Acesso à hierarquia superior.

N.º 2

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1966 

 

José Estêvão e o seu fecundo aveirismo

 

Por Eduardo Cerqueira

Jornalista e publicista

 

Quando, no auge da veneração pelo patrício egrégio e no desbordamento panegirístico, por exemplo, Homem Cristo asseverava que Aveiro tudo devia a José Estêvão, decerto pecava por exagero flagrante de admiração e encómio. Habituámo-nos a contemplar mais essa libérrima e franca língua de prata, inveteradamente polemicante e demolidora de ídolos de pés de barro, na superlativação dos doestos e na cadência corrosiva das diatribes do que nas demonstrações de apreço e preito irreticentes. Todavia, o panfletário iconoclasta usava o mesmo ardor másculo a esfrangalhar o bonifrates que surdisse a empecilhar-Ihe o caminho árduo da luta e no louvor das figuras que entraram na galeria – aliás escassa da sua persistente simpatia e devoção.

Na circunstância, dizer tudo representava apenas um excesso de generalização. Os serviços prestados pelo tribuno à terra natal que, aliás, para além dos benefícios materiais alcançados por seu valimento, o tomara como modelo e patrono cívico representavam pela importância imediata e pela projecção no futuro, quase tudo quanto cabia nas mais altas aspirações da época. Assim haveriam de considerar-se quer em valor absoluto, quer cotejados com os de maior valia – e muito o foram – devidos aos demais conterrâneos, seus afeiçoados ou seus antagonistas.

O simples enunciado que figura numa das quatro inscrições do pedestal da estátua erguida à sua memória tutelar pelo férvido sentimento de veneração dos seus patrícios – «melhoramentos da barra, liceu, caminho de ferro, iniciação da viação pública» – atestam, concludente e incontroversamente, os problemas de primacial relevo para o progresso de A veiro, de que foi o incansável, denodado e vitorioso paladino.

Por demais se conhece o calor, a força persuasiva de esclarecimento e apostolização, o aliei ante e desinteressado / 39 / empenho – da mais escorreita isenção foi, inalteravelmente, toda a sua vida pública intemerata e ardente

que consagrou à defesa da passagem da via férrea por Aveiro. A luta travada para atingir esse objectivo e que não só se dirigia a vencer graníticas rotinas, a convencer os cépticos e a desmascarar os mal intencionados, mas afectava os interesses da firma a que fora confiada a construção da linha, anda narrada por diversos escritos.

O empreiteiro poderoso, homem de reduzir a cifras os pesos de consciência e de medir por bitolas auríficas a sua e as alheias, julgou poder calar o bairrismo de José Estêvão e as convictas disposições de propugnador impoluível de uma causa justa, tentando a sua mediania com uma fortuna, que ele sobranceira e indignadamente repeliu. Luís de Magalhães, na esteira de outros trabalhos biográficos sobre o seu venerado pai, alude ao episódio em breves linhas, de um traço incisivo lhe realçando o significado: «Conta-se que Salamanca tentou suborná-lo para que não insistisse no traçado do caminho-de-ferro do Norte, que levava essa linha por Aveiro. Ouvi-o dizer muitas vezes, e ouvi, até, contar que o emissário espanhol tivera de galgar rapidamente as escadas para não receber senão em palavras a recusa da sua afrontosa resposta». (1)

Nem só, porém, com o construtor da linha teve de haver-se. Outros interesses se moviam, sub-reptícia e cavilosamente, procurando tramar o malogro da sua aspiração. Ele próprio o comunica ao ministro competente, numa carta em que começa por ventilar a questão vital da prosperidade aveirense: «Esta obra para mim nem é igrejinha política, nem preocupação de terra natal. Interessa à economia geral do Estado». Tratava-se do problema da barra, que «merecia ser observada por quantos pudessem concorrer para a melhorar».

Segue logo ao assunto que, de momento, mais lhe ocupava a atenção, «cai», para usar a sua própria expressão, na questão do caminho-de-ferro, principal objecto que o impelia a escrever em busca de escora segura para a obra que o apaixonava. A Companhia já se inclinara para a «linha de Aveiro», que outra não poderia preconizar sem prejuízo da exploração e sem praticar uma acção iníqua – qual seria a de desviá-la do seu traçado natural.

Acautelava-se, e prevenia-o, contra as pequenas malevolências, tão frequentes, apelando para o patrocínio do estadista e, assim, tentando não só evitar uma injustiça para os povos da sua região, mas também esperando que o traçado do caminho-de-ferro na parte respeitante à sua terra merecesse um parecer técnico desapaixonado – aliás, «num assunto que de sua natureza é alheio a paixões».

Causas pouco lícitas, mesquinho espírito oportunista de aproveitar a maré e dela tirar provei to impeliam os seus contraditores: «Quer saber que motivos decidiram esses cavalheiros? – Perguntava, entre risonho e severo. «Custa a crer, mas é verdade. Compraram uns pinhais numa certa direcção e querem levar por eles o caminho-de-ferro para ganharem na madeira! Tenho disto bastantes provas, e do mesmo estofo são pela maior parte as razões dos oponentes a que a linha férrea passe por Aveiro». (2)

O problema portuário aveirense, como esta carta já comprova, tem em José Estêvão um advogado porfiado e atento. Rocha e Cunha (3) releva-lhe essa faceta de esclarecido e acendrado / 40 / aveirismo: – «paladino austero e esforçado das reivindicações económicas da sua terra, legou-nos, a par da nobilíssima tradição liberal, tolerante e justa, que entre nós acaba sempre por dominar os espíritos conturbados pelas paixões políticas, as realizações basilares de uma política económica inspirada no mais puro ideal de paz, prosperidade e felicidade pública».

Sob o seu impulso, como observa o mesmo probo e estudioso autor, se criou a corrente de opinião de que viria a resultar, em 1858, a criação da Junta Administrativa e Fiscal das Obras da Barra – antecessora longínqua da actual Junta Autónoma do Porto de Aveiro. A orientação técnica desse organismo seria confiada a uma das mais conceituadas figuras da engenharia do tempo, Silvério Augusto Pereira da Silva, pouco antes vindo para Aveiro e em circunstâncias a que não foram estranhas a influência e o bairrismo do insigne parlamentar aveirense.

Já em 1853, para citar apenas um facto concreto, José Estêvão demonstrara a atenção que este capital problema lhe merecia. Na sessão da Câmara dos Deputados de 17 de Junho, na sequência de diligências anteriormente efectuadas junto dos membros do gabinete, requereu «que o governo enviasse à mesma Câmara uma cópia do contrato celebrado em Londres para a construção de uma draga destinada às obras da barra de Aveiro».

Na mesma sessão, apresentou dois outros requerimentos, que, apesar do seu carácter genérico, eram inspirados flagrantemente, nas condições e necessidades verificadas na sua região natal. Neles formula uma petição ao governo para que, no intervalo das sessões certamente devido ao período de férias que se acercava – estude os meios de estabelecer creches nos distritos marítimos, e assim, naturalmente ocorra às dificuldades em que viviam as classes piscatórias; e o modo de plantar pinheiros nos areais - providência que só viria a tomar-se algumas dezenas de anos mais tarde.

Noticiando esta diligência do conterrâneo ilustre e devotado e pondo em relevo os benefícios que dessas iniciativas se podiam lograr, escrevia então «O Campeão do Vouga»: (4)

«Damos ao Sr. José Estêvão os nossos sinceros agradecimentos. S. S.ª provou aos seus patrícios o quanto sabe ser generoso, e que, quando se trata do bem do seu país, e em especial do da sua terra, até se esquece da ingratidão dos que lhe devem finezas e consideração. Guerreado nas últimas eleições, e acusado de se ter esquecido dos interesses da sua terra, S. S.ª, que sempre a amou, e que dela se lembra incessantemente, deu uma convincente prova de que ele é, e será enquanto viver o advogado dos interesses de Aveiro, como ele é o seu mais distinto filho».

Em dois passos do minucioso relatório que por essa altura apresentou à Junta Geral do Distrito, e onde tantos e tão valiosos elementos de informação se podem recolher para o estudo desse período realentador da vida regional, também o governador civil de então, Antero Augusto da Silveira Pinto, realça a importância das propostas apresentadas, e promulgadas como leis, e a constante e frutuosa devoção de José Estêvão ao progresso da sua terra.

O íntegro e operoso magistrado distrital, que, conforme assinalaria no seu necrológico um hebdomadário local muito parco em elogios, (5) «deixou o sinal indelével de uma administração enérgica» e, «terror dos bandoleiros, era também o espectro dos crapulosos / 41 / enfronhados num pedantismo alvar», refere-se no primeiro desses trechos à projectada construção do edifício para o liceu. Na comunicação que trazia àquele corpo administrativo informava que graças às «instâncias de um digno Deputado da Nação, filho d'esta Cidade, o Sr. José Estêvão Coelho de Magalhães, /.../ orçamento, e planta, devidamente elaborados, já foram enviados à competente Estação Superior». (6) Sobre este assunto nos deteremos mais adiante.

Quanto à importância da nova iniciativa do solícito propugnador dos interesses aveirenses escreve textualmente: «Resta-me, Senhores, dar-vos conhecimento da Lei de 7 d' Agosto p. p. pela qual o Governo de S. M. foi autorizado a contrair um empréstimo até à quantia de 100.000$000 rs., para ser aplicado a acabar as obras da Barra a fazer uma estrada que ligue a Barra com a Cidade a comprar um vapor para o serviço de Pilotagem na Barra – a semear pinhaes nos areaes deste Districto – e a fazer na ria os trabalhos necessários para que se possa estabelecer a navegação a vapor entre Aveiro e avaro «Já haveis de saber, Senhores, que a proposta desta Lei, fecunda origem da prosperidade para esta Cidade e seu Districto, foi apresentada na respectiva Camara pelo distincto Deputado, digno filho desta terra a quem já tive a satisfação de referir-me o Sr. José Estevam Coelho de Magalhães , cuja superior intelligencia e desvelada dedicação pelo bem deste Districto, comprehendeu e conseguiu, que em uma só Lei fosse consignado um grupo de disposições, qual mais vantajosa para esta localidade» (7).

Ficaria no papel e nas boas intenções a generalidade dessas providências, até melhor ensejo ou circunstâncias supervenientes as tornarem dispensáveis. Patenteiam, porém, de modo inequívoco, a clarividência de José Estêvão e plenamente justificam que o governador civil – o Dr. Antero, como era vulgarmente conhecido – num momento de confiada e jubilosa expectativa, louvasse com caloroso reconhecimento o grande impulsionador do desenvolvimento da economia regional: «Honra pois, Senhores, e gratidão eterna ao nobre Deputado, auctor de uma lei tão fecunda em benefício para este Districto».

Na mesma sessão legislativa, como já ficou referido, o diligente e prestigioso procurador das reinvindicações aveirenses, pois não se sentira desobrigado dessa missão, que lhe era tão cara, pela circunstância de ser então deputado por Lisboa, apresentou um outro requerimento, pedindo: 1.º – Que o Governo mandasse fazer a planta e orçamento de um edifício para estabelecer o liceu do distrito de Aveiro, tendo por adjunto a biblioteca pública, que estava decretada para essa cabeça de distrito; 2.º – Que mandasse consultar as autoridades para verificar se as ruínas da Albergaria de S. Brás eram o lugar mais próprio para o liceu; 3.º – Que o Governo escolhesse dos edifícios nacionais, que em Aveiro eram destinados para diversos eerviços da repartição militar, os que se pudessem dispensar com as melhores condições para se estabelecerem as cadeias e tribunais; por forma que o edifício satisfizesse às condições que as ideias humanitárias, a filosofia do direito e as prescrições que o código penal indicava em construções daquela espécie».

O terceiro parágrafo só viria a ter concretização recente, como se sabe, quer quanto à cadeia comarcã, quer, sobretudo quanto, à «Domus Justitiae».

/ 42 / Os dois primeiros, todavia – salvo no que respeita à biblioteca pública, criada e instalada por alturas das celebrações centenárias da revolução liberal de 16 de Maio de 1828 – vieram a efectivar-se ainda em vida de José Estêvão e mercê da sua inabalável perseverança.

Com efeito, o aproveitamento das ruínas da Albergaria de S. Brás para o edifício do liceu, que José Estêvão preconizava, veio a verificar-se pouco mais tarde, com o correspondente abandono do propósito, que redundava por certo em economias, mas tinha os evidentes defeitos das adaptações, de o instalar definitivamente nas dependências do convento de Santo António, onde por alguns anos funcionou.

A Albergaria de S. Brás fora fundada, no século XV, por Fernão Vaz Agonide, contador-mor de D. Duarte e D. Afonso V, que para sua manutenção legou, à morte, todos os seus avultados bens. Destinava-se a obra a dar pousada aos passantes, mais particularmente a romeiros que do sul do país se encaminhavam para Santiago de Compostela, (8) e deveria dispor de seis camas para dar pernoita a viandantes pobres, a quem, no caso de ser necessário, se forneceriam medicamentos e ministraria tratamento adequado.

Os sucessores do fundador, segundo informa o memorialista José Ferreira da Cunha e Sousa – de quem colhemos algumas referências àquela instituição beneficente – e como pode comprovar-se por uma diligência efectuada, nos princípios do século passado, pela Câmara Municipal junto do então administrador dos bens legados pelo instituidor, o barão de Vila Pouca – que fez ouvidos de mercador – continuaram a arrecadar as rendas, mas, pouco a pouco, foram-se dispensando de cumprir as obrigações inerentes. As construções da Albergaria, que deixaram de ser utilizadas, já pelo abandono a que as votaram os administradores, mais atentos a benefícios que a escrúpulos de consciência, já porque a corrente de peregrinos para o túmulo de Santiago decrescera consideravelmente, foram-se assim, arruinando de maneira crescente e, na época a que nos reportamos, já não existiam mais do que as velhas e robustas paredes a desmantelar-se morosamente.

A construção do edifício para o liceu, que, em 1875, Marques Gomes poderia ainda considerar, no «seu género, o primeiro de Portugal» (9), não teve imediato início, apesar das instâncias de José Estêvão, que não mais abandonou o assunto, apadrinhado com tanto entusiasmo. Claramente testemunham o empenho que o devotadíssimo aveirense consagrou à consecução deste melhoramento, as informações que lhe presta Rodrigo da Fonseca Magalhães, ministro do Reino à data, sobre o assunto pelo qual com tanta solicitude pugnava.

O astuto rábula das artes políticas que era Rodrigo da Fonseca – a «Raposa», como era apelidado pela consumada habilidade com que tramava as artimanhas e usava dos expedientes esse céptico e acabado simulador que estabeleceu a prática regra de que «os deputados, como as casas, se compravam depois de feitos» – desdobrava-se em atenções no intuito de cativar José Estêvão, que, embora com algumas reservas, dava o seu apoio ao governo. «Considerava, segundo ele dizia, a situação política da regeneração como uma empreitada de obras públicas, como tal merecedora de amparo e estímulo. O combativo parlamentar «adquirira a convicção da boa fé política de Rodrigo da Fonseca, dos intuitos liberais do seu carácter e dos sentimentos democráticos do seu coração». (10)

/ 42 / A ele se dirige, dada a sua preponderância no ministério e a correcção do seu procedimento. E dele recebia, em carta de 6 de Dezembro desse mesmo ano de 1853 (11) uma animadora informação:

«Tenho presente quanto me diz sobre o Lyceu: não abandono a ideia da Albergaria, mas tendo entendido que ao Engenheiro pertencia a escolha, e que a obra seria feita pelas Obras Públicas não quis teimar na primeira ideia – Continuará V. E. a ser meu amigo porque eu vou esforçar-me activamente para que a Albergaria seja transformada em Lyceu com absoluto abandono da tenção de o colocarmos em casa de frades ou freiras».

Apesar de o governo ter tomado uma deliberação sobre o assunto, haveriam de arrastar-se os habituais e morosos trâmites até se atingir a fase de realização da obra. Esta, na verdade, só viria a ser determinada por uma portaria, de 5 de Março de 1855, subscrita por outra proeminente figura da regeneração – António Maria Fontes Pereira de Melo – que, como veremos, desde início vinha intervindo no caso.

Cerca de quatro meses depois, dava a Câmara Municipal o alinhamento, não só para o edifício do liceu, mas igualmente para o do teatro, que haveria de lhe ficar contíguo (12), e para cuja edificação adquirira, pouco antes, uma casa pertencente à família de Mateus José de Freitas Guimarães.

José Estêvão, porém, não descansara com a acalentadora comunicação, e insistira na pretensão preconizada com Rodrigo da Fonseca. Este, em nova carta, escrita nove dias depois da que referimos e transcreveremos, no final, integralmente, pois todo o contexto se reveste de relevante interesse e permite penetrar nos bastidores da política dessa interessante época dá-lhe conhecimento da marcha que iam tomando os negócios não só do liceu, mas de teatro.

Quanto a este, diligenciará junte de Fontes para autorizar a Câmara Municipal a vender o terreno anteriormente concedido para aquele fim, e a destinar o produto da venda à construção no local julgado mais conveniente, isto é, no prolongamento do projectado edifício do liceu. Mostrava-se, mesmo, pressuroso em obter deferimento para a pretensão.

No respeitante à edificação, fornece-lhe notícia de renovadas diligências, que repetiria, para alcançar definitivamente a ordem necessária à concretização dos dois objectos.

Como é natural, José Estêvão não deixou de acompanhar, dia a dia, o andamento quer das providências preliminares, quer, depois, da própria construção. Três semanas antes da inauguração do edifício – verificada a 15 de Fevereiro de 1860 – escrevia ainda ao reitor, Francisco José de Oliveira Queirós. Dava-lhe instruções, que julgava convenientes para prevenir eventuais contratempos, para promover a compra imediata de mobiliário, «visto q.e d'a mobília q.e prezentemente se axa no Convento de Sant' António, onde ora são as lisoens» – dizia uma acta do Conselho Escolar daquele estabelecimento de ensino secundário, de 10 de Novembro de 1859, com um completo desprezo pelas regras ortográficas que hoje causará certo espanto – e o mais serviso pertensente ao Liseu, nenhuma corresponde à grandeza do novo edifizio, antes servirá para d'algum modo o deturpar». Recomenda-lhe, pois: «Logo que o lyceu estiver prompto, mettão-se de dentro, e dá parte d'assim o teres fei to ou estás em vespera de o fazer» (13).

/ 44 / Dos serviços à cidade – e à região – prestados por José Estêvão, mencionados no pedestal do monumento que consagra a sua memória e permanentemente a reaviva no espírito dos aveirenses falta apenas a referência à iniciação da viação pública.

Também numa carta para um influente homem público da época – que não só por méritos próprios, mas por ser marido da inspiradora das Folhas Caídas, de Almeida Garrett, hoje se recorda – o visconde da Luz – se poderá documentar a acção desempenhada nesse sector, por aquele a quem Castilho chamou o Cícero português e que foi, irrecusavelmente, o grande propulsionador do progresso regional, no seu tempo.

Como se poderá ver da textual transcrição – que igualmente fazemos no final destas notas – desse outro valioso espécime do espólio epistolar deixado por José Estêvão, aí lhe responde o cotado político, que dispunha de prestimosas relações nos departamentos do Estado e no próprio Governo – de que ele mesmo fez parte duas vezes – ao interesse que lhe manifestara, em fins de 1861, o eminente deputado por Aveiro pela construção da estrada para Albergaria e da ponte de Ílhavo.

Esta, ao que parece, haveria de construir-se num regime a que hoje chamaríamos de comparticipação. A Câmara concorreria com uma parcela, maior ou menor, pois os duzentos contos votados para melhoramentos não bastariam para ocorrer às petições apresentadas, e muitas das obras requeridas eram consideradas de âmbito municipal. Entretanto, o assunto fora correndo a sua marcha, desemperrado pela solicitude do patrocinador e já do Conselho Superior de Obras Públicas aguardaria sanção.

A estrada de Albergaria, essa, já obtivera a aprovação daquele alto organismo e encontrava-se na fase de se promover a elaboração do projecto definitivo.

Como sucede com a carta para Rodrigo da Fonseca que atrás referimos, igualmente nesta se verifica que José Estêvão, então no auge do prestígio e requestado tanto pelos desprotegidos como pelos próceres, patrocinava numerosas e as mais diversas pretensões.

O nome do visconde da Luz está porém, ligado a um outro melhoramento que na terminologia actual se designaria também como rodoviário – a estrada da Gafanha.

José Estêvão alcançara do governo a respectiva aprovação. Tinha como que uma presciência do que viriam a representar certas obras no fomento económico e demográfico. A generalidade dos seus contemporâneos, às vezes por malevolência, mas quase sempre por se cingir e apegar demasiado a realidades de momento que constituíam frágeis e enganadoras premissas, não acreditava no papel impulsionador dos caminhos de ferro e das estradas. Marques Gomes, ainda em 1875, doze anos depois da inauguração da estação do caminho de ferro de A veiro, não encontrara quaisquer benefícios na passagem da via férrea pela terra a que tão minucioso estudo dedicou – mal imaginando que ela viria a estar compreendida, se não logo, pouco mais tarde, entre a dezena das de maior tráfego ferroviário de todo o país.

Agora, porque a Gafanha dos meados de oitocentos era apenas uma grande extensão de pinhal e areia estéril, quase desabitada, a estrada era classificada pela oposição indígena como uma superfluidade. Pouco importava que servisse a Costa Nova do / 45 / Prado, onde se haviam instalado companhas de pesca que, com as de S. Jacinto e da Torreira, abasteciam a região e, por intermédio dos antecessores do imorredoiro «Malhadinhas» – Aveiro vai, Aveiro vem! – as longínquas terras da Lapa, onde nasce o Vouga, e seu derredor.

Já o negócio do pescado atraíra mesmo para a praia – que começara apenas a conquistar as predilecções de escassos veraneantes, como a família paterna de Eça de Queirós – o visiense Manuel de Moura Marinho, que ali mandou construir, e depois vendeu ao tribuno aveirense, o conhecido «palheiro de José Estêvão».

Pouco importava que desse acesso à barra, num período promissor de revitalização, nem se sonhava que a Gafanha viria a ser um dos casos mais extraordinários de colonização espontânea realizados no país, graças ao moliço e ao suor e à pertinácia da gente que ali se fixou.

Afirmava-se, sim, com evidentes intenções de maledicência, que José Estêvão apenas defendia a construção da estrada para sua própria comodidade. O Campeão das Províncias, que passara a hostilizar algum tempo antes aquele a quem, na sua primeira fase, aclamara como «o advogado dos interesses de A veiro e o seu mais distinto filho», aproveitou o ensejo para uma acerba e ruidosa campanha contra a obra e o seu patrono.

O visconde da Luz veio certificar-se por seus próprios olhos das razões que militariam a favor da construção ou da sua desnecessidade, apregoada em alta grita pelos foliculários locais que se opunham a José Estêvão.

Joaquim de MeIo Freitas relata o episódio que convincentemente determinaria as conclusões do ilustre visitante, (14) com o bom humor e a elegância que lhe eram habituais:

«Embarcaram no cais, e fizeram-se ao largo. Neste instante o vento desencadeia-se, as marés agitam-se em balanços desesperados; o barco dançava sobre a espuma da ria, e o mastro, curvado pelo vendavaI, gemia e estalava com o impulso cego das lufadas. A chuva desatou-se por fim em torrentes, e não tardou uma trovoada medonha.

O visconde da Luz ordenou imediatamente aos barqueiros que voltassem para traz porque não gostava da chuva nem do temporal. José Estêvão, a cada relâmpago que alumiava o céu, brusco e temeroso, esfregava as mãos de contente e dizia com esplêndida alegria:

– Encomendei-o de propósito; eu desejava que você se convencesse de que a estrada era precisa e até urgente... Desminta-me agora se é capaz!

A encomenda era o temporal»

«Dentro em pouco – prosseguia – procedia-se à construção da estrada», da estrada que chegou a registar, há meses, em vinte e quatro horas, num domingo de verão de 1965, um movimento de cerca de seis mil veículos automóveis.

Referiremos apenas mais um serviço prestado a Aveiro por José Estêvão – a criação de um asilo para a infância desvalida, no ano anterior ao seu falecimento.

Esse estabelecimento, que se seguiu à fundação do Asilo de S. João, em Lisboa, também por sua iniciativa, está na origem do actual Asilo-Escola, mantido pela Junta Distrital e a que este corpo administrativo tem dispensado desvelado carinho, e foi instituído mercê de um donativo da colónia portuguesa, do elevado montante, para a data, de 1263$400 reis.

/ 46 / Foi instalado em algumas dependências do extinto convento de Santo António – onde, como vimos, funcionara o liceu – cedidas para esse fim, pelo Ministério da Guerra, a solicitação do fundador dessa obra de assistência.

Apontados sem pormenores demasiados para uma notícia desta natureza, cremos que os factos referidos constituem prova sobeja de que José Estêvão não era apenas o mais distinto filho de Aveiro, mas também o mais prestante, e, assim, que o culto consagrado pelos seus patrícios à sua memória exemplar tem a mais plena e lídima justificação.

– ● –

Lisboa 15 de Dezembro

Meu bom amigo

Respondo às suas de 9 e 11 do corrente. Não tive a mesma demora em dar andamento aos dois neg.os do theatro e do Lyceu.

No dia 11 pedi ao Fontes que desse licença à Camara d'Aveiro para vender o terreno concedido com o intento theatral a fim de que o seu produto servisse à compra do edifício em local apropriado.

E fiz ver a necessidade que eu tinha da opinião do Min.º das Obras públicas p.a mandar passar o Decreto.

Espero que hoje venha a resposta; e o diploma será expedido amanhã.

Pelo que respeita ao Lyceu approvei um dos planos que me parece melhor do que o outro, mas não entendendo certos detalhes do alçado disse às obras P.as que fizessem o seu juízo; e achando era mal assente decidissem, porque eu me sugeitaria a melhor opinião.

Como o Fontes em ofl.o anterior a esta minha decisão me aftirmasse que mandaria acabar os trab.os no sentido do projecto que eu aprovasse, intendi que bastaria isto para dar começo à obra.

Vendo porem que assim não aconteceu, escrevi-lhe e disse-lhe depois que não demoras se com isto mais a ordem necessaria para os dois objectos; e não o deixarei em q.to não partir a dita ordem.

Resta-me o que pertence ao Sousa Lobo, unico assunto da sua carta de 11.

Eu não sou affeiçoado ao Sousa Lobo? Nem desaffeiçoado – Nunca tive occasião de manifestar-lhe affecto ou repugnancia. Como g.or civil seria a meu ver inconveniente – outra coisa não podia elle ser feita por mim.

Soube, não mui particularmente que o Frederico não se atrevera a dar-lhe não sei que logar – Creia me que não tive a minima p.te nisso; mas sabendo que não podia deixar de ser o procedimento do Nog.a comigo fundado em razão, porque o conheço intendi que bem fazia em escolher melhor, se melhor havia por onde – Isto sem relação a nenhum motivo pessoal. Se eu posso fazer alguma coisa ao Lobo de quem como V. E. me condoo deveras – diga-me. Bem sabe que eu tenho sincero desejo de o servir, porque sou seu Amigo, e porque lhe devo finezas feitas generosamente.

Ainda me resta o padre de Alcobaça – Quando ele me entregou uma carta do Marechal tinha eu para fazer o empenho dado o logar a um homem digno recomendado pelo Rei D. P. homem egresso, antigo capellão d'armada constitucional-liberal e homem m.to desattendido – Rogava um subsidio para o Estado, e o individuo ia amparar uma família que delle depende – O padre é das vizinhanças da Nazareth –

Em momentos de mau humor recebi a carta que era a quarta ou quinta que o D. me escrevia; e creio que não fui agradavel ao portador, a quem disse que não trajava como clerigo, tendo-lhe perguntado se o interessado era elle – Desenganei-o de que estava provido o logar, e não obstante escreveu a V. E. para interceder por elle – Eu falei-lhe a verdade como a escrevo aqui.

Pelo que toca ao Thomas de Carvalho bem vejo que elle está mal commigo – Deus e eu sabemos quem tem razão.

O que se passou com o Candidato não proveio de Frederico – este nem em tal diabo me falou nunca – O assumpto foi prematuro de nós ambos.

Entrou o g.or civil como V. E. sabe, e pela razão que sabe.

Os candidatos dos outros circulos à excepção de Coimbra não os indiquei a ninguem.

Os alliados do Seabra nunca foram meus – Mandei dizer ao g.or civil de Coimbra que queria antes perder vinte eleições do que incorrer na suspeita... (15) influindo assassinos: nada mais / 47 / – V. E. não pode duvidar que eu sempre tenha procedido assim.

Apesar da minha apregoada devassidão politica nunca podia descer à baixeza do meu ex-collega. Declarei solemnemente que se viesse como deputado Brandão, o dia em que recebesse a noticia da façanha seria o ultimo da minha ministrice – nem à Camara me atreveria a ir esta sessão.

Am.º não me descuido das suas cousas que sempre reputarei m.as proprias.

De V. E.

Am.º do C.

R. F. Magalhães

– ● –

Amigo

Ha muito tempo, e ainda mesmo antes da morte do nosso bom rei, recebi duas cartas suas, pelas quais nos fazia arguiçoens e nos pedia couzas; em quanto às arguiçoens como eram menos exactas, não foi cazo, porque aquillo de que se queixava estava já feito, e mais se havia de fazer; em q.to aos pedidos falei com o Horta, e elle disse-me: como elle vem a Lisboa aqui trataremos de tudo – como efectivamente o esperava a cada momento eis os motivos porque lhe não respondi.

Respondo à sua ultima de 18 do passado, e tem razão de se queixar mas faça-o de si.

Algumas obras desse e de outros distritos são consideradas municipais, para as quais foram votados os 200 contos; o Ministro tem as do distrito de Aveiro, e de outros por resolver; bastantes vezes o tenho atormentado, mas elle não resolveu, e eu não sei qual é o seu pensamento a este respeito; suponho que quer que as camaras concorram com uma parte do custo das obras, na conformidade do que se acha na proposta de lei, q.e ficou por discutir –

A ponte de íhavo está no mesmo cazo, neste momento. Não lhe posso responder couza positiva, mas parece-me q está no conselho; amanhã indagarei –

A estrada de Albergaria já está resolvida no conselho; o João Chrisostomo está redigindo a consulta e espera apresental'a ao Ministro mas temos q mandar fazer o projecto definitivo.

O rapaz de que me falou é um moço qu,e foi dado por louco, e por isso o ministro mandou-o demitir: ha dous dias q me mandaram entngar um requerimento p.a ser reintegrado; como o seu lugar foi preenchido, só com dcspacho do Ministro, que só amanhã obterei.

Estamos a 12 ainda aqui não está – eu ando cançado e doente, desejando muito a m.ª reforma – mas cstou sempre à sua disposiçlio para o servir em quanto fôr da sua vontade, porq sou deveras

Seu am.º do C.

V. Luz

Lisboa, 12 de Janeiro de 1862.

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NOTAS:

(1) – José Estêvão - Estudo e Colectânea, 1962, pág. 35.

(2) Rascunho de uma carta oferecida pela família do Conselheiro Luís de Magalhães à Biblioteca Municipal de Aveiro, datado de 11-9-1860, ditado por José Estêvão, como era seu costume, e emendado pelo seu próprio punho.

(3) O Porto de Aveiro, conferência realizada em 5-5-1923, na Associação dos Engenheiros Civis Portugueses. Ed. do «Correio do Vouga» , 1933, pág. 35.

(4) N.º 124, de 22-6-1853.

(5) O Povo de Aveiro, n.º 247, de 7-11-1886.

(6) Relatório apresentado pelo Governador Civil do Districto d'Aveiro a Junta Geral do Mesmo Distr.o na sua sessão ordinária de quinze de Setembro de 1854, pág. 2.

(7) Idem, pág. 6.

(8) José Ferreira da Cunha e Sousa, Arquivo do Distrito de Aveiro, voI. VI pág. 194.

(9) Memórias de Aveiro, pág. 127.

(10) J. A. Freitas e Oliveira, José Estêvão, pág. 274.

(11) Carta existente no arquivo dos descendentes de José Estêvão, em Moreira da Maia.

(12) José Pereira Tavares, História do Liceu de Aveiro, pág. 15.

(13) José Pereira Tavares, ob. cit., pág. 17.

(14) Violetas, pág. 173.

(15) Palavra ilegível.

 

páginas 38 a 47

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