O Padre Acúrcio Correia da Silva
nasceu no dia 22 de Outubro de 1889, no Cereal, da freguesia de
Oliveira do Bairro. Era filho de Abílio António da Silva e de
Conceição Ferreira de Jesus, modestos lavradores daquele lugar. Foi
baptizado, em 30 do mesmo mês, pelo pároco José Rodrigues Ferreira
Lopes, na freguesia de S. Miguel, de Oliveira do Bairro.
Fez o seu exame de instrução
primária no Liceu de Aveiro, com distinção. Em 1904, com 15 anos de
idade, entrou para o Seminário de Coimbra e foi ordenado de
presbítero em 1912, pelo Ex.mo Reverendíssimo Bispo Conde
de Coimbra, D. Manuel Correia de Bastos Pina, e cantou a sua missa
nova no dia 24 de Novembro do mesmo ano.
Pouco tempo depois, foi nomeado
pároco da freguesia de Sangalhos, concelho de Anadia, onde, desde
logo conquistou a simpatia de todos os seus paroquianos, que
choraram, saudosos, a sua morte prematura.
Dedicado às letras e ao estudo, com
vasta e variada cultura, poeta e prosador de relevantes predicados,
dedicou especial atenção à resolução dos problemas da Razão
metafísica e da Razão teológica
Publicou: «Dor e Luz» (verso
e prosa), 1912; Seroadas Fulvas (verso e prosa), 1915; e
Natal... Festa da Família (Carta de Boas-Festas aos seus
paroquianos), 1916.
Deixou várias obras inéditas, em
verso, e, bem assim, diversas produções teatrais e, dispersas,
numerosos escritos em revistas e jornais do primeiro quartel deste
século, mencionadamente Ideal, Ecos do Vouga, Prado, Soberania do
Povo, Povo de Águeda, Povo de Anadia, Povo da Murtosa e Gente
Nova, muitos dos quais subscritos pelo pseudónimo de «Sálcio
Bairrada».
«Homem de talento e de carácter
/.../ insinuante, afável, comunicativo, lendo-se-lhe nos olhos a
bondade da alma e a finura do espírito», dizia do Padre Acúrcio
Correia da Silva, referindo-se à sua morte prematura, um jornalista
insigne e tão pouco dado à lisonja, como era o veemente panfletário
Homem Cristo, que nem nos necrológios se coibia de exprimir o que
considerava a avaliação justa.
E o Sr. Professor Doutor Manuel
Rodrigues Lapa, outro alto espírito que se estrema no recto e agudo
julgamento, refere, então, a par da «união feliz da fealdade e da
simpatia irresistível», que «tinha a fé apaixonada do apóstolo, mas
ia robustecendo sempre e sempre a sua cultura». E aponta-lhe o livro
Seroadas Fulvas, como o livro mais bairradino da Bairrada.
Todos, aliás, lhe louvaram as
virtudes como sacerdote, de fecunda acção apostólica.
«Enternecia-se com os sofrimentos e
agruras», escreveu-se no «In Memoriam» que em 1959, quando da
inauguração do busto que consagra a sua memória em Oliveira do
Bairro, lhe foi dedicado por amigos e admiradores.
Fundou, assim, a Beneficência
Montepio de Sangalhos, em 1923, e com fins beneficentes promoveu
festas escolares na sua aldeia natal e na freguesia onde exerceu a
paroquialidade.
O Padre Acúrcio Correia da Silva,
faleceu, prematuramente, com 35 anos, a 25 de Março de 1925 e,
conforme se escrevia, ainda cinco lustros mais tarde «o seu funeral
constituiu a maior demonstração de pesar que jamais se viu em terras
da Bairrada!».
/ 17 /
AOS ANJOS DA POESIA
Ó anjos da poesia, ó cândidas
beldades,
Irmãs dos querubins, – ó núncias do
Céu,
Que me acenais ao longe, ao fundo
das idades,
Cantando heroicamente as velhas
potestades
Nas cordas triunfais da lira de
Tirtéu,
E soluçando doces, místicas
saudades,
Nas cordas pastoris da cítara de
Orfeu...
Que outrora, celebrando os feitos
dos guerreiros,
Em versos festivais, homéricos,
divinos,
Andastes a cantar p’los flóridos
outeiros
Da Grécia sonhadora, e à sombra dos
loureiros,
Sentadas nos ilhéus, dos golfos
azulinos;
E andastes a gravar na casca dos
olmeiros
Uns versos amorosos, brandos,
pequeninos...
Que voastes para a Itália, e
andastes com Virgílio
Por sobre o Mar Egeu, à flor das
ondas lisas;
E chorastes com ele as lágrimas do
exílio;
E lhe fechastes, morto, o veludíneo
cílio
daquele olhar, que viu tão largo sem
balizas...
E assististes, talvez, ao mágico
concílio
Das líricas vestais, das virgens
Pitonisas...
Vós, que inspirastes Tasso e o
formidável Dante,
Sentado a meditar ao pé das
catedrais,
Levando-o pela mão a ver a casta
amante,
A cândida Beatriz, que deslizava
hiante
Na trágica nudez dos giros
infernais...
Falastes com Petrarca à réstia
flutuante
Das noites de luar, das noites
medievais...
Que destes alma e vida aos versos de
Camões,
O indómito guerreiro, o excelso
trovador;
Que lhe inspirastes doces, trémulas
canções,
Nas grutas orientais, nos ermos, nas
solidões,
– Canções cheias de fogo e trágicas
de dor;
Vós que haveis insuflado aos grandes
corações
Os carmes da tragédia e os cânticos
de amor...
Ó anjos da poesia, ó cândidas
beldades,
De tranças luminosas, louras como o
trigo,
Que me acenais ao longe, ao fundo
das idades,
Cantando heroicamente as velhas
potestades
Na cítara de Homero – o olímpico
mendigo...
Eu canto o sofrimento, e as crenças,
e as saudades,
Ó líricas beldades ideais, sede
comigo!...
CAVADORES
Ao longe – vedes? – os cavadores,
Filhos do campo, filhos da leiva,
De olhos escuros e cismadores,
Olhos ingénuos de trovadores...
– Cantam os campos, cantam as
flores.
Cantam a seiva...
Por horas mortas (céu estrelado)...
Eles lá vão
Lavrar a terra, guiar o arado,
De olhar bondoso e resignado
Posto nos olhos do manso gado,
Posto no chão...
Vêm as chuvadas, as inverneiras;
Rugem os rios, incham ribeiras;
Alagam campos, alagam leiras...
Vede a desgraça!
Que há-de ele fazer? – De olhar
dorido,
Mal almoçado, pior vestido,
Senta-se à porta, esmorecido,
A ver quem passa...
Vem o calor do sol doirado
Queimar-lhe o pão!
Que há-de ele fazer, o desgraçado
Do lavrador? – Vai pró eirado,
De aspecto triste, de olhar pasmado,
Cismar na vida, descoroçoado,
Queixo na mão...
Estala a guerra; levam-lhe o filho.
Crescem os ratos, trincam-lhe o
milho...
– Oh! Forte praga de ratazanas! –
Branqueja a neve, ruge a nortada...
Lá vai a telha desmantelada
Das alpendradas mais das choupanas!
Ouvide ainda maior desgraça:
Tjnha uma filha, – que doce graça
De rapariga!...
Nas largas noites, junto à fogueira,
Lume bendito sobre a lareira,
Ela fiava (gentil fiandeira...)
O linho branco da sua estriga...
/ 18 /
Até ao tardo cantar do galo,
– Não imaginam – era um regalo
O pai velhinho vê-la fiar...
Rufam chuveiros fortes lá fora...
Ai! Anjo Bento! Nossa Senhora
Seja cos que andam a esta hora
Por sobre as águas turvas do mar!...
Ela era a vida da sua vida;
Ela era o lume do seu olhar,
– Lume bendito que n'alma brilha...
Como ele lhe queria – rola querida!
Nem temos nada que admirar,
Porque era filha...
Mas sucedeu que, em certo dia,
(Dia aziago... Ele nem podia
Pensar em tal de olhos enxutos!)
Passou por lá um rapazão...
(Grande patife I Grande ladrão!)
Leva-lhe a consolação:
Rouba-lhe a filha, e em troco,
então,
Deixou-lhe a dor, – só dor e lutos!
Malditos sejam os valdevinos
Que andam as jovens a desonrar!
Santos velhinhos, boas famílias,
Guardai dos lobos as vossas filhas
Dentro do lar...
Vede a desgraça enorme e crua
Do paciente lavrador!
– Triste batalha! –
Que há-de ele fazer? Que vida a sua!
Que há-de ele fazer na sua dor?
O Pai-do-Céu o ajude e valha!...
Bons lavradores! Chorando ou rindo,
Dizem que vida assim não há...
Vamos, rapazes, vamos subindo!
Deixai-os lá!... |