Te não dá cair nesta incoerência?

Qual dos dois narra mais? Pois não me calo;

Eu já agora tomei por penitência

De ler até ao fim teu Oriente;

Hei-de falar verdade: tem paciência.

A teu longo romance impertinente

A conta não farei qual tu fizeste (39)

Ao poema de Camões erradamente.

Tu faze-lo por história, lhe abateste

O melhor que ele tem de alta poesia,

E mesmo assim mordê-lo não pudeste.

Eu sei contar, José; também podia

Muita coisa abater no teu, se história

Ele não fosse sem mais valia,

            E a escritura que o Gama na memória

Ao Samorim pagão meter pretende? (40)

É maré de chegar à palmatória.

Este longo sermão não compreende

Cento e meio de oitavas enfadonhas?

Chega a mão, meu José, leva e aprende.

E quantas têm os cantos, em que sonhas?

E as tuas narrações a quanto montam?

Defeitos que tu tens, noutro não ponhas. (41)

Noventa oitavas, padre meu, se contam

Na profecia do último santo

Apóstolo Tomé, que bem se apontam: (42)

Duzentos e sessenta e cinco – tanto

Somam tuas proféticas estâncias: (43)

Testemunho, José, não te levanto.

Tem teus sonhos as mesmas concordâncias,

O mesmo nível têm as profecias.

Curtas de umas a outras nas distâncias.

E és tu, o padre meu, tu que avalias

O poema de Camões? Tu que tropeças

Pior, muito pior nas mesmas vias?

E és tu, que aos céus os voos arremessas?

Cisne, que espaços não trilhados pisa? (44)

É bem que agora em trambolhão os meças.

De Calecut ao porto finaliza; (45)

Toda a épica acção do teu romance.

Voltar à pátria o Gama não precisa.

Deste descobrimento o heróico lance

Não se sabe em Lisboa. Esta certeza

Ficou só, meu José, ao teu alcance.

O Tejo viu sair com gentileza

Por sua foz o Gama belicoso

Mas té agora jejua o fim da empresa. (46)

E acaso julgas tu não ser forçoso

ser o rei, que empreendeu tão alto feito,

Sabedor nesta acção do fim ditoso?

Ora confessa, pois, que não tens jeito,

Meu padre pregador, para poeta,

Bem que mordaz a declamar afeito.

Eu bem previ que se virava a seta

Contra ti mesmo que atiraste ao torto,

Quando intentaste transcender-lhe a meta.

            Quiseste a fama enegrecer de um morto,

Que, em três séculos quase, tem luzido

            Da eternidade no seguro porto. (47)

            Quiseste o nome seu ver abatido,

E remontar o teu n'alta epopeia,

Que julgaste melhor ter concebido:

Vã presunção de alucinada ideia

Os teus olhos vendou. Assim Faetonte

Tontinho se abrasou na luz Febeia.

Subiste ao pico do Piério monte,

Tentando derrubar Camões do cume;

Mas – caiste de lá quebrando a fronte.

Ora pois, meu José, perde o costume

De satírico ser, pois tens borbulhas

Muitas para cortar com férreo gume.

Tens-te feito um agressor de bulhas (48)

Pois na pousada idade tens mania

De andar feito malsim-fiscal de grulhas.

Trazes tão embrulhada a fantasia,

Que no prefácio teu no fim mentiste

Em seguir como Tasso a recta via. (49)

Se do Tejo com seu herói saíste

E com ele por fim lá não entraste,

Como a ordem da história então seguiste?

Que vergonha, José!... e censuraste

O divino Camões?!... tu, plagiário, (50)

Que os melhores adornos lhe furtaste!

Ora põe para ali o vestuário

Que é alheio também; despe-o na praça,

Já que larápio és, meu censor vário. / 65 /

Quem de Alcmena ao filho arranca a moça?

Quem o louro a Camões da fronte arranca?

Que temerário pode haver que o faça?

Não se assustam os dois desta carranca

Que vê o argueiro. O teu Oriente

Em seus olhos não vê a grossa tranca?

Tudo o que nele é mau, é propriamente

Porto do teu bestunto anti-poético, (51)

E o bom é de Camões furto evidente.

Ora pois, se morrer não queres ético,

Vomita para aí esta verdade,

Que eu já não posso dar-te mais emético.

            Se de fazeres poemas tens vontade,

Compõe outra famosa burricada (52)

Que ali podes zurrar com liberdade:

Esta epopeia, sim, não foi furtada

Tu tens a glória de cantar os burros,

És original cantor dessa burrada,

E o principal herói de eternos zurros

                               Francisco Joaquim Bingre

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NOTAS

(1) – Segundo Aristóteles são degredados da classe dos poetas os que não Incitam. A este rancho pertence o crítico Macedo.

(2) – O padre Macedo nunca foi conhecido na Arcádia por poeta, mas sim por um bom forjador de versos. A natureza não lhe conferiu aquele dom divino de entusiasmo ou furor poético, que (segundo Platão) põe em êxtase os verdadeiros poetas.

(3) – Faltam no Oriente aqueles grandes arrebatamentos poéticos, aquela doçura poética, que sabe mover os afectos, e fazer-se senhora dos ânimos de quem lê, como pondera Horácio, Ep. de Art. poet., v. 99.

Non satis est pulchra esse poemata: dulcia sunto;

Et cuoqumque voJa.nt, animam auditoris agunto.

(4) – Quem quiser ter a pachorra de coadunar o Oriente com Os Lusíadas, conhecerá como este crítico alucinado imitou servilmente a Camões, seguindo as suas pisadas e sujando com lodosos pés o brilhante trilho do nosso poeta.

(5) – Combine-se no canto 4.º de Os Lusíadas, a estância 71 com est. 29 do canto 1.º do Oriente e ver-se-á se a Ásia, que aparece em sonhos a D. Manuel não é imitação (ainda que incomparavelmente menos brilhante) dos rios Indo e Ganges que, ao mesmo rei, Camões fez aparecer em sonhos.

(6) – Combine-se no mesmo canto 4.º de Os Lusíadas a est. 94 com a est. 12 do Oriente no canto 2.º.

(7) – Combine-se a est. 100 do 2.º canto de Os Lusíadas com a est. 33 do canto 2.º do Oriente.

(8) – Combinem-se as est. 31 até 36 do canto 7.º do Oriente com a est. 39 e seg. do canto 5.º de Os Lusíadas.

(9) – Combine-se o canto 5.º do Oriente com o canto 2.º de Os Lusíadas.

(10) – Combine-se a est. 14 do canto 5.º do Oriente com a    est. 61 do canto 2.º de Os Lusíadas.

(11) – Combine-se a est. 9 do canto 7.º do Oriente com a est. 49 do canto 3.º de Os Lusíadas.

(12) – Combine-se o canto 8.º do Oriente desde a est. 2 até 44 com os cantos 3.º e 4.º de Os Lusíadas até à est. 66.

(13) – O episódio de Inês de Castro, que em Camões é uma pincelada de um grande mestre, é em Macedo um borrão de um reles aprendiz.

(14) – Combine-se a est. 35 do canto 4.º do Oriente com a est. 23 do canto 2.º de Os Lusíadas.

(15) – Veja-se o que diz o A. do Oriente no discurso Preliminar, pág. 48.

(16) – Veja-se o dito discurso Preliminar, pág. 98.

(17) – Veja-se o dito discurso Preliminar, pág. 97.

(18) – É muito mais nobre aquele título, que mais se deduz do herói que do lugar, porque este é o sujeito da acção e aquele a causa eficiente. Vid. Freir. Poet.º 13.º cap. 5 – Escalg. Poet. 3.º cap. 97, na censura que fez a Lucano na Pharsalia.

(19) – A invocação que é a 3.ª parte do poema épico na quantidade faltou no Oriente. O seu autor se arremessou logo aos ares sem socorro divinal. Não se lembrou da elegantíssima invocação de Tasso à Musa celestial em uma belíssima oitava; e de Zarate, em seu poema Invencion de la Cruz, invocando a mesma Cruz, com expressões mais vivas e delicadas.

(20) – O nosso Macedo diz no seu «Discurso Preliminar», pg. 99, que lutara sempre contra a natural esterilidade da monótona viagem do mar. Fizesse como fez Camões no canto 6.º em que Veloso diverte os navegadores com o episódio dos 12 de Inglaterra, dando honra e fama a seus naturais.

(21) – Esta estátua do canto 3.º do Oriente, que no bico da serra se patenteia ao Gama magicamente, em laivos de aventura andante, pois não se decifra o modo ou razão por que ali foi posta.

(22) – Este episódio do canto 4.º do Oriente foi tirado da tragédia francesa – A Viúva Malabar.

(23) – Quão inverosímil não é a catástrofe deste negregado tríduo amante do mesmo canto 4.º do Oriente! Quão arrastado não entra ali este episódio! Quão eloquente não é o negro que ainda resta vivo! Um boçal discorre assim? Enfim, esta brutal catástrofe não inspira ao leitor nem horror nem compaixão.

(24) – Veja-se Fernão Mendes Pinto, cap. 76, pág. 99.

(25) – O episódio de Lindara, do canto 5.º do Oriente, sacrificada por um esposo amante ao fanatismo, é contrário à Natureza; pois se a lei fundamental daquele império

proibia que reinassem mulheres, cedendo o rei de a pôr no trono, aplacava a fúria dos seus deuses, e escusava de matar a sua esposa tão amante.

(26) – Não se vê em todo o Oriente um trilho diverso, novo, e não usado por outros épicos, à excepção destas negras pinceladas, ou borrões sem gosto.

(27) – Seria fazer injúria à verdade negar ao padre Macedo uma grande erudição e uns vastos conhecimentos literários: o que se lhe nega é um paladar delicado em matéria de poesia, pois lhe falta a natureza, ainda que abunde em arte.

(28) – As futuras proezas dos portugueses na Índia, vaticinadas por diferentes sujeitos, no Oriente são sempre as mesmas, sem gosto repisadas.

(29) – Veja-se o canto 1.º do Oriente est. 29 até 41.

(30) – Veja-se o canto 1.º do Oriente est. 42 até 61.

(31) – Veja-se o canto 6.º est. 12 até 87, e o canto 8.º est. 61 até 67.

(32) – Veja-se o canto 10.º est. 72 até 91.

(33) – Veja-se o canto 12.º est. 3 até 14.

(34) – Veja-se o canto 12.º est. 17 até 100.

(35) – Veja-se o canto 2.º est. 28 até 57.

(36) – Veja-se o canto 3.º est. 57 até 60.

(37) – Veja-se o canto 5.º do Oriente est. 57 até 60, e canto 11.º est. 26 até 34, e as mais que se apontam.

(38) – Veja-se o «Discurso Preliminar», pág. 86.

(39) – Veja-se o mesmo discurso, pág. 87.

(40) – A Escritura Sagrada d'O Velho e Novo Testamento que o Gama conta ao Samorim em 150 oitavas desd

(41) – Se se fizer bem a conta no Oriente, as próprias narrações e digressões de Macedo, os sonhos, as profecias, e tudo o mais em que ele se aparta da verdadeira acção do poema tão somente fica sendo os pés da estátua de Nabuco. Olhem como caiu no mesmo que injustamente acusa a Camões no «Discurso Preliminar», 88.

e a est. 43 do canto 9.º até à est. 68.ª do canto 10.º é um longo sermão, onde de propósito o nosso Macedo quis mais ostentar de pregador que de poeta.

(42) – Somem-se as oitavas das notadas profecias, e ver-se-á a verdade.

(43) – Somem-se as oitavas das notadas profecias.

(44) – Verso da est. 10 do 1.º canto do Oriente.

(45) – Com o fim da visão e predição de S. Tomé ao Gama no porto de Calecut finda a acção do Oriente e não se sabe se ele alevantou dali as âncoras. / 66 /

(46) – A quarta propriedade da epopeia é que seja de êxito feliz; nesta parte não seguiu o nosso censor a Camões; pois o êxito de «Os Lusíadas» é a entrada de Vasco da Gama e seus companheiros pela Barra de Lisboa, trazendo ao rei a alegre noticia de deixar descoberto um novo império ao reino de Portugal. Veja Freir. Port. L. 3.º pág. 174.

(47) – Com efeito, é necessária uma paciência extraordinária para aturar de bom grado a filáucia e pedantismo de Macedo em abocanhar a merecida reputação de Camões. testificada geralmente pelo juízo dos sábios de todos os tempos e de todas as nações, e pelas inumeráveis edições de suas obras, abalançando-se a tratar o mesmo assunto tratado pelo corifeu dos poetas das Espanhas, proferindo que a sua epopeia é a menos defeituosa possível que compôs originalmente, que fechou todos os livros, etc., quando se nele se encontra alguma coisa boa é o que furtou a Camões. É de notar que o que Macedo censura em Camões é quase o mesmo que há muito censurou Voltaire, mil vezes refutado pelos críticos estrangeiros e nacionais: advertindo que ainda assim mesmo Voltaire pode ser desculpado; Macedo não o pode ser de maneira nenhuma. Voltaire ignorava a língua portuguesa. Macedo sabe muito bem a língua portuguesa; Voltaire serviu-se de uma tradução infiel, Macedo tinha à mão na língua materna as melhores edições e os melhores comentadores de Camões; Voltaire era um estrangeiro, Macedo é um nacional. Além de impolítico, mostrou nisto Macedo um grande descaramento.

(48) – O padre José Agostinho de Macedo sempre foi um abocanhador do merecimento alheio, e quer ganhar nome que passe à posteridade de um satírico mordaz.

(49) – Diz o nosso Macedo no seu «Discurso Preliminar», 98, que seguiu como Tasso a ordem natural da história desde a saída do herói até à sua entrada no Tejo. Que mentira! Qual é a oitava ou verso que o dá entrado em Lisboa?

(50) – Quem tiver alguma lição do poema de Camões e ler o Oriente, achará que aquelas belezas de Os Lusíadas, censuradas por Macedo como furto feito por Camões a muitos poetas foram também furtadas por Macedo, que costuma primeiro sujar a água que depois bebe: por isso bem lhe compete o nosso rifão – quem o alheio veste na praça o despe.

(51) – O nosso censor, no seu «Discurso Preliminar», pg. 96, atreve-se a dizer que tudo o que nos Lusíadas é bom, estranho, e que é fraco e fastidioso é próprio; apliquemos pois ao Oriente a mesma dose.

(52) – Poema original do reverendo Sr. José Agostinho de Macedo, em que magistralmente desenvolve todo o seu burrical estro, e que que cingiu a fronte de uma capela de cardos, que é o que os burros comem com fome.

 

páginas 51 a 66

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