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N.º 2

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1966 

 

As “Janeiras”, as “Pastoras” e os “Reis”

 

Pelo Dr. António Tavares Simões Capão

Professor do Liceu Nacional de Aveiro

À memória de meus saudosos pai e

irmão, que tanto saboreavam as ingénuas

representações de carácter popular, dedico

eu este modesto trabalho.

 

 
 

Os Reis Magos a caminho do Templo.

 

/ 59 / Mesmo em épocas de agitação política em que a religião sofreu os seus reveses, o povo conservou mais ou menos firme as suas ideias religiosas.

O Protestantismo não criou raízes profundas entre nós e, de certo modo, isso foi causado pela grande devoção à Virgem, que, no seu papel de Mãe amantíssima, serve de medianeira entre Deus e os homens; por outro lado, pelo culto das Almas do Purgatório; por isto mesmo, a criação, através de todo o país, das Irmandades das Almas e das Confrarias e a construção tradicional das capelinhas ermas com o nome de «Alminhas» foram motivo de retenção das ideias tradicionais que não se sentiram abaladas nos seus princípios por outros ideais políticos ou religiosos. Orações singelas, mas revelando viva fé, passaram perpetuadas pelas gerações, através dos séculos, e ainda hoje as podemos encontrar entre as pessoas humildes do povo, por vezes numa amálgama ignorante de princípios cristãos e supersticiosos.

A Virgem, todavia, é invocada em todas as horas do dia desde o levantar ao deitar da cama, no começo e no fim dos diferentes trabalhos e em todas as circunstâncias. Ela é, na verdade, o arrimo forte a que o povo se segura nos seus transes, a quem recorre mesmo em primeiro lugar; Ela é Mãe e o seu Filho, mesmo sendo Deus, não lhe recusará um pedido. Está aqui o ponto de partida do seu ideal e da sua filosofia simples, mas compreensiva. Ê nesta relação familiar que o nosso povo baseia os seus pedidos de intercessão à Santíssima Virgem.

É, pois, nesta igualdade ingénua e modesta da família em geral com a Sagrada Família, que apoia a razão de todo o seu pensamento.

Ora, as circunstâncias em que nasceu Jesus, pobreza e humildade, vêm afagar a sua maneira de pensar e de agir; e toda essa época que marca o Nascimento de Cristo é uma época de esperança, principalmente para os mais desprotegidos; assim, como o Menino nasceu pobríssimo e foi presenteado, também o povo espera sempre alguma coisa com que alivie o seu desconforto; como o Menino recebeu a visita dos Magos com as suas ofertas, também os garotos, formando grupos, esperam de certas casas, alguma guloseima ou dinheiro com que possam festejar esse dia – As Janeiras.

Em princípio as «Janeiras» seriam cantadas no começo de Janeiro, portanto nas primeiras noites do novo ano; mas o dia seis está perto e celebra a visita dos Reis Magos à gruta de Belém; por isso as «Janeiras» se prolongam até ao dia de Reis, o que, em certas regiões do país, toma nome diferente, mas conforme com o dia – cantar as reisadas se diz então.

Esse facto bíblico da visita dos Magos, com as suas ofertas ao Deus-Menino recém-nascido, não sensibilizou só a classe popular como grande número de artistas de todas as categorias, de todos os países e de todas as épocas; a adoração dos Magos e dos Pastores está bem representada na pintura e na escultura.

Na Literatura Portuguesa, muitos autores trataram o assunto, quer enquadrando-o em obras clássicas, quer dando-lhe o tom afectivo e humano da maternidade.

Dentre eles, quero destacar três: Um, pela maneira sentimental, dolorosamente santa, como tratou a vida de Jesus de momento a momento, de angústia a angústia, até a maceração da sua própria existência, desde o ventre materno até à Ascensão – Frei Tomé de Jesus.

/ 60 / De facto «Os trabalhos de Jesus» são, em todos os momentos da vida de Cristo, representados pela pena de Tomé de Jesus numa sucessão de sofrimentos cruéis até ao desenlace do Gólgota; os sacrifícios do autor, prisioneiro dos muros no norte de África, por muitos e amargos que tenham sido, não se poderão comparar às angústias de Deus feito homem.

Mas Tomé de Jesus também nos conta a história dos Magos que vieram visitar o Menino, trazendo-lhe as suas prendas; fala-nos da recepção feita por Herodes, da sua hipocrisia e das suas perversas intenções; e ainda de que avisados em sonhos da malícia do Tetrarca, voltaram a suas terras por outro caminho (1).

Outro, levado pelo interesse de agradar, escrevendo um novo auto de feição popular também em castelhano como os primeiros que compusera – Gil Vicente.

Instado pela Rainha, que se mostrara satisfeita com as duas peças anteriores, compôs, para o dia de Reis, o «Auto dos Reis Magos». O argumento é simples: O pastor Gregório que tencionara ir a Belém, errou o caminho; surge outro pastor, Valério, com quem estabelece conversa que se prolonga com a chegada de um ermitão; mas a parte que de facto se liga ao tema surge-nos com o aparecimento de um cavaleiro árabe que acompanhava os Reis Magos, os quais representam no auto um papel de curta duração, pois somente aparecem no fim, cantando o seguinte Vilancete:

«Quando la Virgem bendita

lo parió,

todo mundo lo sentió.

Los coros angelicales

todos cantam nueva gloria;

los tres Reis la vitoria

de las almas humanales

en las tierras principales

se sonó,

cuando nuestro Dios nació» (2)

É também através da conversa entre o cavaleiro, o ermitão e os dois pastores que se sabe que apareceu uma estrela avisando os Magos, a qual era 

«... muy reluciente...

Y um nino en medio della,

muy mas que ella

relu ciente en gran manera:

uma cruz en su cimera

por bandera» (3).

Também no discurso que o Rei Baltazar faz junto da igreja no manuscrito dos «Reis» da Palhaça, o Menino nos aparece no centro da estrela que os guiou até Belém.

Resta-nos uma referência particular a Júlio Dinis, não só porque soube enquadrar numa das suas obras – «A Morgadinha dos Canaviais» – um auto dos Reis Magos com verdadeira mão de mestre, mas ainda porque o podemos considerar um escritor deste distrito. (4)

Em quase todo o país se cantam as «Janeiras», costume que é, sem dúvida alguma, muito antigo; em algumas aldeias do Minho fazem-se representações de autos populares em verso, cujo assunto tem por centro o nascimento de Jesus; recordo-me de um auto representado na vila do Prado, perto de Braga, sobre um estrado previamente preparado; noutras regiões fazem-se cortejos de «Pastoras»; noutras de «Reis».

Estes autos representados em estrado já são citados por Leite de Vasconcelos a propósito dos folhetos de cordel, quando ele afirma:

«O Auto dos Reis Magos» está bastante propagado na literatura de cordel. (5)

O mesmo autor cita ainda um folheto de cordel, que, publicado, trazia como autor Costa Nabiça, mas sendo refundição de textos mais antigos, onde há uma cena em que Herodes, ao darem-lhe a notícia da execução dos Inocentes a que nem o próprio filho escapou, «atira com a espada ao chão e, arrancando as barbas, foge gritando: ai que morreu o meu filho!» (6).

Cita ainda um «Auto dos Três Reis Magos» original de um poeta analfabeto – «O cego de Gôrda» – natural de Palmeira, Esposende, onde aparece também a fala de Herodes:

«Retira-te de mim miserável! Juro-te por estes bigodes

Que brevemente saberás

Qual é a justiça de Herodes».

Depois, a uma informação do Embaixador que diz que o Deus-Menino é nascido, Herodes, irado, responde: 

«Seja nascido ou não seja,

Suceda o que suceder,

Por estas barbas te juro

Ou'esse infante hade (sic) morrer». (7)

Para fazermos qualquer estudo sobre estes assuntos temos sempre que beber nesse grande / 61 / repositório de usanças e tradições populares de Leite de Vasconcelos – «Ensaios Etnográficos». Aí se encontra tudo quanto é possível coligir a um homem interessado e perseverante como foi o seu autor; os seus estudos sobre Etnografia são o produto de uma vida de exuberante lavor e de extrema dedicação aos estudos filológicos em Portugal; não devemos esquecê-lo e, pelo contrário, manuseá-lo com frequência.

Nos «Opúsculos», ao fazer o estudo da Linguagem popular de Guimarães, o autor cita duas quadras relativas à festividade dos Reis de cunho caracteristicamente popular:

«Quando o Santo José biu

Três reis em sua pousada,

Sua-i aul e ma ficou croada

E tãobéim seu coraçóum:

Logo preguntou à Virgeim:

– Sinhora-s qui homein'são?

Dai-Ie cr'ôua cuômo rei,

Q'i êles os três reis serão:

Milra cuômo sois mortais,

Que mais q'reis áu miêu menino?» (8)

Como estamos a ver, nestes versos assistimos à chegada dos Magos a Belém e à admiração de S. José que interroga a Virgem sobre os recém-chegados. A conversa passa depois a ser confusa, elucidando-nos somente acerca das ofertas que trazem ao Menino.

É próprio das composições populares este diálogo sem nexo, apressado e confuso, como podemos ver até nos textos dos Reis da Bairrada.

As Janeiras constituem uma tradição interessante, própria de certas regiões do país; a exemplo do Mestre muitos estudiosos se têm dado ao trabalho de não só recolherem as letras, mas ainda as respectivas músicas, por vezes ingénuas mas cheias de encanto.

Passo a apresentar uns versos que pude compilar e da maneira mais completa possível, de Electra deI Lima, concelho de Ponte da Barca:

 

                  I

– Quem são aqueles três Reis

Que vão no lado do rio?

– São os Reis do Oriente

Que vão visitar o Menino.

 

                  II

Nossa Senhora le disse:

– Ó meu Deus que vos farei?

Não tenho cama nem berço

Nos braços vos criarei.

 

                  III

Anginhos olhai p'ró céu

Que lá vireis uma cruz;

Lá vireis cama e berço

Par'ó Menino Jesus.

 

                  IV

Os três Reis do Oriente

Seguiram para Belém,

Guiados por uma Estrela

A Estrelinha do Bem.

 

                  V

Foram à casa de Herodes

Pró bem lhes encaminhar;

Herodes, como maldoso,

Tratou de os enganar.

 

                  VI

Eles, como eram Santos,

Seguiram o seu destino,

Por uma estrela guiados

'té chegarem ao Menino.

 

                  VII

S. José desceu cá'baixo

Acender um candeeiro,

Que Nossa Senhora teve

Jesus Cristo Verdadeiro.

 

                  VIII

Viva lá senhor F...

Quando põe suas correntes,

No meio da sua sala,

É dos homens mais valentes.

 

                  IX

Senhora dona de casa,

Quando põe o seu chapéu,

No meio da sua sala,

Parece um anjo do céu.

 

                  X

Esta casa é caiada

Mais por dente que por fora;

O senhor dê muitos anos

Aos senhores que nela mora(m).

 

                  XI

– De quem é aquele lencinho,

Que está ali no coradouro?

– É da menina F...

Que é bonita como o ouro.

 

                  XII

Viva lá, Senhora F...

Raminho de salsa crua;

Quando se põe à janela

Nace o sol e põe-se a lua.

 

                  XIII

Viva lá, menina F...

Raminho de bem querer;

Quando se põe à janela,

As pedrinhas faz tremer.

 

                  XIV

– De quem é aquele chapéu

Que está dependurado?

– É da menina F...

Que é bonita como um cravo.

 

                  XV

Viva lá, menina F...,

Casaquinho de veludo;

Meta a sua mão ao bolso,

Tire p'ra cá um escudo.

 

                  XVI

Viva lá, menina F...

Casaquinho de pinhão,

Meta a sua mão ao bolso

Tire p'ra cá um tostão.

 

                  XVII

Viva Já o senhor F...

Casaquinho de veludo,

Quando mete a mão ao bolso

Deita-nos sempre um escudo.

 

                  XVIII

Viva lá, o senhor F...

Com 'ma flor no chapéu

Quando vai par'à igreja,

Parece um anjo do céu.

 

                  XIX

Viva lá, menina F..., R

Aminho de palma branca.

Seu corpinho é de neve

Sua alma já 'stá santa.

 

                  XX

– Ó meu Menino Jesus,

Onde está teu sapatinho?

– Deixei-o em Santa Clara

Metido num buraquinho.

 

 

É este o conjunto de quadras, referentes às «Janeiras» mais completo que conheço; na verdade, há aí três partes distintas:

a) Uma introdução formada pela primeira quadra, disposta em diálogo, que nos indica o aparecimento dos Reis Magos. b) A história do pobre nascimento de Jesus, a angústia da Virgem, o encontro dos Magos com Herodes, o engano intencional do Tetrarca e a chegada ao seu destino, guiados pela estrela. c) Daqui em diante (quadras VIII a XIX) surgem os versos normais das «Janeiras», isto é, do elogio das pessoas da casa para receberem a consoada; o conjunto não tem propriamente uma quadra de agradecimento, se recebem alguma coisa, ou de repulsa, se nada recebem, mas termina por outra quadra disposta em diálogo, como a primeira, dirigida ao Menino Jesus, interrogado sobre o lugar onde se encontra o seu sapatinho.

/ 62 / Se depois de cantadas pelo grupo de reiseiros todas as quadras, os donos da casa não vierem abrir a porta e não derem qualquer coisa, eles terminam descantando-os; é interessantíssima a estância fixada em Trás-os-Montes pelo Abade de Baçal: 

«Estes Reis que aqui cantamos,

Tornamo-los a descantar:

Estes barbas de farelos

Não têm nada que nos dar

Só têm uma arquinha velha

Onde o gato vai mijar» (9)

Mas o grupo de versos varia de lugar para lugar e de concelho para concelho. Assim, em S. Julião de Freixo, concelho de Ponte do Lima, são só cantadas oito quadras baseadas no interesse que leva os grupos a andarem de porta em porta:

 

          I

Aqui estamos nós

Todos reunidos,

A cantar Os Reis

Aos nossos amigos.

 

          II

As Janeiras não se cantam

Nem aos reis nem aos fidalgos

Só se cantam aos lavradores

Porque dão malgas de caldo.

 

          III

Bendita a hora Bendita

Em que entrou na igreja do Senhor;

Bendita a hora também

Em que entrou co'a sua flor.

 

          IV

Viva lá, senhor F...

Um raminho c'uma cereja;

São os olhos mais bonitos

Que entram na nossa igreja.

          V

Viva lá, senhor F...

Casaquinho de veludo

Deite a mão ao seu bolsinho

Deite p'ra cá um escudo.

 

          VI

Viva lá, senhor F...

Cabelinhos aos anéis

Vale mais o seu cabelo

Do que três contos de reis.

 

          VII

A rolinha rola, rola,

Por cima duma cebola;

Viva lá, Senhor F...

A mais a sua senhora.

 

          VIII

Vamos dar as despedidas,

Boa-noite, até amanhã;

Vamos pedir ao Senhor

Que p'ro ano estejam cá.

 

  

A quadra n.º V é variante dos n.ºs XV, XVI e XVII do grupo anterior; e tem a mais a última que é o epílogo do canto, desejando um bom ano às pessoas da casa.

Resumindo, o assunto das «Janeiras» é sempre o mesmo através das aldeias, vilas e cidades, do Minho e Trás-os-Montes ao Algarve; o que varia é não só a música, mas também a letra, não só quanto à disposição, mas ainda quanto ao número das quadras. Possuo ainda letras de Álvora, concelho de Arcos de Valdevez; de Gulpilhares, concelho de Vila Nova de Gaia; de S. Paio de Merelim, Braga; de Duas Igrejas, Vila Verde; de Vieira do Minho; de Aveiro; e de Trás-os-Montes (sem indicação da localidade).

Todo este material aguardará outra altura mais oportuna, visto que o meu interesse de momento é dedicar-me aos «Reis» do Norte da Bairrada, que apresentam características bastante originais.

Já uma vez tentei estabelecer uma linha, na verdade sujeita a muitas correcções, que delimitasse a região da Bairrada pelo lado do Norte; geologicamente, a zona está estudada e conforme a constituição do solo, aparece-nos, dentro dessa linha, o vinho tipicamente bairradino; no entanto, zonas há em que se encontram vinhos diferentes, o que se nota, por vezes, numa só aldeia (10).

Não era meu interesse dedicar-me particularmente ao estudo desses problemas. Passei, portanto, de relance sobre o assunto para me dedicar mais ao estudo linguístico, etnográfico e folclórico dessa região em todos os seus aspectos e compus a minha Dissertação de Licenciatura, apresentada à Faculdade em 1959. Aí estudo certas aldeias muito antigas, como Soza, Ouca e Fermentelos, e outras que, por estudos feitos, são de criação muito mais recente, quando não zonas de infiltração do povo nortenho, atraído pela fertilidade dos terrenos e até por um ambiente de idêntica coloração. Aí, pois, defendo a influência exercida pelo norte, neste caso no seu sentido lato, e também por outras povoações situadas mais ao norte mas relativamente perto; é o caso de Ílhavo, povoação muito antiga que terá tido, como na verdade ainda hoje tem, uma grande influência sobre essa zona mais ao sul. Referi-me à linguagem e também ao característico modo de entoação, notável pela musicalidade das frases; e afirmei que a vila de ílhavo tem exercido até uma influência muito maior do que a própria cidade de Aveiro que se terá confinado muito à sua volta.

Pois bem, passemos ao folclore; é deste assunto que agora me quero ocupar, e dentro deste, do que diz respeito à Epifania.

Em todas as aldeias próximas de Aveiro se fazem por essa altura «Cortejos de Pastoras», simples, sem diálogo, em que os componentes somente apresentam os seus fatos garridos, com predominância minhotos.

No entanto, de aspecto mais complicado, de cortejos de oferendas para a Igreja ou Capela, ouve-se falar pela primeira vez em ílhavo, que parece ter primado com essas festas. Mas esse ritmo abrandou, ílhavo deixou de ter os seus Reis, e em contrapartida essa zona sob a sua / 63 / influência, passou a organizá-Ios. Assim passa a haver cortejo dos Reis em Soza, Ouca, Boco, Palhaça, Nariz e numa aldeia do Concelho de Águeda, mais interior, chamada Borralha, enquanto as zonas de influência de Aveiro, passam a ter cortejos de pastoras: Aradas, Quinta do Picado, Verdemilho, Quintãs, Costa e Póvoa do Vaiado, Oliveirinha, etc., etc., o que não quer dizer que, uma vez ou outra, também não façam cortejo dos Reis.

Actualmente, há uma aldeia em que essa festa se faz com grande luzimento, e deixa até de ter já o cunho inicial popular; os autores dos autos passaram a interessar-se pelo assunto e foram bebê-lo com mais interesse a obras consideradas clássicas, como a «Bíblia», «O Mártir do Gólgota» de Perez Escrich ou o «Ben Hur» de Lewis Wallace.

Qual o melhor Auto? É isso que nos propomos estudar.

Quando pela primeira vez tratei o assunto, afirmei que o arranjo utilizado na Palhaça, tinha sido baseado nos papéis de Ouca e de Nariz. Não me foi possível, na altura, comprovar a afirmação. É que estes manuscritos são avaramente guardados pelo autor que a ninguém os quer ceder; na Palhaça, consegui coligir praticamente tudo o que dizia respeito a esta festa, embora tivesse de vencer por vezes certos obstáculos. Esta retenção dos originais é motivada por aquilo a que eu costumo chamar política de aldeia.

Por felicidade, chegou-me às mãos um velho manuscrito dos «Reis» de Nariz, com o qual o da Palhaça tem bastantes semelhanças, diga-se mesmo que é o plano sobre o qual este foi feito; é, como se pode ver, muito simples e fácil de decorar. O da Palhaça é muito mais completo; antes mais solene; num e noutro há erros ortográficos e de sintaxe, mas não nos admira isso, pois foram pessoas pouco cultas que os compuseram.

Na Palhaça, apesar das muitas incongruências, tentam aproximar-se mais do natural do que em qualquer das outras aldeias citadas, não falando em Bustos, onde se peca por grande exagero.

Manuel Vieira Romízio, um velho criado de servir, amigo de ler livros de leitura, a «Rosa do Adro» e o «Amor de Perdição», guardou com grande cuidado esses papéis que Iogo se prontificou a emprestar-me; por isso, graças a ele, eu posso pôr ao lado dos escritos da Palhaça, os de Nariz, tornando assim possível uma comparação.

 

COMPARAÇÃO DOS PAPÉIS DA FESTA DOS «REIS DE NARIZ, DA PALHAÇA E DA BORRALHA» 

Disse há pouco que o original de Nariz deve ter servido de plano ao da Palhaça, e isso nota-se perfeitamente, fazendo uma leitura com os Originais, um em frente do outro. A estrutura do primeiro é a mesma do segundo, mas, enquanto naquele a simplicidade das formas do discurso e o tom natural e perfeitamente popular se mostram com evidência, neste nota-se um conhecimento mais profundo, embora por vezes incompleto, da história de Cristo; além disso, a fala das personagens é mais solene, mais própria das grandes peças de teatro... e, quando os reis falam, não se limitam a um pequeno número de palavras, mas fazem de preferência Longos discursos, ora com evocações histórico-religiosas, ora de interesse moral.

Estas são as diferenças que existem nos dois dos três textos que adiante reproduziremos, no seu sentido geral; mas outras há que passo a mencionar.

Logo no começo, no texto da Palhaça, há o diálogo entre o Anjo e o velho Simeão que nos elucida sobre o que vai acontecer e qual a razão da sua presença, ali.

Ora, no original de Nariz, nada há que nos indique os sucessos posteriores; o texto entra imediatamente com o encontro dos Reis Magos, deixando para segundo lugar a fala do Anjo que não faz parte de um diálogo como no outro texto, mas é um convite a todos os pastores e pastoras para o seguirem. Como vemos, não há dúvida de que o original da Palhaça começa com mais arte, obrigando os espectadores a presenciarem e a tomarem, desde o início, contacto mais íntimo com a peça.

Para mostrar a diferença de linguagem num e noutro texto, basta reproduzir a primeira interrogação no encontro dos três Magos:

Nariz:

Baltazar – Quem és tu?
 

Palhaça:

Baltazar – Saúdo-vos, Majestade, amigável e respeitosamente; que fazeis e onde vos dirigis?

Por este exemplo vemos, e não é necessário apresentar outro, pois numa leitura, ainda que / 64 / breve, muitos se podem tirar, que o tom natural da conversa quotidiana e simples é substituído pelo tom grave, solene da conversa aristocrática, embora, por vezes, o autor não saiba fazer corresponder os elementos de sintaxe devidos ao tratamento.

Outra diferença, que também é superior no original palhacense, encontra-se no texto, precisamente na altura em que os Magos deparam com o palácio de Herodes. Enquanto o texto de Nariz está conforme o que é actual, visto que o escravo do Tetrarca é representado pelo cabo da guarda do palácio, no texto da Palhaça aparece-nos esse escravo com o nome de Cingo, o egípcio favorito do cruel rei, e isto é, com toda a certeza, uma reminiscência da obra de Perez Escrich, «O Mártir do Gólgota».

Além disto, uma outra diferença se nota, entre os originais; enquanto no manuscrito da Palhaça, Herodes manda chamar os sábios doutores da Lei para que o elucidem sobre o nascimento do Messias, no texto de Nariz os doutores da Lei são substituídos pelo Secretário de Herodes que lê aos ilustres estrangeiros a lei que intima todas as mães de Israel a apresentarem no palácio os seus filhos até à idade de dois anos.

No texto da Palhaça, o assunto é um pouco diferente pois o primeiro doutor lê o seguinte:

«Senhor e grande Rei de Judá!

Está escrito, no cap.º XIV, do Vaticínio de Belém, nas Profecias de Daniel, que outra coisa é a Escritura, senão uma carta do Omnipotente aos homens!

Rogo-te que estudes e medites, cada dia, as palavras do teu Criador, aprendendo assim a conhecê-lo nelas.

Porque o Messias, prometido à terra, deve nascer em Belém de Judá, que, apesar de ser uma cidade sem importância, é considerada feliz entre todas as cidades».

E esta informação sobre o nascimento do Menino também é confirmada pelas palavras do segundo doutor:

«Senhor:

De Jacob nascerá uma estrela, no formoso céu da Galileia, onde David foi ungido rei; em ti, Belém, chamada Eufrates.

Tu és pequena, mas de ti sairá aquele que deve reinar em Israel, cuja geração teve princípio desde a eternidade».

Nota-se mais ainda: enquanto os discursos do texto de Nariz são feitos pelos Reis, junto ao palácio de Herodes (e isto tem muita importância, porque toda a gente que assiste os quer ouvir), no texto da Palhaça são feitos à porta da igreja, isto é, já com o Presépio à vista. Nesse caso, no original da Palhaça há, é certo, palavras que esclarecem a identidade de cada um dos Magos a Herodes; mas quase que, nessa altura, a cena cai no tom natural de curiosidade de saber. Somente Gaspar, dando de novo com a Estrela, se maravilha com o seu reaparecimento, falando algum tempo mais.

No texto de Nariz, Herodes enganou os Magos, indicando-lhes um caminho diverso; e é depois Baltazar, que, voltando ante as portas do palácio, lhe chama traidor, mentiroso e assassino de seu filho Antipas.

A peça, que termina junto do templo com grandes discursos no original da Palhaça, acaba no de Nariz, por três simples e mal feitas quadras, cada uma delas recitada por cada um dos Reis ao mesmo tempo que beijam o Menino-Deus; isto não está longe de modo como Gil Vicente termina o seu «Auto dos Reis Magos», simplesmente, neste autor, os Reis cantam o vilancete em conjunto.

Concluindo: o texto de Nariz é mais simples, mais aproximado da conversa popular de todos os dias, e, por isso mesmo, mais facilmente apreensível por todas as pessoas, que, pouco cultas ou mesmo analfabetas, podem tomar parte integrante na representação. Esta simplicidade facilita às personagens uma interpretação mais natural.

O texto da Palhaça, mais solene nas suas frases, mais elevado de pensamento e mais minucioso em certos pormenores, tem, de quando em vez, alguma coisa de pretencioso. Mesmo assim, a representação é mais aceitável sob o ponto de vista artístico.

Por tudo o que acabámos de expor, concluímos pela superioridade do texto da Palhaça, muito mais fora do vulgar.

Resta-nos agora chamar também a atenção para o manuscrito dos Reis da Borralha e para as respectivas influências ou interpenetrações, evidentes depois de uma ligeira comparação.

Assim, no manuscrito da Palhaça, o velho Simeão aparece no princípio e no fim; o seu diálogo com o Anjo introduz o auto, vindo imediatamente a seguir o encontro dos Magos. Na parte final, Simeão sente-se extasiado perante o Deus-Menino.

No de Nariz, esta santa figura de velho não aparece; o auto começa com o encontro dos Reis Magos, vindo a seguir um convite / 65 / da parte do Anjo aos Pastores, situação idêntica ao da Borralha. Neste também não aparece o velho Simeão; o auto é introduzido pela fala do Anjo da Aparição aos Pastores. E ainda neste manuscrito se topa com alguma coisa de diferente em relação aos outros dois: não se assiste ao encontro dos Magos que só revelam a identidade perante as perguntas de Herodes, à frente do seu palácio. No entanto, as falas dos Magos, nesta altura, são, nos três autos, muito semelhantes, quase iguais.

Mas podemos ainda apontar outras diferenças: no auto palhacense, aparece uma figura, Cingo, o escravo de Herodes, que aparece substituído, nos de Nariz e da Borralha, pelo cabo da guarda; aparecem também os dois doutores da lei, a quem Herodes pede esclarecimentos sobre o nascimento do Messias. Ora, no texto de Nariz, além do cabo da guarda, há o Secretário de Herodes que lê o Código da Lei na presença dos Magos, ao mesmo tempo que revela uma ordem a todas as mães para apresentarem os filhos até à idade de dois anos, no palácio, hipocritamente a fim de ser reconhecido o Messias.

No texto da Borralha, contudo, aparece uma nova personagem, o Doutor Rabi, a esclarecer os interessados sobre o lugar onde teria nascido Jesus; e além desta, e à semelhança de Nariz, um Secretário a ler o édito imperial com a mesma finalidade de avisar as mães de Israel. É ainda neste auto que surge uma nova situação, após o diálogo com Herodes: os Magos aparecem pernoitando sob uma árvore, sendo avisados em sonho da traição de Herodes, pela voz do Anjo que os guia até à igreja, à frente da qual os Reis não falam, o que acontece nos outros dois casos.

Estes cortejos dos «Reis Magos» têm vigor na Península Ibérica; recordemos certas cidades da Espanha, por exemplo Málaga, onde se prima pelo grande aparato folclórico, e onde os Reis distribuem brinquedos e rebuçados às crianças; de maior interesse é a tradicional «cavalgata» de Bilbau, preparada com interesse, mas antecipadamente; é no dia cinco de Janeiro, à tardinha, que se efectua a passagem dos Reis pela cidade, para levar às criancinhas necessitadas os presentes trazidos, simbolicamente, de terras longínquas. Isto, aliás, esteve na reprovação do Papa Pio XII, que quis acabar com esse costume por ser uma mentira armada à inocência das crianças (11).

(continua no número seguinte)

__________________________

NOTAS:

(1) – Frei Tomé de Jesus – «Trabalhos de Jesus», Porto, 1951, vol. I, págs 167-177.

(2) – Gil Vicente – «Obras Completas», vol. I, Lisboa, 1942, pág. 47.

(3) – Gil Vicente – Opus cit., vol. I, Lisboa, 1942, pág. 45.

(4) – Quanto à integração do auto dos Reis Magos na citada obra deste Autor, veja-se o artigo publicado no «Jornal da Bairrada», n.º 274, com o título «Aspectos de folclore em Júlio Dinis».

(5) – Leite de Vasconcelos – «A Barba em Portugal. Estudo de Etnografia comparativa», Lisboa, 1925, pág. 107, nota 2.

(6) – Leite de Vasconcelos – «A Barba em Portugal. Estudo de Etnografia comparativa», Lisboa, 1925, pág. 19.

(7) – Leite de Vasconcelos – Opus, cit., pág. 107.

(8) – Leite de Vasconcelos – «OpúsculO's» vol. lI, pág. 227.

(9) – Francisco Manuel Alves – «Memórias Arqueológico-históricas do distrito de Bragança», tomo IX, pág. 299.

(10) – António Tavares Simões Capão – «A Bairrada. Estudo linguístico, histórico e etnográfico». Dissertação de Licenciatura, inédita, Coimbra, 1959, pág. 63-65.

(11) – Informação dada por uma aluna da Escola de Agentes de Formação Rural, de Braga.

páginas 57 a 66

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