INTRODUÇÃO
A reflexão que resolvemos aqui
deixar por escrito tem como primeiro objecto a arquitectura das
igrejas cristãs. Depois de uns apontamentos sobre a história da Arte
ao longo dos séculos da nossa Era, fixar-nos-emos finalmente nos
templos que as comunidades católicas da Diocese de Aveiro nos
últimos anos construíram de novo, ampliaram, restauraram ou
adaptaram.
No seu sentido lato, a Arte é uma
actividade que tem ocupado o homem em todas as épocas, o qual,
pretendendo com ela ilustrar e traduzir as suas altas aspirações,
necessariamente valorizou o culto divino. Quando a religião,
nomeadamente a religião cristã, apenas participa em parte da cultura
de um povo, a arte religiosa representa um mero pormenor na história
da Arte; mas, quando na Idade Média, por exemplo, a Cristandade
Oriental e Ocidental se confundia com a sociedade, então as
belas-artes eram, de modo preponderante e quase exclusivo, a
expressão do sentimento religioso e tinham como finalidade principal
a construção e o adorno dos lugares de culto.
Convém, todavia, esclarecer que
nunca a Igreja perfilhou uma «política» no campo da Arte. Todos os
estilos podem servir a sua missão de mensageira da Revelação Divina;
e, de facto, ela tem falado na língua artística de épocas sucessivas
ao longo da história, que, atravessando, iluminou com a luz do
Evangelho. Não admira, portanto – e até é de esperar – que cada
momento da civilização e cada raça humana hajam trazido a sua
expressão de arte à Igreja.
A Arte Contemporânea, por isso
mesmo, é também arte da Igreja, quando procura exprimir
plasticamente o Mistério Cristão, num testemunho de autenticidade,
de sinceridade e de fidelidade; tal se concretizará na medida em que
o artista der à nova construção religiosa o seu génio, a sua
inspiração e a sua dedicação, enquadrando-se no sagrado evangélico e
renunciando ao possível individualismo egoísta. Como o santo
sobressai no campo ético e o sábio no verdadeiro, assim o artista o
será no plano da beleza; todos, porém, aspiram a encontrar-se no
cume da Perfeição Absoluta. São do II Concílio do Vaticano as
seguintes palavras: – «Entre as mais nobres actividades do espírito
humano estão, de pleno direito, as belas-artes e, muito
especialmente, a arte religiosa e o seu mais alto cimo, que é a arte
sacra. Elas tendem, por natureza, a exprimir de algum modo, nas
obras saídas da mão do homem, a infinita beleza de Deus, e estarão
mais orientadas para o louvor e glória de Deus, se não tiverem outro
fim senão o de conduzir piamente e o mais eficazmente possível,
através das suas obras, o espírito do homem até Deus».
(1) E, noutro passo do mesmo documento, o
Concílio insiste: – «Recordem-se constantemente os artistas que,
levados pela sua inspiração, desejam servir a glória de Deus na
Santa Igreja, de que a sua actividade é, de algum modo, uma sagrada
imitação de Deus Criador e de que as suas obras se destinam ao culto
católico, à edificação, piedade e instrução religiosa dos fiéis».
(2)
A Arte, decerto, não pertence à
natureza da Liturgia; não é pela Arte que existe a Liturgia, mas
aquela serve o culto cristão. Se é verdade que a Liturgia se
dignifica na beleza, não se estranhe que se ponha ao serviço de Deus
o que a criação tem de melhor. A Igreja procura evitar o desprezo
supostamente espiritualista do mundo visível; este, numa concepção
de autenticidade, está destinado a participar na glorificação
litúrgica de Deus e na apoteose cósmica ao Criador. Aqui, o serviço
enobrece.
NAS CATACUMBAS ROMANAS
Desde os alvores da Igreja, sempre
os Cristãos sentiram necessidade de possuir ou usar lugares
permanentes de culto. Nos primórdios, reuniam-se eles numa sala
posta à sua disposição pelo proprietário da casa;
/ 14 / talvez este
compartimento continuasse mesmo reservado à oração. Para reuniões
mais importantes, podia um cristão oferecer toda a casa, incluindo o
próprio jardim anexo.
Todavia, sobretudo a partir do
século IV, o número de construções religiosas não parou de crescer,
acompanhando em quantidade e riqueza a evolução geral da sociedade e
reflectindo a condição económica dos respectivos povos, senão mesmo
o esforço colectivo na prossecução de um fim comum. Foi assim em
Portugal, no século XII, durante a Reconquista; foi assim nos
séculos XV e XVI, aquando da epopeia dos Descobrimentos; foi assim
mais tarde, no século XVIII, na altura da mais intensa colonização e
exploração do Brasil; é assim ainda agora, numa ocasião em que há um
certo desafogo económico. As populações portuguesas generosamente
deram do seu melhor para a edificação e ornamentação de locais
dedicados ao culto.
Após a vitória sobre Maxêncio em
312, o Imperador Constantino Magno decidiu conceder a liberdade à
Igreja Católica; até aí, sofrendo constantes perseguições e
martírios, os Cristãos possuíam quase só oratórios ocultos e capelas
funerárias nas catacumbas subterrâneas.
Contudo, podemos encontrar vestígios
das primeiras igrejas, já existentes no século III. Assim o edifício
de Dura-Europos, no Alto Eufrates, põe-nos em presença de uma
moradia transformada em templo cristão, ainda antes de 256, onde não
falta o baptistério e zonas destinadas à administração eclesiástica
e à residência do bispo; nessa extremidade do mundo cristão,
apresenta-se-nos uma relíquia saída das areias, com ingénuos mas
preciosos documentos: admiráveis frescos em que Jesus acalma a
tempestade, cura o paralítico, conversa com a samaritana e caminha
sobre as águas.
O Bom Pastor – séc. III, nas
catacumbas de Stª Priscila, em Roma. |
Também em Roma uma grande casa
da época de Augusto sofreu adaptações no início do século III;
sobre ela terá sido construída a basílica de S. Clemente. Em
Aquileia, por seu turno, a basílica erguida no tempo de
Constantino ocupou o lugar de uma casa transformada em local de
culto, dentro do qual foram achados mosaicos dos fins do século
III.
Em resumo, pode afirmar-se que
nestes anos, aqui e ali, graças a períodos relativamente
pacíficos para os Cristãos, eles puderam acomodar casas
particulares em lugares de assembleia litúrgica; mais tarde,
mesmo nos últimos anos daquele século, a situação iria
modificar-se: começar-se-ia timidamente a construir igrejas e a
dar-lhes uma forma diferente da que se usava para as moradias
habituais. |
Aludimos às catacumbas romanas; pois
elas merecem-nos mais um apontamento dedicado especialmente ao seu
valor pictórico e ao que este representa para conhecer algo da
vivência cristã primitiva.
Nesses cemitérios, enriquecidos com
frescos murais, Cristo é figurado como o Salvador, sempre jovem, por
vezes na imagem do «Bom Pastor» que leva aos ombros ou apascenta as
suas ovelhas num reino feliz. Num carácter simbólico e alegórico, as
decorações catacumbais, com suas grinaldas, orantes e pastores,
queriam significar a bem-aventurança celeste. Os Santos – e como
tais apenas se admitiam os Mártires – admiravam-se e evocavam-se
como heróis que deram a vida pela fé em Cristo; e, assim como
Daniel, Jonas, Lázaro, etc., foram salvos do perigo, também este ou
aquele cristão foi libertado das tribulações do mundo.
Era natural que, em época de
constantes e terríveis perseguições, na temática das catacumbas não
se representassem os símbolos da paixão de Cristo; o que viria à
mente dos discípulos de Jesus de Nazaré seria necessariamente a
esperança da salvação; por isso, a alegoria referente a Cristo em
majestade é frequente. Nesta linha, opondo-se ao sentimento de
instabilidade da vida presente, aparece-nos a perenidade da vida
futura, a que aspira o homem, liberto dos laços terrenos; ao
carácter efémero do mundo actual, contrapõe-se nas catacumbas a
salvação depois da morte e o acolhimento na «Casa do Pai».
É ainda dentro destas coordenadas
que surgem, embora de execução mais tardia, as cenas do baptismo de
/ 15 / Cristo, a adoração dos
Magos, Jesus e a samaritana, a cura do paralítico, a multiplicação
dos pães, a ressurreição de Lázaro, etc. – tudo episódios de
salvação.
AS BASÍLlCAS PALEOCRISTÃS
Ao aperceber-se da desintegração do
Império Romano, Constantino Magno encontrou como solução de a
contrariar ou retardar o reconhecimento da Religião Cristã pelo
Estado; servindo-se da Igreja, à qual concedia paz, liberdade e
privilégios, o previdente Imperador julgava – e não sem razão – que
a universalidade do Cristianismo, patente em todos os seus domínios,
apesar de ferozmente perseguido, salvaria a universalidade política
romana, já então muito atingida. Significava isto uma nova e
profunda orientação no governo do Império.
Primitiva basílica de S. Pedro, em
Roma (Reconstituição de Frazer)
Foi precisamente nessa ocasião que,
por iniciativa do próprio Constantino, se levantou, em Roma, o
primeiro edifício cristão, oficialmente reconhecido – a basílica de
S. João de Latrão, consagrada em 324 pelo Papa S. Silvestre. A este
templo outros se seguiram, sob o patrocínio do Imperador, como as
igrejas dos Apóstolos (hoje de S. Sebastião), de S. Pedro, de S.
Marcelino, de Santa Inês e de S. Lourenço.
A Arte Paleocristã extravasou os
muros da cidade de Roma e constituiu a primeira expansão artística
de carácter universal na história do Ocidente; a confirmar isto
mesmo, ainda hoje se encontram testemunhos desde a Crimeia à
Península Hispânica, desde a Mesopotâmia à Escócia, desde a Germânia
ao Norte de África. E por toda a parte prevaleceu uma sólida unidade
sobre as diferenças regionais que evidentemente nasceram. Adviria
mesmo, em tempos futuros, a fragmentação religiosa, a desagregação
da civilização antiga, as migrações dos povos, a queda do Império, o
aparecimento de novos Reinos...; mas a unidade prosseguiria e a arte
basilical influenciaria em novas artes, porque o estilo estava em
harmonia com as tendências espirituais dominantes. Não só: também se
pode concluir que tal expansão da Arte Paleocristã foi favorecida
pelo facto de ela conservar as formas do Baixo Império, herdadas da
cultura greco-romana.
Todavia, um espírito novo,
ultrapassando a mera aparência material, havia de conferir à obra de
arte uma expressão mais elevada. A basílica, no seu próprio
significado, era a morada do rei; agora, cristianizada, sublimava-se
em morada do Rei dos Reis e lugar de culto da comunidade orante.
Os Cristãos, tendo na imaginação o
imperador romano com a sua corte, especialmente no exercício das
funções governamentais exercidas na sala do trono, aceitaram usos e
costumes vigentes; começaram a ter de Cristo uma noção de Imperador
e dos Santos a de personagens poderosos que protegiam o povo. Ao
mesmo tempo, as basílicas serviam admiravelmente para as reuniões e
para a celebração da Eucaristia. A cadeira do bispo colocava-se no
lugar do trono e a mesa-altar, com o espaço circundante, era o
centro arquitectural de toda a construção, a atrair os olhares e a
atenção do visitante e do liturgo. Cristo lá estava figurado, ao
fundo, como o «Pantocrator», em majestade, um tanto impassível e
misterioso, a receber as ofertas, as homenagens e as orações dos
crentes.
A basílica constantiniana
compunha-se de um pórtico quadrado ou rectangular, com fonte ao
centro, que servia para acolhimento e preparação, de um edifício de
cinco naves – ou apenas de três ou mesmo de uma só, nas regiões
provinciais; de um transepto; e de uma ábside. Um frontão encimava a
fachada, como nos templos da Antiguidade; uma espécie de arco de
triunfo, repousando sobre duas colunas, levantava-se entre o coro e
os fiéis; o tecto era uma superfície horizontal de madeira; a
construção estendia-se em profundidade; a luz inundava a nave
central e entrava por aberturas nas paredes superiores, nos
intervalos das colunas, enquanto as naves laterais ficavam na
penumbra; uma claridade mais intensa, penetrando por amplas janelas
próprias, punha em destaque a ábside fronteira; o altar
evidenciava-se como ponto fulcral, para onde convergia o edifício. O
exterior da construção revelava-se austero e simples, mas o interior
era rico, em decorações murais sobretudo em mosaico, onde
predominavam elementos de vitória, porque a Religião Cristã havia
finalmente triunfado. A ábside consagrava-se especialmente a Cristo
vencedor e à sua soberania universal, enquanto as paredes eram
reservadas aos ciclos narrativos do Antigo e do Novo Testamento. As
relíquias dos Mártires, que antes se encontravam nas catacumbas e
sob os altares, tornavam-se agora objecto de particular veneração.
É evidente que, após a morte de
Constantino Magno, prosseguiu-se a construção de novas basílicas
cristãs. Assim, o Imperador Valentiniano, em 386, mandou erguer
/ 16 / a de S. Paulo, em
Roma. (3) Como a de
Latrão, obedeceu a uma planta de cinco naves e um transepto, mas era
dotada de maior equilíbrio de proporções, de mais rica ornamentação
e de certo ar de frieza clássica. Os Papas, por seu turno, ordenaram
a construção da basílica de Santa Maria Maior (352-366; reedificada
em 432-440) e a de Santa Sabina (422-432); nesta houve uma nítida
tendência para a simplificação, reduzindo-se o número de naves para
três e omitindo-se o transepto.
A evangelização da Península Ibérica
começou muito cedo, mercê das relações comerciais com o Oriente, da
conversão de muitos legionários e da existência de comunidades de
judeus. Nos meados do século III já existiam por aqui várias
dioceses organizadas; a Igreja aparece-nos regularmente constituída,
desenvolvida a consciência cristã e os bispos em ligação com a Santa
Sé.
A mais antiga arte cristã da
Hispânia está representada em basílicas, baptistérios e mausoléus,
além de sarcófagos e mosaicos. Em Portugal, teatro de várias guerras
e sucessivas transformações, poucos vestígios da Arte Paleocristã se
encontraram até hoje. Mesmo assim, é notável o conjunto de Torre de
Palma (Monforte do Alentejo), que nos provém provavelmente do século
IV e que se compõe de duas basílicas com ábsides contrapostas,
associadas no mesmo plano geral, conforme plantas norte-africanas;
lateralmente desenvolve-se o baptistério, cuja bacia, em forma de
cruz de Lorena, é a mais complexa da Península. A uns escassos cem
metros para sul, está situada uma grande «villa» rural do Baixo
Império.
A POLlCROMIA BIZANTINA
No ano de 323, Constantino Magno
tomou uma resolução de extraordinárias consequências, cujos efeitos
se fizeram sentir até aos nossos dias: resolveu transferir a capital
do Império Romano para Bizâncio, cidade grega que, daí em diante,
passou a chamar-se Constantinopla (hoje, Istambul). Decorridos seis
anos, após uma enérgica e laboriosa campanha de construção, a
mudança foi oficialmente completada.
Todavia, o Imperador não previra que
a deslocação da sede do poder provocaria, mais tarde, a cisão do
Estado; tal veio a acontecer, em menos de um século, embora os seus
sucessores em Constantinopla não renunciassem às pretensões sobre as
Províncias do Ocidente. Depois, enquanto estas foram presa de povos
invasores, o Império Bizantino, pelo contrário, sobreviveu àqueles
assaltos e, sob Justiniano (527-561), alcançaria nova força e grande
estabilidade. Só em 1453, os Turcos viriam a conquistar finalmente a
própria capital.
Foi ainda no tempo de Constantino
que na nova metrópole se ergueram diversas igrejas cristãs, entre as
quais a dos Doze Apóstolos, onde o Imperador mandou preparar a sua
sepultura. Nos séculos futuros, ante a severidade ocidental, vemos
afirmar-se progressivamente nos Bizantinos o gosto pela pompa, pelo
fausto e pelo esplendor, em paralelo com o que se passava na Corte.
Esta sumptuosidade patenteava-se também nos santuários cristãos,
pelo carácter imponente das linhas arquitectónicas e pela
magnificência da decoração. De facto, os séculos V e VI foram, no
Oriente, uma época de grande criação artística.
Em todos os tempos se levantaram
basílicas de plano rectangular, com tribunas e gineceus
reservados às mulheres sobre as naves laterais; mas, sob a
influência das igrejas construídas em honra de Mártires que, por
sua vez, eram herdeiras dos mausoléus circulares ou poligonais
da arquitectura funerária clássica, recorreu-se a combinações de
plano central, solução que encontrou o seu mais notável exemplar
na nova basílica de Santa Sofia, edificada sob o Imperador
Justiniano – obra-prima arquitectural da primeira Idade de Ouro
da Arte Bizantina. (4)
No seu interior, toda a noção de peso desaparece; a luz
desempenha um papel importante; a cúpula parece flutuar, assente
num anel luminoso de janelas justapostas no alto das paredes,
rasgadas por tantas aberturas que parecem cortinas de renda; a
cintilação dourada dos mosaicos completam a «ilusão da
realidade»; os pormenores ornamentais ainda se sucedem em
molduras e capitéis. |
Cristo Senhor, com os símbolos de
Imperador Romano (Mosaico do séc. VI, em Ravena) |
Contudo, por ironia da sorte, o mais
rico estendal de monumentos da Arte Bizantina não se encontra em
Constantinopla, mas em Ravena, no solo italiano. Tornada capital dos
Imperadores do Ocidente em 402 e, ao findar do século, de Teodorico,
Rei dos Ostrogodos, cujos gostos se modelaram pelos de
Constantinopla, Ravena foi sede de um Exarcado do Império Bizantino
até 751. (5) Desta
forma, as autoridades políticas locais tornaram-se em mecenas de
novas construções civis e religiosas; e Ravena convertia-se no
bastião da arte sacra do Império, numa sumptuosa imitação de
Bizâncio.
Os monumentos mais característicos e
magnificentes são o mausoléu de Gala Placídia, o baptistério do
Bispo Néon e as igrejas de Santo Apolinário in Classe, de S. Vital e
de Santo Apolinário, o Novo. Tais edifícios, quase todos em tijolo,
distinguem-se por grande simplicidade externa; o interior, ao
contrário, oferece uma riqueza decorativa sem par, sobretudo em
mosaicos policromados – esse trabalho admirável feito de pequeninos
blocos de mármore, de vidro ou de esmalte, que constitui uma bíblia
em imagens de imensa variedade. Por cima das arcadas e ao longo das
paredes não existem superfícies sem coberturas de cor. Quem neles
entra, não pode deixar de se sentir arrebatado e envolvido por uma
atmosfera que é efeito de um conjunto artístico-religioso.
/ 17 / Em Ravena, encontra-se
a mais alta expressão plástica de um certo esplendor celeste;
grinaldas de flores e de frutos, fundo azul sobre que se destacam
folhagens douradas – eis os elementos mais comuns na decoração. A
linguagem simples das formas arquitecturais é de tal modo dominada
pela policromia interior, que dá a impressão ao visitante de se
encontrar dentro de uma construção supra-arquitectural; parece que
se pretendeu transportar o crente para o domínio espiritual,
ajudando-o a esquecer, ao menos por momentos, a realidade do mundo
sensível. Sublimados pelos valores da cor, os edifícios religiosos
adquirem um carácter de espaço sacramental, servindo
maravilhosamente a Liturgia. Podemos afirmar que há aí uma
antecipação da arquitectura da Idade Média.
Contudo, a decoração não é a única
coisa a conduzir a este efeito; as representações figuradas
concorrem para criar a ideia sobrenatural do Cristianismo. No
mausoléu de Gala Placídia, por exemplo, S. Lourenço, caminhando sem
timidez para o local do sacrifício supremo e mostrando tirar a sua
força da cruz, que ele leva com coragem, mostra que alcançará a
redenção e o triunfo pelo martírio.
No baptistério de Néon, numa cúpula
que assenta em paredes enriquecidas com folhagem e figuras realçadas
a ouro sobre fundo azul, desenharam um medalhão representando o
baptismo de Cristo no Jordão; à volta, os Apóstolos, com as coroas
do martírio nas mãos, estão concentricamente dispostos. O sacramento
do Baptismo é o penhor daquela vida suprema a que se chega através
da conversão, da «metanóia» e do martírio.
Na igreja de Santo Apolinário in
Classe, os mosaicos consistem em duas cenas diferentes: Cristo numa
transfiguração simbólica, e o Santo Titular numa atitude de prece,
posto numa paisagem que recorda a Paraíso.
A decoração da igreja de S. Vital é
uma realização artística notável; episódios do Antigo Testamento
acompanham a Liturgia dos ofícios celebrados no espaço do coro, e
pormenores da vida de Moisés prefiguram a vida de Jesus. Este,
adornando a concha da ábside, aparece como Soberano do Universo e,
sob Ele, o retrato do Bispo Maximiano e os desenhos dos Imperadores
Justiniano e Teodora.
Contudo, onde esplendorosamente se
revela a sumptuosidade dos mosaicos bizantinos de Ravena é na
procissão dos Mártires, na igreja de Santo Apolinário, o Novo. Os
Mártires, dispostos em duas filas, dirigem-se solenemente para o
santuário: – os Santos encaminham-se para o trono de Cristo, rodeado
de Anjos; as Santas, precedidas dos Magos, vão para o trono da
Virgem Maria, também rodeada de Anjos. Com as coroas do martírio nas
mãos, que vão oferecer, todos caminham em movimento cerimonioso, que
se desenrola numa paisagem sobrenatural, evocada pelas palmas e pelo
fundo de ouro. As cenas têm um carácter de majestade: a pompa
terrestre de uma cerimónia com todo o aparato da Corte Imperial
pretende projectar-se num plano ultra-terrestre, cujos soberanos são
Jesus e sua Mãe.
Do século IX ao século XI, dá-se em
Constantinopla uma segunda Idade de Ouro; mas não houve outro
monumento comparável ao de Santa Sofia. As igrejas de agora são
modestas em dimensão, e a sua planta habitual é a cruz grega.
Todavia, os ícones de Cristo, da Virgem, dos Anjos e dos Santos, os
mármores nos pavimentos e os mosaicos nas paredes e nas abóbadas
adornam-nas luxuosa e piedosamente. Aliás, todas as artes trazem a
sua contribuição à Liturgia Bizantina, destinada a impressionar
profundamente os povos bárbaros, que até ficam extasiados perante
ela.
É também em solo italiano, agora em
Veneza, que surge o maior e mais sumptuoso edifício cristão desta
época – a basílica de S. Marcos, começada em 1063 e concebida para
abrigar os cidadãos de uma grande metrópole. Efectivamente, os
Venezianos estiveram, por longo tempo, debaixo da soberania
bizantina e conservaram-se dependentes do Oriente no campo
artístico, mesmo depois de se tornarem uma potência política e
comercial soberana; disso ficou-lhes na história este documento
singular e imorredouro, centro espiritual da cidade, onde se
ratificavam, em forma religiosa, os actos públicos mais importantes,
sob a invocação do Santo Patrono.
/ 18 /
A ARTE PRÉ-ROMÂNICA
Mas... a desagregação do Estado e as
perturbações políticas e demográficas de toda a espécie contribuíram
para o enfraquecimento da civilização ocidental. Antigamente
chamava-se à Idade Média a «idade das trevas»; em contraste com o
Renascimento, julgava-se que as centúrias precedentes haviam sido
uma época de declínio. Tal epíteto, porém, melhor será aplicado
àqueles séculos de desassossego, enquanto a Europa se não refez com
outros povos e com outra organização.
Entretanto, neste recanto da
Península Ibérica, antes do aparecimento das formas românicas,
desenrolou-se um estilo a que se convencionou chamar visigótico;
essencialmente hispano-cristã, esta arte tem origens romanas,
paleocristãs, germânicas, bizantinas e indígenas.
Sobrevive desta época um limitado
número de exemplares. As precárias condições económicas do tempo, as
lutas constantes e a diversidade dos dominadores, além de longa
passagem dos anos, reduziram aquele somatório a raras e mutiladas
espécies.
A capela funerária de S. Frutuoso,
em Montélios (Braga), é uma singela cópia do mausoléu de Gala
Placídia, em Ravena; a influência bizantina está aí bem patente, na
mesma planta em cruz de braços iguais, nas mesmas arcadas cegas
decorando as paredes, no mesmo corpo central de planta quadrada e
nos mesmos telhados em duas águas.
A capela de S. Pedro de Balsemão,
junto a Lamego, apesar das reconstruções sucessivas, talvez conserve
o plano inicial.
A igreja monástica de S. Gião, a sul
da Nazaré, com uma iconostase pouco mutilada e uma tribuna sobre a
entrada, espera uma conveniente restauração para ocupar o verdadeiro
lugar na paisagem artística pré-nacional.
Capela de S. Frutuoso (Em
Montélios – Braga; do séc. VII)
As duas arcadas de Santo Amaro, em
Beja, podem representar as três naves do primeiro projecto.
A catedral de Idanha-a-Velha – ou
Egitânia – dá-nos, ainda hoje, a verdadeira imponência de uma sé
desse tempo. O baptistério, colocado exteriormente, é digno de
registo pela sua singularidade.
O traço comum de toda esta
arquitectura visigótica é a pobreza, a exiguidade e o reemprego de
materiais retirados de anteriores edifícios romanos.
A conquista muçulmana, subsequente à
invasão de 711, não abafou o culto cristão na Península Ibérica nem
a construção de igrejas e cenóbios. Os cristãos hispânicos
continuaram a edificar, adaptando, por vezes, fórmulas trazidas
pelos islamitas, sobretudo decorativas, cujo exemplo mais flagrante
é o arco ultrapassado ou em ferradura. Tentariam assim ser amáveis
com os invasores e cativar-lhes a simpatia.
De tal estilo, que comummente se
designa por «moçárabe» e que, embora com pouco nível, se manifestou
nos séculos IX-XI, parece que apenas nos resta um único, mas
notabilíssimo, edifício; é a igreja de S. Pedro de Lourosa (Oliveira
do Hospital), datada de 912. (6)
Tem três naves, transepto e três capelas de cabeceira, com átrio e
arcos ultrapassados.
Por seu turno, os árabes, que
ocuparam o centro e o sul do nosso território até 1249, pouco nos
deixaram da sua arquitectura... ou então os cristãos da Reconquista
fizeram desaparecer os seus edifícios de culto. A construção mais
apreciável é a antiga mesquita de Mértola, depois transformada em
igreja matriz para a liturgia católica.
Em toda a Idade Média, a Arte mais
difundida e imponente é, sem dúvida, a arquitectura que, entre as
artes, é a única que se destina ao grande público. Se perguntarmos
pela obra-prima mais bela, ninguém hesitará em citar alguma das
grandes catedrais; a arquitectura legou-nos monumentos de todos os
períodos e em todas as regiões; muitos deles podem ser incluídos no
rol das maiores criações saídas da inteligência e da mão do homem.
Durante mil anos construíram-se e reconstruíram-se igrejas por toda
a Europa.
A SOBRIEDADE ROMÂNICA
Nos séculos XI e XII, espalhou-se
por toda a Europa cristã a chamada Arte Românica; os edifícios deste
tempo, que chegaram até nós, são principalmente mosteiros e igrejas.
Cheia de variações e tendências locais, resultantes das condições de
vida dessa época e da multiplicidade de povos sem unidade política,
tal movimento artístico pode dizer-se constituído por vários
estilos. Um só ponto comum, mas capital, permite-nos falar da Arte
Românica como entidade: a presença em todas as comunidades de uma
única fé religiosa.
/ 19 /
A planta das igrejas, de três naves
longitudinais, de transepto e de ábside, derivou das anteriores
basílicas cristãs. O altar ficava na abside, de maneira a permitir a
celebração da Eucaristia de frente para a assembleia; era uma
simples mesa, sem retábulo nem tabernáculo, e sobre ele não se
colocavam nem candelabros, nem flores, nem cruz ou crucifixo, mas
apenas toalhas, vasos sagrados e missal. Nada tapava a visibilidade
ao povo; nada distraía os seus olhares. Era costume herdado da
arquitectura paleocristã.
Ao fundo e à volta da ábside, havia
um corredor, da largura das naves laterais, chamado charola ou
deambulatório, por vezes enriquecido com pequenas capelas,
denominadas absidíolas.
As abóbadas, que nas igrejas
antecedentes eram de madeira, passaram a ser construídas em pedra
talhada, obedecendo ao tipo de berço ou volta perfeita; o facto de
serem de pedra – portanto, pesadíssimas – obrigou a que as paredes
tivessem de se construir com solidez e grossura, bem como as colunas
que separavam as naves. Todavia, as abóbadas de berço não foram a
única solução, pois também as há de aresta. Eram de aresta as das
naves laterais, mais baixas e mais estreitas do que a central. Além
disso, no «cruzeiro» que era o rectângulo do cruzamento na nave
central com o transepto – levantou-se frequentemente a cúpula.
Entre a nave central e o altar,
continuou a colocar-se o coro dos monges ou dos cónegos; por baixo
do coro desenvolvia-se geralmente uma cripta, destinada à guarda das
relíquias e à sepultura de benfeitores ou de pessoas insignes.
As colunas e lintéis poderiam ser
embelezados com figuras ornamentais; por cima dos capitéis das
colunas ou do arranque das abóbadas, corria uma moldura, simples ou
decorada com relevos figurativos de pessoas, de animais ou de
vegetais.
No exterior, sobressaía a
grandiosidade dos pórticos. Faixas de molduras elementares, arcadas
cegas, mísulas ou cachorros rematavam as paredes das fachadas e
suportavam a cornija com o beiral da cobertura. Os chamados
contrafortes ou gigantes, adossados às paredes que eles reforçavam,
correspondiam no exterior aos pilares onde, dentro, se apoiavam os
arcos mestres das abóbadas.
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Sé Velha de Coimbra - Século XII |
Num conjunto maciço de pedra, de
altura mediana e de tipo fortaleza, de linhas sóbrias e de ar
pesado, os artistas de então multiplicaram o arco redondo ou de
volta perfeita, tanto nos portais e nas janelas, como nas mísulas e
em vários elementos da construção.
A iluminação, embora fraca, que dava
ao interior um ambiente escuro, resolveu-se por pequenas janelas,
pela rosácea da frontaria e pela cúpula do «cruzeiro».
(7)
Em Portugal, só tardiamente, nos
fins do século XI ou na alvorada do seguinte, é que chegou a
arquitectura românica, divulgada entre nós sob a influência dos
Monges de Cluny, através dos caminhos de Santiago; S. Sernin de
Toulouse, Palência e Compostela foram os elos dessa cadeia
artística-espiritual, que no Nordeste Peninsular tomou um cunho
próprio.
A Reconquista Cristã, no Ocidente
Ibérico, foi lenta e cheia de inquietações; por isso, as
construções, adensando-se no Norte e rareando no Sul, foram o
reflexo bem nítido de uma civilização peculiar, ao traduzir os
sentimentos de quem aspirava levantar uma Pátria, com a esperança
posta em Deus. A igreja e a catedral, com o aspecto de fortalezas
ameadas, ficaram a marcar a existência de um bispo e os primórdios
de um Estado; em tempo de paz eram locais de culto, mas em caso de
ofensiva muçulmana tornavam-se cidadelas de abrigo e defesa.
O mais antigo edifício, feito neste
estilo, embora posteriormente muito alterado, é a sé de Braga,
construída durante o episcopado de S. Geraldo (1096-1109).
A igreja que se conserva mais
intacta é a sé velha de Coimbra, datada de 1160. Pertencem ao mesmo
século XII o mosteiro de Arnoso, S. Pedro de Rates, S. Cristóvão do
Rio-Mau, S. João de Almedina e Santa Cruz de Coimbra, Roriz,
Almacave em Viseu, S. João de Tarouca, Santa Maria de Salzedas, as
sés do Porto, de Lamego e de Lisboa... e tantas outras pequenas
igrejas, cuja maioria é de feitura rude e simples. Os Templários,
/ 20 / por seu turno,
ergueram em Tomar a conhecida charola abobadada, de planta circular,
envolvendo um santuário octogonal; talvez inspirada na mesquita de
Omar, em Jerusalém, constitui, entre nós, um reflexo da Arte
Bizantina.
A sé de Évora, do último quartel do
século XIII mas sagrada em 1314, fecha com chave de ouro a época
românica, apesar de revelar já pormenores de transição para o
Gótico.
Talvez pela organização feudal e
pelos costumes de então, imbuídos de medo e de superstição, Cristo
passou a ser considerado como o Juiz severo; aqui e ali, nos
tímpanos de algumas igrejas, desenharam-n'O na visão apocalíptica do
Juízo Final, entre demónios, condenados e santos. As grandes
calamidades, as invasões dos povos, o cerco muçulmano à Europa, a
insegurança social – tudo contribuiu para a visão terrífica da Alta
Idade Média. O demónio era quase uma obsessão; como era necessário
esconjurá-lo, multiplicavam-se os exorcismos e faziam-se as bênçãos
dos campos, dos animais, das pessoas e das coisas. A Arte viria a
exprimir este género de piedade, de luta do bem contra o mal,
inspirando-se no pecado original, no Inferno e no Juízo Final.
Por outro lado, o povo – os «servos
da gleba» – foi afastado da Liturgia oficial. Entre o altar e
assembleia colocou-se o coro dos clérigos e, em varandins, ficavam
os senhores. Estes rodeavam o altar, enquanto os simples fiéis
permaneciam nas naves, sob os olhares das imagens dos Santos, de
número muito reduzido.
Dava-se realce, na arquitectura e no
símbolo, à cidade terrestre, à autoridade senhorial, ao poder
episcopal e à ordem sacerdotal, mas não se atendia, na respectiva
medida e respeito, à importância da assembleia cristã; a Liturgia
perdera o sentido comunitário. As igrejas desta época são obras
reflectidas e dirigidas, produto genial de indivíduos e não do
instinto e do amor das multidões. Não eram tanto casas de oração do
povo, mas sobretudo sinais da «Cidade de Deus» na Terra.
A ELEGÂNCIA GÓTICA
A chamada Arte Gótica ou Ogival foi
substituindo gradualmente a Românica, durante os séculos XII-XIV.
Nasceu em Paris, com a construção da igreja de S. Dinis, no tempo do
Abade Suger, e logo se expandiu pelos diversos países da Europa
ocidental.
|
Para Suger, o esplendor das luzes e
das cores e o brilho do ouro e das pedras preciosas nas paredes e
nos vitrais da sua igreja eram uma emanação, um pálido reflexo da
glória eterna de Deus. Comparava ele a luz do dia à Luz não-criada;
e a alma do cristão podia subir de luz em luz até Deus. Nos portais
mandou ele escrever uns versos que traduzem o simbolismo e a força
analógica da beleza material: – «Resplandece a nobre construção, mas
é preciso que a construção, que tão nobremente resplandece, /
ilumine as nossas mentes para caminharmos, iluminados por luzes
verdadeiras, / até à verdadeira Luz, Cristo, a verdadeira Porta /
... A mente fraca eleva-se, através da matéria, até à Verdade».
|
Nave central da Igreja do Mosteiro
de Alcobaça
Século XII-XII |
Acontecera uma revolução na Arte. O
estilo anterior manifestara-se principalmente na edificação de
mosteiros e de igrejas em ambientes rurais; o Gótico, ao contrário,
surge sobretudo como um estilo urbano e de catedrais.
As construções góticas, que
impressionam pela altura, são cobertas por abóbadas de ogivas
quebradas, cujo peso se distribui por finas colunas e leves paredes,
reforçadas por belos arcobotantes ou contrafortes. As grandes
superfícies das paredes foram rasgadas por amplas janelas e
rosáceas, guarnecidas de maravilhosos vitrais – espécie de mosaico
de pequenas peças de vidro em cores vivas, unidas por fitas de
chumbo – que dão ao interior uma luminosidade a contrastar com a
obscuridade das igrejas românicas. Ao aspecto pesado da arte
anterior seguiu-se um ar de leveza, manifestado na verticalidade das
linhas que, no alto, terminam em pináculos; os arcos pontiagudos,
quebrados ou «ogivais», o rendilhado de todo o conjunto e a
multiplicação de imagens a encher os pórticos, os claustros e os
sepulcros... são outras tantas características da Arte Gótica. A
basílica
/ 21 / românica, agachada no
solo, cheia de sombra, fortemente condensada sobre si mesma e
apoiada sobre as suas bases, convidava à meditação; a catedral
gótica, pelo contrário, obedecendo a um estilo de impulso, com
flechas a projectarem-se no infinito do céu, convidando a luz para o
seu interior, é um edifício erecto, uma igreja de pé, um apelo à
admiração e ao louvor. (8)
Em Portugal, apesar de o estilo
ogival entrar tardiamente e vagarosamente caminhar, são numerosos os
edifícios deste tipo. É verdade que o Mosteiro de Alcobaça, de
excepcional execução e grandeza, foi iniciado em 1178; mas este belo
cenóbio de Cister, sagrado em 1252, é como que um enxerto na Arte
Portuguesa: os seus planos vieram da França, importados pelos Monges
de S. Bernardo, e são uma duplicação quase perfeita da Abadia de
Claraval. Só pelos meados do século XIII é que decididamente
principiaram entre nós os primeiros ensaios do Gótico.
Os monumentos mais representativos
são as igrejas de S. Francisco, de Santa Clara e da Graça em
Santarém, de S. Francisco de Alenquer, de Santa Clara em Estremoz,
de S. Domingos em Elvas, de Santa Maria do Olival em Tomar, de Leça
do Bailio, de Santa Clara, a Velha, em Coimbra, de Santa Clara em
Vila do Conde, de S. Francisco no Porto, de S. Domingos e de Nossa
Senhora da Oliveira em Guimarães, a matriz da Lourinhã e a sé de
Silves. Estes templos, com cobertura de madeira nas naves, já
obedecendo à simplicidade inspirada pelas Ordens Mendicantes, são
habitualmente abobadados em pedra nas capelas dos cabeçais.
Espalhara-se assim, em Portugal, uma
nova expressão arquitectónica, quase no fim da Reconquista Cristã.
Já não se tratava de prosseguir a guerra contra os Mouros, mas de
consolidar as fronteiras do Reino e de levar a bom termo a obra da
evangelização. A Arte Gótica dos Mendicantes não buscava grandeza –
o que a distingue da cisterciense – mas a austeridade como espelho
da vida conventual. As casas religiosas situavam-se preferentemente
fora dos muros dos centros urbanos, para se acudir à gente rural com
mais facilidade.
Acabou o século XIV com uma
construção de grande vulto, qual foi a do Mosteiro da Batalha,
iniciado em 1388 pelo Arquitecto Afonso Domingues; à data do
falecimento do Rei-Fundador. D. João I (+1433), a parte essencial ia
perto do fim, sob a mestria do inglês Huguet. A ampla igreja de S.
Francisco. em Évora, bem como a sé da Guarda, de nova estrutura,
começadas no século XV, terminaram já na época manuelina.
Entretanto, também a partir de S.
Francisco de Assis e por influência dos seus discípulos – seguidos
de perto pelos dominicanos, pelos carmelitas e pelos agostinhos –
desenvolvera-se a piedade à volta da humanidade e da paixão de
Cristo. O Filho de Deus não era considerado tanto como o Juiz que
condena, mas sim o Mestre que ensina e o Homem que sofre pelos
pecadores. E em redor não só da pessoa de Cristo, mas ainda dos
Santos e mormente da Virgem Maria, haveriam de surgir centros de
interesse para a Arte.
Na Baixa Idade Média, a plástica
encontra um campo magnífico para se inspirar; a anatomia humana e
outros valores naturais vão ser constantes. O Pobre de Assis é bem
um dos promotores espirituais do Humanismo, na descoberta do Homem
nos caminhos do Renascimento.
O MANUELlNO – ARTE PORTUGUESA
No último período do Gótico, o nosso
País encontrou-se em mais íntimo contacto com o mundo extra-europeu,
graças à epopeia das descobertas e conquistas; em consequência, a
arquitectura portuguesa, ainda que fundamentalmente gótica,
desdobrou-se numa variedade de subestilos. Uma corrente proveio do
estilo flamejante do Norte; outra procedeu do plateresco de Espanha;
outra ainda surgiu ao gosto mourisco; por fim, uma nova corrente foi
fixar-se nas formas naturalistas, inspiradas
/ 22 / sobretudo em motivos
tomados da flora e da fauna e em temas náuticos, marítimos ou
africanos e extremo-orientais. Os arcos quebrados desaparecem ou
rareiam, dando lugar aos conopiais, de carena ou contracurvados
duplos, e ainda aos polilobados, de ferradura e outros mais, tanto
independentes como em várias composições. Nas abóbadas estendem-se
complexas redes de nervuras. Toda esta arquitectura, usada com forte
determinação sobretudo a partir de 1490, ainda em tempo de D. João
II, significa um estilo eminentemente nacional e é chamado
«manuelino», em honra do Soberano D. Manuel I, que reinou de 1495 a
1521.
A Mateus Fernandes, «o mais gótico
dos mestres manuelinos» – no dizer do Prof. Reynaldo dos Santos
(9) – deve-se a porta monumental das
Capelas Imperfeitas e as abóbadas das capelas radiais, na Batalha;
na parte superior das mesmas capelas e nas bandeiras dos arcos do
claustro tem o Manuelino a sua alta expressão. Ao francês Diogo
Boutaca encarregou D. João II a construção da igreja de Jesus, em
Setúbal, e D. Manuel I a edificação do Mosteiro dos Jerónimos, em
Lisboa, que, começado em 1502,
(10) João de Castilho, espanhol de Burgos educado na
estética do Plateresco, havia de continuar e terminar em 1517;
posteriormente, Boutaca trabalharia nas Capelas Imperfeitas e, a
partir de 1504, na sé da Guarda. De Francisco Arruda é a celebre
Torre de Belém, erguida em 1515 a 1520; e a seu irmão, Diogo Arruda,
pertence a conhecida janela de Tomar – o documento artístico onde o
génio do autor ficou espectacularmente documentado.
|
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Janela da Casa do Capítulo, no
Convento de Cristo em Tomar (século XVII) |
A Arte Manuelina deixou inúmeras
construções por todo o País – no Continente, em Marrocos, nas Ilhas
e no Ultramar; viveu-se então um dos maiores surtos de sempre.
Simples pelourinhos ou devotos cruzeiros, formosas pinturas e
piedosas imagens, ao lado de majestosos edifícios religiosos e
civis, espalharam-se por toda a parte. Deveu-se isto às excepcionais
condições económicas do tempo, à generalizada confiança das gentes e
à acção do próprio Monarca, que gostava de ver o nome ligado a
vistosos monumentos que fossem símbolo do seu próprio poder e da
grandeza da Pátria.
O RENASCIMENTO NA ARTE
O estilo baseado no sistema
greco-romano de colunas, pilastras, entablamentos e frontões, que
nasceram na Itália no século XV, só no segundo quartel da centúria
seguinte se difundiu em Portugal. Embora se estivesse em pleno
período do Manuelino, já as formas renascentistas começavam a
aparecer, mas somente na decoração: medalhões, grinaldas, brutescos
e arabescos. Trazidos pelos biscainhos que trabalhavam no Norte do
País, ou pelos escultores franceses que operavam em Coimbra e no
Sul, tais elementos plásticos não chegariam a caracterizar a nossa
arquitectura.
|
A primeira manifestação séria do
Renascimento numa verdadeira obra de arquitectura verifica-se na
varanda sobre o pórtico das Capelas Imperfeitas, na Batalha, devida
a João de Castilho que, como tal, já se declarara nos pilares da
igreja dos Jerónimos.
Aos artistas da Renascença ficaram a
dever-se diversas construções, como as da reforma joanina do
Convento de Cristo em Tomar, da capela da Conceição na mesma cidade,
da capela-mor dos Jerónimos, do Jardim da Manga em Coimbra, das
igrejas de S. Gonçalo em Amarante e de S. Domingos em Viana do
Castelo, e das catedrais de Leiria, Portalegre e Miranda do Douro.
As obras desta corrente são relativamente poucas, pois o vigor da
época manuelina fez prolongar a vida do Gótico e o Maneirismo cedo
se soube impor.
|
Interior da Capela de Nossa Senhora
da Conceição, em Tomar (século XVI) |
Na arquitectura, os edifícios
articulam-se em bons planos, tendo em vista o espaço interno e
externo; há proporção e simetria; desce neles a tendência vertical e
equilibra-se a horizontal. Na decoração, é sempre a figura humana
que prevalece. Na escultura, procura dar-se independência e
individualidade às imagens, desligando-as das paredes.
A Renascença tornou-se mais realista
do que a arte anterior, porque nela pesavam os valores do Homem; a
perfeição anatómica e o que é bom na natureza – tudo foi assimilado
e transformado pela arte da Igreja. Celebrou-se o Homem e a sua
personalidade.
/ 23 /
A expressão que melhor poderá
caracterizar o Renascimento é dizer-se que foi uma época de grandes
descobertas. Descobriu-se o mundo e alargou-se o seu horizonte;
reencontrou-se o passado; enveredou-se pelos caminhos da Ciência;
analisou-se a estrutura do corpo humano; estudou-se a zoologia, a
botânica e a geologia; fizeram-se renascer os valores estéticos da
Antiguidade. Mas uma obra do Renascimento não é melhor nem pior do
que uma obra medieval. A «Ceia» de Leonardo da Vinci, por exemplo,
não é célebre por aquilo que nos descreve mas por aquilo que nos
sugere. Decerto que o pintor não salvaguardou os dados históricos;
atendeu, sim, aos parâmetros do tempo, como a anatomia, a
perspectiva, a composição geométrica e simétrica. A «Ceia de Cristo»
deu o tema ao autor, deixando-o livre no conteúdo e na forma. Não é
na descrição que está o valor; é na liberdade da composição
plástica.
A ESCULTURA RENASCENTISTA
No primeiro quartel do século XVI,
assiste-se em Portugal a um movimento artístico invulgar também no
sector da escultura, introduzido por mestres estrangeiros: em 1517,
o francês Nicolau Chanterenne foi encarregado da traça do pórtico
axial da igreja dos Jerónimos – o que marca, entre nós, o início das
formas escultóricas do Renascimento italiano ou italianizante.
Tornou-se notável o ciclo de
Coimbra, onde talvez tenha trabalhado o mesmo Chanterenne, com a
colaboração de outros artífices. Na Lusa Atenas, encontramos
inumeráveis obras deste estilo, devidas não só ao trabalho de tais
entalhadores da pedra, mas também a Diogo de Castilho, Filipe Hodart
ou Duardos e, sobretudo, a João de Ruão. Este foi realmente um
mestre insigne, extremamente operoso. Depois de terminar a fachada
da igreja da Atalaia, em 1528 radicou-se em Coimbra, onde faleceu no
ano de 1580. Fundou uma oficina, criou gerações de artistas e
espalhou obras por todo o vale do Mondego, principalmente retábulos,
baixos-relevos e composições decorativas. Da primeira época,
minuciosa e delicada, a obra capital é a da Varziela, perto de
Cantanhede; da segunda, sóbria e de grande nobreza de figuras,
contam-se o grande retábulo da catedral da Guarda e, em Coimbra, o
retábulo da Nossa Senhora da Misericórdia e a capela do Sacramento,
na sé velha.
Não só: da Renascença Coimbrã são
também, por exemplo, os retábulos do Sacramento em Cantanhede e em
Águeda e os túmulos de Góis e da Trofa do Vouga. As figuras da Ceia
do Convento de Santa Cruz, em Coimbra, saídas do génio de Hodart,
mostram a forte personalidade do seu criador e são impressionantes
pelo naturalismo expressivo dos seus rostos e pela violência e vigor
dos seus gestos. (11)
O MANEIRISMO
Na preocupação de se inspirarem nas
formas greco-romanas, os artistas do Renascimento facilmente viriam
a cair na tentação de trazerem para o campo religioso trabalhos que,
aos olhos dos cristãos, não se coadunavam bem com o ambiente
espiritual das igrejas. Deste modo, surgiu uma reacção contra o
influxo paganizante da Arte Renascentista, revalidando o conteúdo
contra a forma. O «Maneirismo» – nome que se deu a esta corrente
artística, por se inspirar nas grandi maniere de Leonardo da
Vinci, Rafael, Miguel Ângelo, etc. – é o eco da inquietação
política, religiosa e social com que o Ocidente se debatia e o
símbolo do movimento ascético que então nascera.
A piedade oscila entre dois pólos: o
activismo e a mística. A união entre os dois é condição necessária
para que aquela seja integral. Santo Inácio de Loiola e Santa Teresa
de Ávila conseguiram uni-los; optaram pela vida religiosa
personagens reais e senhores nobres, como Francisco de Borja, Luís
Gonzaga, Francisco Xavier, Carlos V. E a Arte inspira-se neste
pendor místico, que bafejou o século XVI.
São desta época igrejas de uma larga
nave única, destinada a abrigar o maior número de fiéis, em
perfeitas condições de audição dos pregadores e de boa visibilidade
do altar-mor. Sem transepto aparente, a nave é franqueada por
capelas fundas, unidas entre si por pequenas passagens. Os Jesuítas
irão adoptar e difundir estes moldes maneiristas em quase todas as
suas igrejas, de que são exemplares, ao gosto português, as igrejas
do Espírito Santo, em Évora, e de S. Roque, em Lisboa, e a sé nova
de Coimbra. A igreja de S. Vicente de Fora, em Lisboa, foi iniciada
em 1582 sob a traça de João Herrera, arquitecto do Escorial, e
construída segundo a direcção de Filipe Terzi e de Baltasar Álvares,
para suceder ao velho templo românico, modificado na época gótica;
acabada em 1629, sob a orientação de Pedro Nunes Tinoco, é
essencialmente uma construção dominada por uma gramática maneirista
de grande simplicidade e equilíbrio, de modelo claramente
italianizante.
Outra característica das nossas
igrejas maneiristas é a existência de tribunas com balcões, dando
para a nave ou para a capela-mor, muitas vezes comunicando entre si
por pequenos corredores ao nível das janelas. Mais ainda. Ao traçado
exterior, de singelos efeitos lineares, corresponde um requinte, por
vezes extravagante e desordenado, de decoração interior, num
conflito de massas e volumes que quebra a antiga harmonia do
edifício da Renascença; contudo, não se pode negar que o azulejo, a
talha dourada e os quadros a óleo deram aos templos um ambiente
propício, que serviu o ideal da Contra-Reforma.
/ 24 /
O BARROCO
Os dois séculos seguintes – XVII e
XVIII – são marcados, na Arte, pelo Barroco. Tudo o que nele é
exuberância, vida e gesticulação não obedece a outro ideal senão ao
espírito de triunfo. Ao Concílio de Trento e à Companhia de Jesus
deve ele indirectamente a sua força e a sua expressão.
A Igreja fora humilhada e
enfraquecera. O saque de Roma pelos Germanos em 1527 constituíra um
duro golpe; os Turcos às portas de Viena causavam permanente dúvida
e inquietação; o Protestantismo roubara-lhe povos inteiros. Mas
agora, animada com renovado vigor e decidida a levar o Evangelho a
todos os Continentes, sente-se reavivar em esperança de Mãe e Mestra
de gentes sem número. Assim, neste contexto, surge o triunfo do
Barroco na interpretação da vida, da natureza, do êxtase e do
entusiasmo. Por tal razão, o primeiro cliente dos arquitectos, dos
escultores e dos pintores dos séculos de então, antes dos soberanos
e dos príncipes, foi a Igreja. E a nova Arte, nascida em Roma,
provocaria o fervor das multidões, criaria a surpresa, suscitaria o
deslumbramento; ela própria tomar-se-ia espectáculo.
A Arte Barroca procurou, pois,
afirmar e enaltecer todas as verdades religiosas iluminadas pelo
Concílio Tridentino. Ante a negação da Presença Eucarística pelos
Reformadores, nasce a exaltação do Santíssimo Sacramento; ante a
ignorância generalizada, surge a necessidade da pregação. Desta
forma, constroem-se os tronos nos retábulos e os púlpitos nas
igrejas-salões. Se eram exíguos e não correspondiam às necessidades
da Igreja, os próprios templos anteriores não se poupavam para, em
seu lugar, se erguerem maiores edifícios; com o fim de criar
condições materiais favoráveis à evangelização, destruíram-se
certamente antiguidades de séculos, que hoje fariam parte do nosso
património. A preocupação era outra e urgia.
A arquitectura barroca portuguesa
caracteriza-se mais pela decoração do que propriamente pelas plantas
e alçados ou pela concepção do espaço. Nota-se nela a repetição de
formas movimentadas, curvilíneas e envolventes, num sentido de
equilíbrio simétrico ou assimétrico; a talha dourada e o azulejo são
a contribuição mais original do nosso Barroco, formando conjuntos
decorativos sem par.
Assim, as plantas de origem
maneirista perduraram entre nós ainda por largo tempo; a parede
ondulante, tão característica no Barroco italiano, só muito
tardiamente se assinala em Portugal. Apenas no reinado de D. João V,
com o enriquecimento do País motivado pela importação do ouro
brasileiro e com a vinda de mestres estrangeiros, como Ludovice,
Laprade e Nazoni, a nossa arquitectura se tornou decididamente
barroca, logo resvalando para o Rococó. Começou-se por obedecer à
planta rigorosamente circular, como no Convento da Serra do Pilar,
fronteiro ao Porto, e na capela de Santo Amaro, em Lisboa;
avançou-se depois para a planta poligonal, como na igreja das
dominicanas em Elvas, na capela do Senhor da Cruz em Barcelos e em
diversos templos religiosos existentes na zona aveirense. Mas a
igreja de planta centrada de maior interesse é a de Santa Engrácia,
construída em Lisboa a partir de 1682, rica no seu acentuado
barroquismo interior, feita sob o desenho e a orientação de João
Antunes, arquitecto da Casa Real.
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Torre dos Clérigos, no Porto. Século
XVIII |
A expansão do Barroco no território
português atingiu uma importância verdadeiramente extraordinária com
a construção desse gigantesco edifício que é o
palácio-convento-igreja de Mafra, onde trabalhou João Frederico
Ludovice – ou Ludwig – o mestre alemão italianizado, que antes dera
provas admiráveis como arquitecto da surpreendente capela-mor de sé
de Évora. Iniciado em 1717, o esplendoroso edifício de Mafra foi
sagrado em 1730; mas as obras continuaram até 1744. Aí se conjugam
elementos transalpinos (fachada e torres da igreja), alemães
(cúpulas bolbosas) e portugueses (torreões laterais); porém, a
arquitectura chã continua na
/ 25 / severidade das
fachadas, exceptuando a do corpo central da frontaria. O estilo
romano de Ludovice, dando origem a uma escola generalizada, orientou
o centro e o sul do País.
Em Coimbra, aponta-se a Biblioteca
da Universidade como criação do francês Cláudio de Laprade. Em
Lisboa, D. João V empreende a construção do aqueduto monumental das
águas livres. O Porto setecentista é marcado pela presença
inconfundível de Nicolau Nazoni, que lhe deu a destacada torre e
igreja dos Clérigos – a sua obra-prima, concluída em 1763. Este
arquitecto toscano, que dominou a região nortenha, soube encontrar
um novo estilo, inteiramente adaptado ao gosto nacional, fantasista
e cenográfico, rico em efeitos de luz e sombra, onde o granito toma
as formas mais expressivas e movimentadas. Com Nazoni e a partir
dele, o Rococó atinge uma enorme vulgaridade; em Lisboa, o húngaro
Carlos Mardel participa na reconstrução pombalina e Mateus Vicente
de Oliveira trabalha no Palácio de Queluz e na Basílica da Estrela,
iniciada em 1779 e consagrada após onze anos.
Deve também mencionar-se a capela de
S. João Baptista, na igreja de S. Roque, em Lisboa – preciosa jóia
da arte italiana dos meados do século XVIII, paga pelo ouro de D.
João V. Executada em pedraria, ela constitui, na opinião do Prof.
Reynaldo dos Santos, um «conjunto de harmonia e riqueza, como nem
mesmo em Itália existe outro igual».
(12)
Nesta época, ainda se verifica uma
desmedida profusão de imagens, ao gosto rococó, de madeira
policromada e estofada. Se nos primeiros tempos do Cristianismo os
Santos eram heróis, na Idade Média protectores, em toda a Idade
Moderna eles foram considerados como exemplos a imitar e a seguir.
Outrossim aqui se lembra o nome
famoso de Joaquim Machado de Castro (1731-1822) – o mais insigne
escultor português do século XVIII, que se ocupou da estátua
equestre de D. José I para o Terreiro do Paço e de algumas imagens
para a Estrela; a ele se deve o presépio da sé de Lisboa, cujas
figuras são de barro cozido e policromado.
No barro também trabalharam
numerosos artistas, quase todos anónimos; Aveiro foi um dos mais
notáveis centros barristas de Setecentos.
O SÉCULO XIX NA ARTE
À actividade artística que dominou o
século XIX, sem grande criatividade, convencionou-se dar o epíteto
de Neoclassicismo. Pretendendo erguer-se contra as extravagâncias do
Rococó, os arquitectos, pintores, escultores e decoradores
inspiraram-se sobretudo nas formas do Gótico, do Manuelino, do
Renascimento e até da Arte Muçulmana.
Dessa maneira, construíram-se
edifícios neogóticos – como a capela dos Pestanas, no Porto;
neomanuelinos – como a parte ocidental dos Jerónimos e o
palácio do Buçaco; neorenascentistas – como o Palácio da
Ajuda, o Teatro de S. Carlos e o Teatro Nacional de D. Maria lI, em
Lisboa, o Hospital de Santo António e a igreja da Ordem Terceira de
S. Francisco, no Porto, e a igreja do Bom Jesus do Monte, em Braga.
Por outro lado, a Arte Árabe tornou-se também uma fonte inspiradora
dos nossos artistas; aqui e ali – como na Praça do Campo Pequeno, em
Lisboa – vêem-se arcos ultrapassados ou em ferradura e torreões ao
gosto de minarete.
O século XIX, com todas as
convulsões sociais e políticas que sofreu, não foi favorável a
construções de igrejas ou conventos. Pelo contrário: a extinção das
Ordens e Congregações Religiosas provocou a destruição ou mutilação
de muitos edifícios de valor artístico e sobretudo a perca ou
dispersão do seu espólio. Só no final de Oitocentos e no início do
século actual se levantaram alguns modestos templos, seguindo
estilos anteriores, como aconteceu com a capela de Santa Luzia,
sobranceira a Viana do Castelo, o santuário do Senhor da Serra
(Coimbra), a igreja de Espinho, a igreja dos Anjos, em Lisboa, e a
basílica do Sameiro, em Braga. O século, cruzado por uma arte
eclética, morre sem grandes voos nem originalidade. Uma sucessão de
«estilos de revivência ou de ressurgimento» dominara a arquitectura;
a autoridade das formas históricas, contudo, tinha de ser
frontalmente quebrada, para que a era industrial pudesse criar um
estilo autenticamente contemporâneo.
A ARTE NOVA... E NÃO SÓ
Fachada de um prédio, no Porto (R.
de Cândido dos Reis, 75 – Séc. XX) |
O clima de instabilidade
governativa, a implantação da República e o deflagrar da primeira
Guerra Mundial fizeram com que os primeiros anos do século XX não
fossem propícios a uma renovação artística em Portugal; continuava a
verificar-se a utilização dos esquemas eclectistas anteriores,
embora aos mestres não faltasse competência. É de notar, porém, a
influência da chamada «Arte Nova», que fez proliferar,
principalmente na decoração, o emprego sistemático de curvas e
contracurvas, de estilizações florais, de artifícios de estuques, de
pinturas em azulejo e, sobretudo no Norte, de ferro em portões,
varandas, grades e mesmo em estruturas.
A «Arte Nova» apareceu em
1889, numa exposição universal de Paris; procurou ser uma hipótese
de modernidade, de criação de algo de actual e autêntico, aspirando
reagir contra as contínuas repetições que vinham a acontecer desde
os meados do século XVIII. Começando a declinar em 1910, acabou por
desaparecer em 1925, com a exposição do «Esprit Nouveau», também em
Paris. Fora efémera a sua duração.
/ 26 /
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Nos últimos anos da primeira metade
do século XX, construiu-se, em Lisboa, a igreja de Nossa Senhora de
Fátima, desenhada por Pardal Monteiro (1938), que, durante certo
tempo, foi apontada como exemplar único e válido de uma moderna
arquitectura religiosa em Portugal. Da mesma época é o Seminário de
Cristo-Rei, nos Olivais, com a sua igreja; um pouco posteriores são
as igrejas de S. João de Brito e de S. João de Deus, em Lisboa, e a
de Nossa Senhora da Conceição, no Porto. Entretanto, ia-se erguendo
o conjunto arquitectónico do Santuário de Fátima, sem originalidade
nem carácter, mas acolhedor de milhões de crentes que aí buscam a
paz de consciência e a luz do Evangelho, sob a protecção de Maria.
Porém, após a segunda Guerra Mundial
(1939-1945), assistiu-se a um sério esforço na procura de novas
formas artísticas que, passado algum tempo, dariam os seus frutos. A
um período de estagnação arquitectural sucederia uma época de
ousadas construções, usando plenamente os novos materiais. A igreja
de Moscavide, em Lisboa, traçada pelos Arquitectos João de Almeida e
Freitas Leal em 1956, na sua austera simplicidade revelou que era
possível introduzir entre nós o moderno estilo da Arquitectura
Universal e serviu de ensaio para uma melhor funcionalidade
litúrgica.
AS NOVAS IGREJAS
Na Arte da Igreja, além das suas
qualidades gerais, terá de haver um quê de mistério e de
transcendência: é claro que a preocupação em conseguir tal
objectivo, levará o artista a exprimir, em cada época, esta ou
aquela faceta da multiforme personalidade de Cristo e a encarar mais
especificamente, num ou noutro pormenor, a riqueza da Liturgia e a
devoção aos Santos. Como a Arte é um dos modos da comunicação humana
e social, a sua manifestação religiosa no conteúdo e na forma – que
não no tema (13) –
adapta-se ao tempo e ao espaço, segundo o grau de cultura e a
capacidade espiritual de quem serve, e a direcção cultual e piedosa
das comunidades. Nesta evolução, já não vale tanto para nós o
Pantocrator bizantino ou o Juiz medieval; fala-nos mais o Cristo
irmão e trabalhador, que eleva e salva a humanidade, vivendo e
sofrendo com ela.
Nos finais do século XIX, mas
sobretudo no nosso século, surgiu um movimento de renovação
litúrgica e começou a dar-se relevo ao sacerdócio comum dos fiéis. A
Liturgia deixou de ser propriedade exclusiva dos ministros oficiais
do culto, porque a própria assembleia voltou a participar nela e a
ser actora na Acção de Cristo.
Desta maneira, os progressos do
movimento litúrgico não apenas influenciaram a vida espiritual dos
católicos, mas também exerceram grande impacto sobre a evolução da
Arte Sacra. Esta, após dois séculos de mediocridade, adquiriu uma
nova face. O desejo dos liturgistas em favorecer a participação
activa dos crentes e de colocar em relevo o altar conjugou-se com as
possibilidades oferecidas pelos modernos processos de construção.
Assim, puderam e podem construir-se igrejas mais funcionais, onde os
espaços são elaborados em função das necessidades litúrgicas e onde,
com a supressão de paredes, a luz e a cor dos vitrais colaboram com
as massas e com as linhas para a criação do espaço sagrado.
Após algumas tentativas anteriores à
Guerra Mundial de 1914-1918, a primeira realização verdadeiramente
artística de uma igreja em cimento armado foi a de Notre-Dame du
Raincy (1921-1923), de elegância ao mesmo tempo audaciosa e
tradicional. Todavia, na França, este exemplo permaneceu isolado;
entre as duas guerras, foram a Alemanha, a Suíça e a Holanda os
países onde a renovação da arquitectura sacra produziu os frutos
mais notáveis. Rompia-se deliberadamente com os métodos herdados do
passado e harmonizavam-se as igrejas com as tendências actuais.
Igreja paroquial de Rio Maior (Arq. José
Luís Zúquete e José Bruschy – 1966/1968
Os templos de agora querem ostentar
a verdade dos materiais, para serem símbolo e testemunho da Verdade.
Os diversos elementos de construção não podem desaparecer debaixo da
forma, mas esta procurará adaptar-se-lhes. Se o betão, por exemplo,
é modelado, tendo em conta a sua natureza forte e deixando perceber
o seu aspecto negro, sem a falsidade do reboco ou do estuque e sem a
mácula da pintura, então ele é verdadeiro; mas, se com o cimento se
imita a pedra, se fazem arcos, se alindam superfícies, então ele
serve a falsidade. Por tal razão é que os artistas modernos, dentro
do contexto da autenticidade, têm procurado esforçar-se por
valorizar os materiais e daí arrancarem as propriedades
/ 27 / de um novo estilo. A
madeira é deixada sem pintura, o granito não é lavado, o betão não é
escondido, O ferro aceita-se na sua cor. Tudo isto parece exprimir,
na época de sinceridade em que vivemos, a simplicidade do
Cristianismo puro dos primeiros séculos, mas renovado à maneira dos
nossos tempos. Além disso, quando na construção dos edifícios
religiosos se aplicam os materiais da região, sem riqueza e com
economia, dá-se ao povo uma obra que ele aceita; se os cristãos
virem consagrados na casa de Deus o seu tijolo, o seu granito, o seu
calcário ou o seu azulejo – o que todos usam nas próprias habitações
– eles amarão decerto ainda mais as suas igrejas, como símbolo do
que os rodeia e como continuação espiritual dos seus lares.
As igrejas modernas visam
principalmente um centro convergente, que se corporiza no altar;
pela dedicação ritual, ele representa o próprio Cristo, que faz a
unidade dos baptizados; ele é a mesa onde se desenrola o Mistério
Eucarístico. Portanto, o altar aparece-nos realçado, iluminado e
enriquecido, em nobreza e proporção, sem ornamentos a desfigurarem
uma peça que se tem de impor por si mesma. Colocado o mais possível
próximo da assembleia, envolve-o um espaço que baste para a
dignidade da Liturgia. Ele, que é a razão de ser de toda a
construção, tem valor por si mesmo; a própria cruz – ou o crucifixo
– introduzida na Liturgia após o século XIII, ocupa um lugar
secundário. Assim se retomou a consciência de que o altar precede o
templo; antes de pensar neste, o homem crente construiu aquele, para
oferecer à Divindade dons e sacrifícios.
Mas as igrejas modernas também
consideram com devido relevo um outro aspecto importante, qual é a
disposição das pessoas no espaço sagrado. Toda a assembleia, sem
classes sociais – porque só há aqui uma única fraternidade social,
que deriva do Corpo Místico de Cristo – quer ser «assembleia
litúrgica», em especial na celebração da Eucaristia. Não se concebe
hoje uma celebração cultual realizada de costas para o povo, com o
altar arrumado no muro da ábside, como suporte de retábulo e de
imagens ou como mesa de candelabros e de vasos de flores e de
plantas.
A devoção aos Santos passou para o
sítio apropriado: eles são os amigos de Deus e os nossos amigos, que
nos ajudam a caminhar com Cristo; por conseguinte, na hodierna
arquitectura, as suas imagens fazem parte mais do povo do que do
altar, para onde o Barroco as havia levado. Maria ocupará apenas um
lugar especial, porque, no plano salvador, ela tem uma missão única,
como Mãe de Deus e Mãe da Igreja.
Todo o espaço sagrado deve,
portanto, ajudar a que os crentes se aproximem de Deus, na
simplicidade e na autenticidade. A Igreja, que sempre deu grande
liberdade aos artistas, não deseja que a Arte alguma vez possa
ofender a Doutrina, a Liturgia e o senso comum dos cristãos. O
demasiado profano, a complicação e a falsidade são outros tantos
defeitos que não se acham nos moldes dos nossos tempos. Embora
funcional, a igreja contemporânea não é a fria conclusão de um mero
espaço útil, porque aqueles que dela se servem têm propósitos de
santificação. Se os espectadores vão a uma sala de cinema para ver e
sentir cada um por si, o mesmo não se pode dizer da assembleia
cristã, reunida à volta do altar: aqui há participação espiritual,
donde flui a paz e o amor fraterno. A igreja actual, isenta do
supérfluo, dos nichos e dos altares devocionais – que poderão
construir-se numa cripta ou em espaços reservados – há-de inspirar
calma, recolhimento e abrigo à gente fatigada do barulho, do
movimento e do trabalho; atraiçoaria a sua missão sublime, se fosse
construído no meio da poluição sonora, dos gritos do comércio, dos
sons de altifalantes ou dos cartazes de propaganda. Ao lado do
coração das povoações, ela tem de ser um outro coração, onde os
utentes encontrem Cristo. A Arte Contemporânea é instrumento disto
mesmo, pelo seu valor expressivo e natural.
O II Concílio do Vaticano confirmou
e pôs em relevo o valor intrínseco da Palavra de Deus e a
necessidade da leitura e da reflexão da Bíblia Sagrada. Dentro deste
espírito, surgiu a necessidade de se reservar, no templo, um lugar
para a proclamação da Boa-Nova libertadora.
Nas igrejas actuais, em sítio bem
visível e à frente da assembleia, coloca-se o ambão, para as
leituras e para a pregação, que se fazem ouvir, se for necessário,
com o auxílio de amplificação sonora. Modelado no estilo do altar, o
ambão aparece-nos decorado com motivos alusivos ao Evangelho ou a
Cristo – a Palavra Viva e Pessoal do Pai no meio dos homens. Afinal,
restaurou-se o que já se fazia em séculos passados, como se pode
observar em Roma, na basílica de S. Lourenço fora dos muros e na
igreja de Santa Maria in Cosmedin.
Outro lugar que os artistas
contemporâneos procuram ter em grande consideração é o baptistério,
cuja solução ainda não parece evidente. Duas correntes se
entrechocam na colocação da fonte baptismal, provenientes
/ 28 / de concepções
diversas: a) – O Baptismo é o primeiro sacramento da iniciação
cristã e, por isso, considera-se como a porta de ingresso na
comunidade dos filhos de Deus; consequentemente, concluem alguns que
aquela deve ser posta junto à entrada da matriz. b) – Mas, dado o
seu valor único na Igreja, o rito deve desenvolver-se com a
participação da assembleia; assim pensam outros que a pia baptismal
ficará melhor em sítio mais apto à visão de todos.
A segunda hipótese é aquela que vai
sendo habitualmente seguida em adaptações de igrejas e em novas
construções.
Outrossim, não é de menosprezar o
lugar do Sacramento da Reconciliação, onde os sacerdotes atendem os
cristãos não só em confissão auricular tradicional mas também na
direcção espiritual. Tratado com essa finalidade e colocado em sítio
patente, ele chama a atenção das pessoas para a constante
actualização da misericórdia de Deus, que não deseja a morte do
pecador mas que se converta e viva.
E, se o templo conserva o Santíssimo
Sacramento para a adoração dos fiéis e para a reserva destinada aos
doentes, prevê-se no seu contexto uma capela ou um espaço recolhido
destinado ao sacrário, que atraia e chame sem violência. Aí deve
sobressair naturalmente um ambiente de silêncio e de oração, bem
propício ao crente que deseja encontrar-se com Cristo, Pão partido
para a sua fome de amor, de paz e de infinito.
Não é de somenos importância o
problema da iluminação das nossas igrejas, a qual não pode ser tão
reduzida que impeça a visão, nem tão clara que obste ao
recolhimento. Também aqui é de aplicar o velho adágio: no meio termo
está a virtude.
Quanto à luz eléctrica, o seu uso só
se justifica na igreja com o fim de a iluminar, mas sóbria, digna e
austeramente. Todavia, um foco de luz indirecta poderá fazer realçar
uma imagem, um motivo artístico ou mesmo o altar da Eucaristia.
RESTAURO E AMPLIAÇÃO DE IGREJAS
A restauração de quaisquer
monumentos ou edifícios é um problema complexo, cuja resolução tem
de atender a vários factores; em consequência, se um restauro se
antolha delicado, mais difícil é a sua concretização.
Igreja Paroquial de Calvão (Arq.
Abrunhosa de Brito e Manuel Magalhães – 1969/1970)
No caso específico das igrejas, há
que encarar não só os possíveis aspectos arqueológicos ou
artísticos, mas também o lado utilitário, se elas ainda estão
abertas ao culto; há que ver se a sua construção obedeceu a um único
estilo ou se, edificadas ao longo de séculos, manifestam vários
estilos; há que considerar se foram destruídas ou mutiladas
violentamente por incêndio, terramoto ou bombardeamento, ou se se
foram deteriorando por natural decomposição.
Hoje em dia, já não se pensa como na
época da Renascença, quando os artistas estavam convencidos de que
tudo o que era medieval não tinha significado; por tal motivo,
Bramante destruiu a velha basílica de S. Pedro, no Vaticano, para aí
levantar a actual. Também não se pensa em fazer desaparecer
edifícios, só porque recordam a tradição cristã, como aconteceu no
período louco da Revolução Francesa. Pelo contrário: procura-se
conservar e valorizar tudo o que os nossos antepassados nos legaram,
respeitar pormenores de monumentos e até utilizar os edifícios,
dando-lhes a mesma função para que foram construídos ou, se esta se
tem por desnecessária, uma outra que seja útil à população. Não
obstante, abandonam-se as reconstituições integrais, quando não se
sabe como anteriormente eram os monumentos ou as obras de arte.
Dado o aumento demográfico
verificado em certas regiões, acontece tornar-se urgente a ampliação
de igrejas e capelas. Para isso, os responsáveis e os arquitectos
estudam previamente se a construção aguenta o aumento, sem
aberração; isto dificilmente poderá fazer-se em monumentos antigos,
que veriam a sua traça adulterada ou mutilada.
Onde é possível e necessária, a
ampliação será concebida decerto na mesma escala e não destruirá as
proporções e o ritmo; obedecendo a um carácter de simplicidade,
embora dentro de planos modernos, não tenderá à unificação do
estilo, mas conservará tudo o que de bom exista no monumento.
Se são difíceis os restauros e as
adaptações de igrejas, mais difíceis se tornam as ampliações; agir
com prudência é a norma basilar para todos os responsáveis.
UMA CAPELA DE VANGUARDA
No nordeste da França, na Prefeitura
de Belfort e Diocese de Besançon, num sítio chamado Ronchamp,
ergue-se, desde 1955, uma das obras mais célebres, revolucionárias e
ousadas da arquitectura religiosa moderna.
/ 29 /
Capela de Nossa Senhora do Alto, em
Ronchamp, Franca (Le Corbusier, 1950/55) |
É uma capela executada conforme o
plano de Le Corbusier – um grande artista do nosso tempo que lançou
o seu documento para a posteridade.
Le Corbusier foi simbólico em
Ronchamp, para além do prático. Ao conceber a capela de Nossa
Senhora do Alto, pensou que a devoção dos fiéis, que subissem o cimo
da montanha, era mais poética e mística do que a da vida paroquial;
por isso, escutou os horizontes e, ao desenhar a sua capela, quis
que ela fosse um eco dos longes da paisagem circundante. Sem copiar
a natureza, inspirou-se nela; foi um arquitecto do espaço.
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As paredes maciças parecem obedecer
a uma força invisível, que as faz inclinarem-se e enrolarem-se como
papel; e o telhado saliente sugere a aba de um enorme chapéu, ou uma
fortaleza, ou o fundo de um navio rachado no sentido do comprimento
pelo contraforte aguçado de que está suspenso.
Convidado a criar um santuário num
cume de montanha, Le Corbusier quis, além disso, evocar o impreciso
passado pré-histórico e colocar a sua obra numa linha de sucessão
directa dos velhos templos. Daí, evitou toda a correlação entre o
exterior e o interior: as portas, que estão escondidas, procuram-se
como fendas, no flanco da montanha, e transpô-las é quase penetrar
numa caverna secreta e sagrada; só no interior nos apercebemos do
aspecto especificamente cristão de Ronchamp. A luz filtrada por
janelas de vitrais tão pequenas que de fora pouco mais parecem do
que rasgões ou buracos rectangulares, volta a ser o que foi na
arquitectura medieval: o reflexo visível da luz divina.
Em Ronchamp há autêntica
religiosidade; mas também vagueia uma qualidade estranhamente
inquietante, uma nostalgia pelas certezas de uma Fé que já não é
aceite sem discussão. Ronchamp reflecte a condição espiritual do
homem moderno – o que é bem a medida da sua grandeza como obra de
Arte.
De plano irregular e sem fachada
definida, a capela de Nossa Senhora do Alto compõe-se de uma única
nave, que desce interiormente para o altar, e de um alpendre, com
lugar de culto ao ar livre, para as grandes multidões. Ao procurar
entendê-la – e para isso tem que a amar – o visitante concluirá ser
o Cristianismo capaz, também no nosso tempo, de inspirar os génios
da Arte, que continuam livres na obediência ao Sagrado. Além disso,
Le Corbusier poderá dizer ao arquitecto moderno que se enquadre no
espiritual com verdade e simplicidade, sem deixar de respeitar o
urbanismo geográfico e social, de ouvir a melhor tradição e de
atingir o «símbolo». O arquitecto moderno, ao pretender ser
mensageiro e apóstolo de valores cristãos, procurará certamente que
as suas criações sejam sacramentais, testemunhando aos homens e à
natureza a presença actuante de Deus Criador e Salvador. É que há
muita gente que espera encontrar no interior dos nossos templos
oásis de paz e silêncio, senão poderosos auxílios em ordem à
concretização da verdade perante o erro, do amor perante o ódio, da
segurança perante a incerteza; e estas esperanças não podem ser
frustradas por aberrações que não são manifestações de Arte.
Na sequência deste pensamento, vem a
propósito citar o último Concílio Ecuménico, quando afirma: – «Deve
trabalhar-se por que os artistas se sintam compreendidos, na sua
actividade, pela Igreja e que, gozando de uma conveniente liberdade,
tenham mais facilidade de contactos com a comunidade cristã. A
Igreja deve também reconhecer as novas formas artísticas que,
segundo o génio próprio das várias nações e regiões, se adaptam às
exigências dos nossos contemporâneos. Sejam admitidos nos templos
quando, com linguagem conveniente e conforme às normas litúrgicas,
levantam o espírito para Deus».
(14)
Não falecem já em Portugal certos
edifícios sacros, espalhados pelo País, que obedecem a estas
preocupações de verdade e singeleza. As matrizes de Arroios, de Paço
d'Arcos e do Coração de Jesus em Lisboa, a paroquial de Rio Maior,
as igrejas dos Padres Dominicanos em Fátima e da Sociedade
Missionária Portuguesa em Valadares, os templos do Carvalhido, de
Cedofeita e da Boavista no Porto, as novas igrejas de Negrelos em
Santo Tirso e de S. Lázaro em Braga, e a cripta do Sameiro... são
meros exemplos de uma Arte Religiosa dos nossos dias, neste final do
século XX.
UM RELANCE POR AVEIRO
Num rápido e simples bosquejo pelo
território da Diocese de Aveiro, sem a preocupação de ser completo e
muito menos exaustivo, indicar-se-ão uns tantos exemplares da
arquitectura religiosa.
/ 30 /
Sabemos que muitas das nossas terras
já se encontram nomeadas em documentos anteriores à própria fundação
da Nacionalidade Portuguesa; há, por exemplo, uma alusão à presença
cristã na zona do Antuã em 569, quando Teodomiro, rei dos Suevos,
mandou reunir um Concílio em Lugo. Teria por aí existido algum
templo visigótico?
Muito posteriores são as referências
a outras povoações: 883 – São Lourenço do Bairro; 959 – Aveiro,
Alquerubim e Sangalhos; 961 – Arcos; século X – Aguada de Baixo,
Barrô e S. Cucufate da Moita; século XI – Anadia, Águeda, Cacia,
Eixo, Mamarrosa, Monsarros, Soza, Tamengos e Vilarinho do Bairro;
século XII – Albergaria-a-Velha, Avelãs de Caminho e Avelãs de Cima.
Também se pode concluir pela existência de mosteiros moçárabes: 922
– nas margens do rio Antuã, talvez Santa Marinha de Avanca; 957 –
Lamas do Vouga; 964 – Santo André de Sever do Vouga; 1002 – Rocas do
Vouga; 1050 – Cedrim do Vouga; 1095 – Eixo.
Contudo, não nos chegou qualquer
edifício cristão nas formas do Românico; apenas se conhece uma única
imagem da Virgem Maria, esculpida nesse estilo, que, tendo estado na
igreja de Soza, foi retirada do culto e substituída por uma outra em
traços góticos, da primeira metade do século XV. Decerto que o
primitivo templo que abrigou aquela imagem, mandada executar pelos
Congregados de Santa Maria de Rocamador, aí presentes desde 1192,
seria de construção românica, como românicas teriam sido outras
igrejas de vetustos povoados, erguidas após a Reconquista Cristã,
mas sacrificadas mais tarde para darem lugar a novos e mais
espaçosos edifícios. (15)
Como prova desta asserção, em
igrejas actuais ainda se conservam diversas lápides, referentes à
fundação ou dedicação de templos antigos. Vejamos: – Uma inscrição
lítica em Lamas do Vouga informa a dedicação de uma igreja no ano de
1170; (16) uma outra, na
matriz de Avelãs de Cima, atesta o ano de 1173; ainda outra,
existente em São Lourenço do Bairro, fala da igreja medieval fundada
em 1181; mais outra, esta em São João de Loure, indica a dedicação
de uma igreja em 1186; e, na paroquial da Moita, documenta-se a
reconstrução do templo em 1195. Já posterior – de 1253 – é a lápide
comemorativa da dedicação de uma igreja em Sant'Iago de Beduído
(Estarreja), embora se saiba ter aí existido um centro de culto nos
fins do século X ou princípios do seguinte.
Diz-se também que a vetusta igreja
de S. Miguel, que altaneira se erguia em Aveiro, remontava ao século
XI, talvez ao tempo do Conde D. Sisnando, senhor de Coimbra e das
terras entre o Douro a as fronteiras com os Mouros ao sul do
Mondego, por doação feita em 1086 por D. Fernando, rei de Leão. Foi
demolida em 1835, após o desfecho das guerras liberais, não fosse o
nome do celeste Arcanjo lembrar constantemente, no meio da Urbe, o
do Rei proscrito. Restam dela algumas relíquias de reconstrução
renascentista, guardadas no Museu de Aveiro.
Um outro santuário antigo, nesta
zona, é a capela de Nossa Senhora de Vagos – ou, como diziam os
medievos, Santa Maria de Vagos – que, no meio de um vasto ermo
campestre, é procurada por devotos e peregrinos.
Segundo a tradição, antes do
edifício existente, houve outro, afastado do sítio actual. Afirma-se
mesmo que esta primeira ermida datava do século XII ou do início do
seguinte. Foi entregue por el-Rei D. Sancho I ao Mosteiro de S.
Salvador de Grijó, mediante documento de doação de 18 de Agosto de
1200 (1238, da Era de César). Mais tarde, o mesmo Soberano doou-lhe
o Couto de S. Romão. Embora de Grijó, cujos monges tratavam do
templo e do culto, a ermida continuaria a ser lembrada pelos nossos
Reis, em agradecimento de favores recebidos por intercessão da Mãe
de Deus. D. Afonso II legou-lhe, em testamento de 1221, cem
morabitinos, para a compra de uma propriedade. Mais tarde, D. Manuel
I, em carta de 22 de Fevereiro de 1505, autorizou Gonçalo Gil, prior
da ermida, a doar-lhe umas marinhas de sal que de novo fizera.
Lápide de Lamas do Vouga – Vestígios da
igreja de 1170 (Era cristã)
A actual capela é de aspecto
corrente; há por lá vestígios de construção anterior, como as cruzes
da sagração, o arco de volta perfeita na entrada principal, a pia de
água benta junto à porta travessa – tudo dos meados do século XVI. O
brasão terá feito parte do epitáfio de Estêvão Coelho, que, depois
de devotamente por aí viver, morreu em 1515 e lá teve sepultura. A
imagem da Padroeira também parece datar do mesmo século XVI.
Ao Gótico das Ordens Mendicantes
obedeceram as traças iniciais do Convento de Nossa Senhora da
Misericórdia dos Padres Dominicanos, então à ilharga de Aveiro, e do
vizinho Mosteiro de Jesus – aquele principiado em 1423 e este em
1458. A demonstrar a veracidade desta afirmação temos os restos
preciosos de paredes dos primitivos edifícios, tanto na velha igreja
daquele Convento (actual sé episcopal) como no Museu
/ 31 / de Aveiro; o
campanário, os arcos em ogiva e as pedras sigladas marcam o
nascimento quatrocentista de ambos. Também em Aveiro existiu uma
capela gótica, dedicada a Santa Catarina, Virgem e Mártir;
desapareceu da nossa paisagem em 1835, demolida com a igreja de S.
Miguel.
Efectivamente, não possuímos
edifícios em estilo ogival; mas ele ficou bem documentado nas muitas
dezenas de imagens, ainda hoje ao culto em pequenas ermidas, em
capelas e em igrejas, ciosamente guardadas e acarinhadas pelas
populações. Feitas em calcário, mais ou menos artisticamente,
atribuem-se aos séculos XIV e XV e princípios do XVI. Da mesma época
são as pias baptismais de Águeda, de Avelãs de Caminho e de Vila
Nova de Monsarros, uma pia de água benta em Sangalhos, o túmulo dos
Borges na matriz da Moita e uma rosácea na capela do Brunhido, na
freguesia de Valongo do Vouga.
|
Registo especial se reserva agora à
escultura gótica da Virgem sentada com o Menino, que é a Titular da
capela de Nossa Senhora dos Banhos, na freguesia de Vilarinho do
Bairro. A sua existência nesta ermida indica que, antes do actual
edifício, outro ou outros existiram.
O modesto e vulgar santuário
encontra-se implantado na parte baixa da aldeia; o seu verdadeiro
interesse não é o artístico, mas o religioso e o etnográfico. Há sob
o altar um pequeno poço rectangular, ao qual se desce por uma
escadita; era a fonte inicial donde se tirava água para as pessoas
beberem, se banharem e levarem para casa. Tal água, fria, vem sendo
procurada, desde tempos recuados, pelas suas qualidades
minero-medicinais. Por isso, na capela se encontram muitos ex-votos
e até lápides de reconhecimento.
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Um testemunho da arte gótica em
Aveiro, no Mosteiro de Jesus, hoje Museu de Aveiro – Século XV |
Do Gótico arcaizante é a imagem de
Cristo, no cruzeiro de S. Domingos, em Aveiro; mas já é do Manuelino
a cruz, com seus remates em flor de lis, com seus cairéis a rebordar
e com seus arcos conopiais a abrigar os relevos da Paixão do Senhor.
Do Manuelino são algumas portas no velho Mosteiro de Jesus e ainda o
arco interior na capela de Santa Maria de Sá, também em Aveiro, que
atestam construções ou reconstruções; pertencem-lhe outrossim as
pias baptismais das matrizes de Sangalhos e de Valongo do Vouga, e a
da capela da Moita, na freguesia de Oliveirinha.
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Cruzeiro Gótico-Manuelino, em Aveiro
séculos. XV-XVI |
A Arte da Renascença e do Maneirismo
firmou-se nas nossas terras em muitas obras religiosas. A matriz de
Sever do Vouga sofreu uma reforma no século XVI, de cunho
renascentista. Em Aveiro, no ano de 1554, levantou-se o cruzeiro de
Sá, com templete; na igreja dos Padres Dominicanos (hoje, sé)
construíram-se as capelas devocionais à nossa direita, todas com as
datas de 1559 e 1560; e ergueram-se os retábulos da Visitação e da
Misericórdia e fez-se a deposição de Cristo e o sepulcro de D.
Catarina de Ataíde – todos da escola coimbrã. Um
/ 32 / pouco posteriormente,
em 1562, ergueu-se a capela de A-dos-Ferreiros, na paróquia do
Préstimo, e, em 1568, construiu-se a pequena capela de S.
Bartolomeu, na freguesia da Vera-Cruz (Aveiro).
|
Do mesmo ciclo mondeganho são os
túmulos da igreja de Trofa do Vouga, a deposição de Cristo e o
retábulo do Sacramento em Águeda, o nicho de Nossa Senhora da Graça
em Eixo, os arcos-cruzeiros da capela de Assequins, em Águeda, e das
paróquias de Travassô e de Frossos, os retábulos da capela de S.
João de Anadia, em Sangalhos, dos Santos Físicos de Aguim e da
capela da Mata, em Tamengos, e a pia baptismal de Frossos.
Enquadraram-se no mesmo estilo alguns restos existentes na capela de
S. Silvestre, em São João de Loure, e nas matrizes de Aguada de
Baixo, da Moita e de Tamengos. Obedecem-lhe também muitas imagens e
outros artifícios, que, apesar das reconstruções seguintes, chegaram
até aos nossos dias. À época final e tardia da Renascença pertencem
os arcos que foram das capelas laterais na igreja de Águeda, o
retábulo da Visitação na paroquial de Esgueira e muitos dos nossos
cruzeiros, com templete, que fazem parte da riqueza artística e
histórica de várias das nossas freguesias.
|
Pórtico da Igreja da Misericórdia,
em Aveiro Século XVII |
Em 1600, procedeu-se ao arranjo da
capela do Beco, em Macinhata do Vouga, e iniciou-se a construção da
igreja da Misericórdia, em Aveiro – o templo mais sólido que a
cidade possui: obedecendo talvez ao debuxo do italiano Filipe Terzi,
o edifício, essencialmente renascentista, marca a transição para o
Maneirismo. Deste período é, outrossim, a reforma do claustro do
Mosteiro de Jesus, os conventos do Carmo em Aveiro e no Buçaco e o
pórtico principal de Sant'lago de Beduído (Estarreja).
Neste momento, não se esquecem as
capelas circulares de Nossa Senhora das Neves, em Avelãs de Cima
(hoje sacristia de um templo do final do século XVII), de S. Simão,
no Bunheiro (1600), de S. Sebastião, em Vagos (1614), e do Espírito
Santo ou de Santo António, também em Vagos. Desta centúria ainda
provêm as capelas de Nossa Senhora das Lezírias, em São Lourenço do
Bairro, e de Nossa Senhora das Neves, em Vila Nova de Mansarros.
Da época barroca é a maior parte das
nossas igrejas, edificadas numa altura em que Portugal se
enriquecera, mercê do ouro vindo das minas brasileiras. Todavia, são
características as capelas poligonais da Madre de Deus (século XVII),
dos Santos Mártires (1670), de S. Gonçalinho (1714) e do Senhor das
Barrocas (1722) – todas na Cidade de Aveiro – a que se acrescentam a
de Nossa Senhora das Areias, em São Jacinto, ainda do século XVII, e
a das Almas da Areosa, em Aguada de Cima, já tardia de 1769.
Espécime singular do Rococó é, na
Vista Alegre, a formosíssima capela de Nossa Senhora da Penha de
França, onde jaz o movimentado e magnífico túmulo do Bispo de
Mirando do Douro, D. Manuel de Moura Manuel, obra executada por
Cláudio Laprade (final do século XVII).
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Portal da Capela do Senhor das
Barrocas, em Aveiro – Século XVIII |
Estátua tumular de D. Manuel de Moura
Manuel na capela da Vista Alegre, Ílhavo – Final do século XVII
Não são menos notáveis, neste
templo, com proporções de igreja, outros mimos artísticos em que o
Prelado se esmerou, sem olhar a despesas. O retábulo maior em
mármores polícromos e mais dois em madeira dourada exemplificam bem
o Barroco pedrino; a Árvore de Jessé e a Assunção da Virgem decoram
as abóbadas, respectivamente, do corpo e da capela-mor. Interessa
ainda salientar os azulejos figurativos que revestem por inteiro as
paredes da nave, onde ressalta a intensidade da pintura azul e o
encanto das cenas representadas; atribuem-se a Gabriel del Barco, de
naturalidade espanhola mas com residência em Lisboa.
Ao falar de azulejaria, lembram-se
os belos conjuntos de algumas igrejas: os do interior da
Misericórdia, em Aveiro, os de Esgueira, os de Águeda e alguns de
tipo tapete na sé – todos do século XVII e de fabrico lisbonense.
Não só. Um acompanhamento azulejar, de fabrico coimbrão e com data
de 1737, completa o adorno da igreja das Carmelitas, em Aveiro, onde
predomina a talha dourada. A parte inferior das paredes da igreja de
Jesus, também nesta Cidade, foi coberta por azulejo, provavelmente
de fabrico coimbrão, à volta do ano de 1740. Ainda em Aveiro, a
igreja de Santo António ostenta grandes painéis de azulejos de
Coimbra, pintados a azul, que provêm dos finais da primeira metade
do século XVIII. Da mesma ocasião e do mesmo fabrico são os da
igreja de S. Francisco, anexa à anterior. A capela-mor da igreja de
Arcos foi embelezada em 1741 e 1747 por quatro painéis parietais,
onde se exprimem cenas alusivas ao Sacramento da Eucaristia. Ao
concheado rococó obedecem os azulejos da nave da sé de Aveiro, que
demonstram pertencer ao ciclo da fabricação coimbrã de Sousa
Carvalho, ou seja, da época próxima de 1790.
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A maioria dos nossos templos foi
enriquecida com altares, tribunas, retábulos e mesmo apainelamentos
de talha de madeira dourada, nas suas diversas e sucessivas
manifestações: inicial, esplendorosa e concheada. Em Aveiro são
conjuntos únicos no género os das referidas igrejas de Jesus e das
Carmelitas; e, se alargarmos a vista, encontraremos jóias artísticas
em numerosas igrejas, como nas de Águeda, Albergaria-a-Velha. Arcos,
Barrô, Branca, Murtosa, Oiã, Oliveira do Bairro, Sangalhos, São João
de Loure, Talhadas e Vera-Cruz.
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Túmulo de Santa Joana Princesa, em
Aveiro, no Mosteiro de Jesus, actual Museu da cidade – inícios
do século XVIII. |
É justa uma especial alusão ao
túmulo da Princesa Santa Joana, executado em 1698-1709, segundo o
projecto de João Antunes, arquitecto da Casa Real. No antigo coro de
baixo do Mosteiro de Jesus, ricamente guarnecido de talhas e
mármores, está este sepulcro, todo em mármores policromos, embutidos
com suma delicadeza e perfeição – exemplar equilibrado, sóbrio e
digno do Barroco nacional, que Aveiro se orgulha de possuir.
Magistralmente concebido e minuciosamente acabado, o sarcófago
representa um tão aturado trabalho de reunião de milhares de
minúsculas pedrinhas que, se não fossem as diferenças de colorido,
levar-nos-ia à ilusão de se tratar de uma peça única. Consta de uma
arca rectangular, assente sobre um bloco de mármore de Carrara, onde
se esculpiu uma Fénix, mas parece sustentada por quatro querubins
que, de braços erguidos, se vêem nos cantos. Outros anjos ostentam,
sobre a arca, o escudo português, encimado pela coroa real, entre
volutas. Pode afirmar-se que, no género de embrechado, é um dos mais
belos monumentos fúnebres do mundo.
Um aspecto do Seminário Diocesano de
Aveiro (1942)
Não tiveram grande relevo e
carácter, entre nós, obras de finalidade religiosa, relativas ao
período neoclássico. De 1863 é o pórtico da capela de Nossa Senhora
dos Navegantes, no Forte da Barra, que poderá considerar-se um
exemplar do Neomanuelino; também os retábulos
/ 34 / de altar da igreja de
Fonte de Angeão, apesar de executados em 1950, obedecem à
Neo-renascença e ao Neomanuelino.
Talvez não seja descabida aqui uma
nota sobre o santuário de Nossa Senhora do Socorro, em
Albergaria-a-Velha, construído em 1856-1857. Não tem qualquer valor
arquitectónico; a sua importância advém-Ihe – isso sim – do motivo
da sua edificação e do lugar que ocupa na piedade dos católicos da
vila e da região. Situado na colina do Bico do Monte, denominada
«Pedra de Águia» em 1117, no tempo em que a Rainha D. Teresa
concedeu a carta do Couto de Osseloa para se instituir uma
albergaria, o modesto e pequeno templo deve a sua construção a um
voto feito pelo povo de Albergaria-a-Velha em Outubro de 1855,
aquando da terrível epidemia do cólera-morbus. E, desde
então, a capela tem sido meta de peregrinações, de concentrações e
de preces comunitárias e individuais.
Contemporânea da Chamada «Arte Nova»
– a que pertencem numerosos pormenores de fachadas, interessantes
pinturas em azulejo, belos relevos em pedra, elegantes gradeamentos
de varandas em ferro-forjado e graciosos tectos em estuque – é a
cúpula que abriga o altar da Eucaristia, na catedral de Aveiro.
Executada na última década do século XIX para o camarim do Senhor
dos Passos, que se destruiu em 1974 a fim de se proceder à ampliação
da igreja, a referida cúpula, em gesso, foi aqui refeita, peça por
peça, no ano imediato; além de outros, há nela símbolos da paixão de
Cristo.
Entretanto, a Diocese de Aveiro, que
havia sido instituída em 1774 e extinta em 1882, fora restaurada em
1938. D. João Evangelista de Lima Vidal, colocado à frente dos seus
destinos religiosos – primeiro como Administrador Apostólico e logo
depois como Arcebispo-Bispo – pensou imediatamente na edificação de
um imóvel para instalar o Seminário Episcopal; o projecto acabou por
ser entregue aos arquitectos portuenses Cunha Leão, Morais Soares e
Fortunato Cabral (ARS – Arquitectos), que apresentaram o estudo
preliminar em 1942.
A ideia que normalmente se tem de um
seminário, como de um mosteiro, é a de casa fechada, quase triste
habitação de quem nunca teve ou perdeu a alegria de viver, ou para
lá foi mandado contra a própria vontade. Em Aveiro, os responsáveis
do Seminário procuraram criar um ambiente atractivo, cheio de luz,
de carinho e de alegria. Por isso, a capela, o refeitório, os
quartos, as salas e outras divisões abrem-se em amplas rosáceas e
janelas. Toda a construção, funcional, séria e acolhedora, inspira
simplicidade e leveza. Usando os materiais cerâmicos da zona, o
Seminário enquadra-se perfeitamente no panorama da região, como
produto do nosso trabalho e resultado do nosso esforço; também por
tal motivo ele é amado pelos diocesanos de Aveiro.
Dado o aumento demográfico das
nossas freguesias por um lado, por outro o estado envelhecido ou
ruinoso de algumas igrejas, e, ainda por outro, as exigências da
renovação litúrgica e pastoral do II Concílio do Vaticano, nasceu
por toda a parte um movimento quase generalizado em ordem à
ampliação, remodelação e adaptação dos antigos templos, senão mesmo
à construção de novos, dotados de espaço mais largo.
Anterior a este período é o início
da edificação das igrejas paroquiais de São Bernardo (1956-1966), da
PaIhaça (1957-1964), de Bustos (1959-1964) e da Ribeira de Fráguas
(1959-1971; (17) todas
elas, apanhadas pela renovação conciliar na fase das obras,
assinalam a tentativa de adaptação da planta rectangular numa
solução que desejou pôr o altar junto da assembleia. Não obstante, a
fonte baptismal permaneceu perto da entrada principal e o sacrário
ocupou a presidência.
As ideias atrás expostas, em
consonância com a presente actualização litúrgica e com a respectiva
resposta da parte dos artistas, estiveram subjacentes na elaboração
dos projectos das novas igrejas paroquiais de Santo António
(1966-1971), Paradela do Vouga (1968-1973), Gafanha do Carmo
1968-1974), Calvão (1969-1974), Ponte de Vagos (1971), Gafanha da
Boa-Hora (1971-...) e Santo André (1979-...)
(18) O mesmo se tem procurado executar nas
remodelações e ampliações de antigos templos, como aconteceu na
Gafanha da Nazaré, Vera Cruz, Canelas, Ancas, Beduído, Nariz, Cedrim
do Vouga, Couto de Esteves, Vagos, Ílhavo, Silva Escura e Barrô.
Todas estas preocupações pela
modernização das casas de oração obedeceram a uma concepção da
Igreja, como família de Deus; na ordem plástica, elas são a
concretização do próprio Mistério da Igreja. É que o templo
destina-se, outrossim, a ser um «sacramento», isto é, um sinal
visível de realidades invisíveis, um indicativo da presença de Deus
no meio dos homens. Também os arquitectos, falando a linguagem da
catequese,
/ 35 / são responsáveis pela
genuinidade da fé daqueles que visitam ou frequentam as obras saídas
do seu talento e do seu amor.
ALGUNS EXEMPLOS
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Para não tornar demasiado longo este
já longo apanhado – e só por isso – reservamos os últimos períodos
apenas a alguns edifícios religiosos, novos ou remodelados, cujas
linhas nos parecem coincidentes com as actuais e felizes exigências
da Liturgia e da Pastoral e com os anseios da Arte Moderna. Neles,
pela linguagem da concepção do espaço e pelo desenho e disposição
das diversas peças sagradas, os projectistas têm deixado não apenas
a expressão do seu saber, mas ainda o testemunho do seu amor. Além
disso, como não há-de sentir-se ditoso o arquitecto da época do
cimento armado, ao ser-lhe dada a facilidade técnica de vencer
grandes espaços e de construir templos mais ajustados à teologia da
Igreja?
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Igreja paroquial de Sever do Vouga
(remodelação e ampliação em 1966/67). |
É de notar que em todas estas obras,
dentro das possibilidades, também se vai dando importância aos
locais para a catequese das crianças e para a formação dos jovens e
dos adultos; assim se responde às recomendações do Papa João Paulo
lI, na sua Exortação Apostólica «Catechesi Tradendae», quando fala
da prioridade do ensino cristão nos planos pastorais: – «A Igreja é
convidada a consagrar à catequese os seus melhores recursos de
pessoal e de energias, sem poupar esforços, trabalhos e meios
materiais, a fim de a organizar melhor e de formar para a mesma
pessoas qualificadas». (19)
E, mais adiante, lembra ainda o mesmo Pontífice: – «Todas as
paróquias têm o dever de proverem ao que é necessário para uma
catequese considerada em todos os seus aspectos, de multiplicarem e
adaptarem os locais de catequese, na medida em que isso for possível
e útil, e de vigiarem pela qualidade da formação religiosa e pela
integração dos diversos grupos no corpo eclesial».
(20)
No campo das remodelações com
ampliação, pode destacar-se o que se fez na igreja de Santa Maria de
Sever do Vouga, em 1966-1967, obedecendo ao estudo feito pelos
arquitectos portuenses Abrunhosa de Brito e Manuel Magalhães. O
templo era um edifício acanhado e escuro, de três naves separadas
por grossas e inestéticas colunas.
Desde logo se resolveu conservar
todos os elementos de interesse arqueológico e artístico,
poupando-os escrupulosamente e conferindo-lhes um lugar no espaço
remodelado; ao mesmo tempo, tornava-se imperioso modificar, mais ou
menos profundamente, tudo aquilo que prejudicasse as modernas
exigências da acção litúrgica e pastoral.
Dentro destes parâmetros,
destruiu-se a estrutura interior das três naves e criou-se uma nova
estrutura para uma única tão ampla quanto possível, com boa
visibilidade e sem obstáculos à participação; além disso,
construiu-se um balcão para aumentar ainda mais a capacidade e
deu-se ao presbitério a largueza indispensável sem mobilizar a zona
dos fiéis.
O altar foi trazido para a boca da
antiga capela-mor, a fim de ser facilitada a celebração face ao
povo; no ambão utilizou-se uma boa peça de talha de madeira; a fonte
baptismal foi condignamente implantada de modo a ser facilmente
lembrada e venerada; o lugar da Reconciliação colocou-se próximo do
lugar do Baptismo, porque ambos os sacramentos são sinais de
renúncia ao pecado.
Exteriormente, poupou-se a torre
sineira e a fachada; esta, porém, encontrando-se em mau estado,
depois de apeada, reconstruiu-se fazendo-a rodar sobre a pilastra
comum da torre. Com isto, mais se desenvolveu a área interna.
Dentro, realçaram-se as três capelas
abobadadas numa das quais se conserva o Santíssimo Sacramento e
aproveitou-se o grande púlpito, que é uma das peças tidas em maior
consideração. A imagem da Padroeira, junto à porta principal, parece
receber maternalmente todos os que vão abrigar-se sob aquele tecto,
no meio daquelas paredes em que se mostra a Verdade no betão à vista
e no tijolo maciço, para reflectirem na Palavra de Deus e para
comungarem a Cristo na totalidade do seu amor.
/ 36 /
A Igreja de Sever do Vouga é um
exemplo de como se pode ajustar o moderno ao antigo.
Em 1967-1968 edificou-se, no
concelho de Aveiro, a igreja matriz de Nossa Senhora de Fátima, para
servir de centro de culto a uma paróquia eclesiástica, instituída
uns anos antes; desenhou o plano o Arq. Luís Cunha, do Porto. A
ideia-base que presidiu ao trabalho foi a criação de um local de
encontro em todo o sentido do termo: encontro com Deus,
evidentemente e em primeiro lugar, mas também encontro entre os
homens e as mulheres, neste caso os habitantes de duas povoações
equidistantemente próximas.
Na sua composição geral, os volumes,
mais ou menos fragmentados mas aglutinados em volta de um núcleo
mais alto, não diferem essencialmente de casas que venham a
construir-se em redor da igreja; assim, esta não será um corpo
estranho ao aglomerado a que certamente dará origem.
Construtivamente, o edifício é simples, tendo havido o cuidado de
evitar a variedade de materiais; daqui resultaram valores de pureza
e de dignidade, que tão importantes são para traduzirem alguns dos
aspectos mais característicos da Igreja do nosso tempo.
Igreja paroquial de Nossa Senhora de
Fátima – Aveiro (1967/68)
Quem olha de fora tão singular
construção, toda em tijolo maciço à vista e em betão sem
revestimento, não vê nela senão uma obra a parecer incompleta, com
torres truncadas. Foi exactamente o que se pretendeu; dessa forma,
ela causa uma séria interpelação ao viajante da vizinha estrada e
dir-lhe-á que a Igreja, presente embora no mundo, jamais aqui
alcançará a perfeição. Só na parusia, para lá dos tempos e dos
séculos, é que a comunidade dos redimidos completamente se realiza
no amor.
Mais ainda: o projectista quis
tirar-lhe o aspecto exterior de templo para afirmar que só quem
entra e está na Igreja é que conhece algo da sua vida e do seu
mistério; há que ultrapassar os umbrais para encontrar o símbolo do
Baptismo, a mesa da Eucaristia, o sacrário da Reserva e a imagem do
Crucificado. A própria verdade do tijolo e a fortaleza do cimento
são outros sinais da Verdade e da Fortaleza de Deus. No interior,
houve uma geral preocupação de organizar os espaços de modo a
permitir uma acção litúrgica correcta: unidade da assembleia,
disposição desta em relação ao santuário, colocação deste em franca
comunicação com aquela, apesar de definido por nível desigual do
pavimento, luz intensificada e movimento ascensional do tecto.
Previu-se ainda a articulação de outros elementos menos ligados a
uma acção litúrgica comunitária, mas muito importantes na vida da
Igreja, como a capela do Sacramento e o baptistério.
Se isto não bastasse, o próprio
crucifixo, idealizado e construído por Luís Cunha, foi feito de
pequenas placas de espelho, onde o visitante ou o cristão se podem
ver reflectidos. A mensagem mostra-se evidente: o homem só é grande,
num prisma de fé, quando se projecta em Cristo e procura que a sua
vida se adapte e se confunda com a d'Ele.
Em Soza, entre os anos de 1971 e de
1973, efectuaram-se profundas obras na igreja paroquial, segundo o
projecto e a orientação da arquitecta aveirense D. Maria Adozinda
Gamelas de Albuquerque.
O edifício, dos finais do século
XVII, encontrava-se em mau estado e era incómodo e pequeno para a
freguesia. Desde logo, portanto, mereceu uma dupla atenção: o
restauro e a remodelação interior e exterior, e o aumento da área,
lançando-se-lhe um transepto mas respeitando-se-Ihe a estética. Com
a execução de tal plano, conseguiu dar-se-lhe uma maior capacidade,
necessária para as habituais celebrações comunitárias da Liturgia.
Simultaneamente, colocou-se para cá
do arco-cruzeiro o altar da Eucaristia, o qual foi assente sobre uma
bela e artística pedra que era o suporte do púlpito. À frente dos
fiéis ficou também a pia baptismal; as paredes forraram-se a
azulejo; as peças de interesse foram valorizadas; e voltou ao culto
a imagem gótica quatrocentista de Santa Maria de Rocamador.
Numa paróquia dos subúrbios de
Aveiro, de criação recente, foi dedicada ao serviço religioso, em
1976, a nova igreja de Santa Joana, cuja construção, delineada pelo
já mencionado Arq. Luís Cunha, teve início em 1972. Ela constitui
como que o monumento comemorativo do quinto centenário da chegada da
Santa Princesa à então Vila de Aveiro.
Ao traçar o projecto, o seu
responsável atendeu sobretudo a dois princípios bem actuais: – a) o
relevo dado à celebração da Eucaristia, que o levou a realçar o
altar e outros elementos com ele directamente relacionados, sem
colunas que afectassem a visibilidade e sem elementos decorativos
que diminuíssem a importância
/ 37 / dos ritos litúrgicos;
b) a ênfase posta no sentido comunitário desses mesmos actos, que
fez com que criasse condições de igualdade para os fiéis, dotando a
nave de uma forma não muito distanciada da que espontaneamente toma
uma multidão, quando é fortemente solicitada por um interesse que
atinge por igual todos os seus membros.
Todavia, a conveniência das
comunidades cristãs não se pode circunscrever à exclusiva
participação na Liturgia; muitas outras actividades, tais como
conferências, cursos, espectáculos ou simples convívios em tempo de
lazer... contribuem para que os laços de amizade se reforcem e
consolidem. Para isso. também aqui se previram lugares apropriados.
Mais coisas se poderiam enumerar,
como a nudez ornamental que se identifica com o sentido de pobreza,
ou a escassez de imagens que estimula a uma devoção esclarecida; mas
seria impertinência entrar em minúcias de pormenor.
Em concreto, surgiu um complexo com:
– um sector estritamente reservado à acção litúrgica, onde está o
altar, o sacrário, a pia baptismal, a pintura da Padroeira e a
imagem da Virgem Maria; um sector polivalente, também destinado a
sessões de cultura, de formação e de recreio; um sector de salas
para catequese, biblioteca, etc.; e um sector de convívio, com bar e
sala de estar. Todos estes espaços estão directa ou indirectamente
em conexão com o espaço central e podem ser isolados, por meio de
divisórias de correr.
Igreja paroquial de Santa Joana – Aveiro
(1972/76)
A igreja de Santa Joana é, de facto,
uma construção pouco vulgar, onde os volumes se desenvolvem
predominantemente na horizontal, harmonizando-se com a vastidão da
planície aveirense; apenas a verticalidade da torre denuncia a sua
presença. Talvez lembre as antigas basílicas bizantinas, tanto pela
grandeza interior como pela configuração externa e ainda pelo
movimento dos telhados que se entrelaçam e combinam uns com os
outros.
No tímpano central da frontaria,
figurou-se Cristo em majestade, como Senhor do Universo; separados,
outros dois símbolos foram desenhados no cimento: a Mão do Pai e a
Pomba do Espírito Santo. Noutros tímpanos da mesma fachada, o
arquitecto modelou algumas alusões a Santa Joana.
No santuário, Luís Cunha tornou-se
também pintor e... pintou o políptico da Padroeira, comentando a sua
vida em linguagem surrealista; será uma expressão artística que
pretende dizer mais do que aquilo que os olhos vêem. Aí se descobre,
à volta da figura central, a tomada de hábito e o corte dos cabelos,
o diálogo com D. João II e o sonho da morte de Ricardo III, o
martírio das pestes e a saída de Aveiro, o funeral e a devoção à
paixão de Cristo, simbolizada na coroa de espinhos. Por cima, numa
saliência triangular, representa-se o Mistério da Trindade: a Mão, a
Pomba e a Cruz... uma cruz cujo braço esquerdo se alonga no espaço e
no tempo, como que a abarcar toda a história humana.
Por trás do sacrário, na parede,
desenvolve-se um grande vitral, em forma de rosácea, de vidros
policromados, semelhando um potente foco de luz irradiante. Do outro
lado, mais cinco pequenas rosáceas, dispostas em forma de cruz
grega, dizem-nos que o Espírito de Deus paira sobre as ondas do mar
e da vida e enche a terra inteira.
Em Pessegueiro do Vouga desde há
muito que se tornava imperiosa a ampliação da igreja local; foi o
que se fez em 1972-1978. Porém, aproveitou-se a oportunidade para
dar ao espaço mais funcionalidade, em consonância com as modernas
regras litúrgicas.
No desenvolvimento do programa,
demoliu-se uma das paredes laterais e acrescentou-se, por aí, a
nave; junto à outra parede, que para isso foi adaptada, colocou-se o
altar da Eucaristia. Houve assim uma rotação de noventa graus.
Interiormente, todas as superfícies
verticais foram azulejadas; a luz começou a cair mais intensamente
sobre o presbitério; o ambão, a pia baptismal e a presidência
distribuíram-se por lugares próprios e visíveis. Não se
menosprezaram os elementos antigos de interesse, como o retábulo
principal – agora à nossa esquerda – onde ficou a Sagrada Reserva; o
«Apostolado», em tela, que não se apresentava com destaque, ocupa
actualmente um lugar de maior proeminência do que seria de desejar.
No sítio da capela-mor, formaram-se
a sacristia e umas salas; e, junto à entrada habitual, estendeu-se
uma alpendrada. O templo, dos finais do século XVIII, viu-se também
remoçado com as obras de beneficiação que
/ 38 / foram realizadas com
critério e cuidado, conforme o plano da mencionada arquitecta
aveirense D. Maria Adozinda Gamelas de Albuquerque.
Foi o Arq. Pedro Corujo Bernardes,
de Ílhavo, quem se encarregou de projectar a nova capela de Vale de
Ílhavo, construída em 1973-1976.
No seu exterior, o edifício não
pretende distinguir-se demasiadamente da zona residencial
envolvente, senão apenas no tamanho; mas tal diferenciação é
discreta. Houve, pois, a preocupação de coordenar o seu carácter com
as moradias circunvizinhas, não lhe dando nem riqueza nem
monumentalidade.
À entrada, um átrio aberto
destina-se a uma zona de recepção e de convívio, e serve de ponto de
partida para a assembleia. No interior, não há expressões que, de
algum modo, possam significar individualismo, mas sim um espaço que
ajuda a criar comunidade e a fomentar um ambiente de família. As
condições de luz apropriada, de boa acústica, de simplicidade pobre,
sem isso significar miséria – tudo são pormenores fundamentais que
contribuem para o bem-estar de uma participação litúrgica, fraterna
e alegre, à volta de Jesus Cristo Ressuscitado.
A igreja de Águeda apresentava-se
carecida de benfeitorias, dado o seu envelhecimento. Porém, fazer
obras nesta altura pós-conciliar subentendia necessariamente uma
profunda remodelação em ordem a torná-la mais funcional.
O templo oferecia, contudo, além de
peças mais ou menos isoladas mas de grande interesse
histórico-artístico, um conjunto de soluções introduzidas ao longo
dos séculos, como o valioso retábulo renascentista em pedra, os
retábulos em talha de madeira dourada e a pia baptismal gótica,
colocada em lugar inadequado. De todo o volume interno, destacava-se
a nave lateral da esquerda, única, pois no lado oposto somente
existia uma sucessão de capelas; aquela tinha interesse, não
obstante o primarismo das ogivas, de feição popular, e nestas
haveria de se ter cuidado em salvaguardar os arcos de entrada. Outro
elemento de valor a poupar seria o tecto em caixotões, que
constituía a cobertura da nave central.
Exteriormente, a única fachada com
trabalho em granito e coerência de desenho era a frontaria com sua
torre.
Ao mesmo tempo, desejava-se dotar a
comunidade católica de Águeda de um programa consentâneo com as
exigências litúrgicas e pastorais do momento presente, respeitando
os valores da história e da arte, mas dotando o complexo religioso
de um mais amplo lugar de culto, de um lugar para as celebrações
baptismais, de várias salas, de um museu e de uma capela mortuária.
Fora, integrado na construção antiga, delineava-se um átrio de
entrada, para abrigo da chuva e do calor, para diálogo amigo entre
as pessoas e, sobretudo, para acolhimento e princípio de
interiorização – atitude indispensável ao entrar no santuário.
Elaborado todo o plano pelos Arq.
Abrunhoza de Brito e Manuel Magalhães, já citados, as obras
decorreram desde 1974 até 1977; foi responsável último pela execução
dos trabalhos o Eng. Neftali Sucena, de Águeda. Houve carinho pelo
passado, na secular igreja de Santa Eulália, mas olhou-se decidida e
corajosamente para o presente, porque os edifícios são para servir
as comunidades, e não vice-versa.
Dada a impossibilidade de
recuperação da igreja de Ouca, pelo estado precário e ruinoso em que
se encontrava, a paróquia encarou definitivamente a sua demolição e
decidiu-se a levantar um novo templo; foi o que concretizou nos anos
de 1975-1977.
O aludido Arq. Pedro Corujo
Bernardes idealizou um plano trapezoidal, tendo como chamada um
alpendre coberto a enquadrar uma torre sineira e a servir de
resguardo à entrada.
O arranjo do espaço interior foi
concebido de maneira a criar-se uma assembleia tanto quanto possível
em volta do altar. Este, o sacrário e a pia baptismal constituem um
conjunto simples e integrado junto à parede do fundo, onde não falta
a decoração feita com peças de talha setecentista da velha igreja.
A iluminação, suficientemente
reduzida, incide sobretudo no altar. Todos os acabamentos são
caracterizados pela singeleza, quer nas brancas paredes a crespo,
quer no acentuado da estrutura em betão aparente. Se alguma coisa se
destaca arquitectonicamente neste templo, integrado na ambiência
local, é apenas a torre sineira com seu carrilhão, que anuncia
festivamente as horas do dia e convida os crentes à oração.
Desmembrada do Bunheiro, a paróquia
da Torreira foi instituída em 1928; aos poucos, conforme se
conseguiam fundos monetários, ergueu a sua igreja matriz entre 1934
e 1955. Devido à demora da construção e à pobreza dos materiais
empregados, o edifício cedo começou a apresentar indícios de
envelhecimento precoce, senão mesmo de ruína.
Contudo, para além deste motivo
ponderoso, outros se impuseram para que fosse estudado o problema da
consolidação, remodelação e ampliação: – a necessidade de um espaço
onde as celebrações comunitárias da Liturgia pudessem ser
valorizadas, a dignificação de uma casa que não desmerecesse das
outras que a cercam, e a urgência de um salão para apoio de certos
trabalhos pastorais, indispensáveis à promoção humana, social e
religiosa do povo.
/ 39 /
Com tais propósitos, a Arquitecta Maria Adozinda Gamelas de Albuquerque projectou um plano que, aceite pelos
responsáveis, foi concretizado em 1977-1979.
A igreja da Torreira, agora
inteiramente azulejada e libertada das colunas que estorvavam a
visibilidade, tomou novo aspecto, sóbrio, simples e belo, criando e
oferecendo um ambiente de recolhimento. Local de comunhão com Deus e
de uns com os outros, é o resultado de uma solução arquitectural de
feição moderna. Todas as confluências de luz, de orientação, de
realce, de motivos... se fixam na zona da presidência, francamente
desafogada e contendo os elementos fundamentais: altar, ambão, fonte
baptismal e sacrário. Uma imagem de Cristo Ressuscitado e glorioso,
se representa directamente a realidade do Morto-Vivo, é outrossim o
símbolo de uma religião que liberta.
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Vai já extensa esta série de notas;
não obstante, ousamos ainda deixar um ligeiro apontamento sobre as
obras realizadas na catedral de Aveiro – a velha igreja de S.
Domingos – nos anos de 1974-1976.
Encontrando-se a capela-mor em
estado ruinoso e todo o corpo precisado de restauro, aproveitou-se
então a oportunidade para se efectuarem trabalhos de maior amplidão,
no sentido de se alargar o espaço interno; a igreja poderia, assim,
servir convenientemente a comunidade católica de Nossa Senhora da
Glória e ser lugar apropriado para as grandes celebrações
diocesanas.
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Catedral de Aveiro (Remodelação e
ampliação em 1974/76) |
Feito pormenorizadamente o estudo
prévio pelos Arq. Abrunhoza de Brito e Manuel Magalhães, acabou por
se demolir toda a capela-mor, salvaguardando-se o que possuía de
valor artístico, para depois se reconstruir: as primitivas paredes
góticas, o túmulo renascentista, os cadeirais dos fins do século
XVII, o órgão e o retábulo da centúria seguinte. Aí, para um lado e
para o outro, abriu-se um espaçoso transepto – o que fez duplicar a
capacidade da zona destinada à assembleia numa igreja rejuvenescida,
arejada e adaptada à nova pastoral litúrgica. É certo que o templo
não obedece a um único estilo; é antes um espaço onde os séculos
deixaram a sua diversificada marca artística e escultórica, desde
1423 a 1976. Mais uma vez, também agora se optou por uma solução
actual, em detrimento de uma imitação, não só despropositada como
talvez mais dispendiosa. Respeitou-se da anterior igreja tudo o que
merecia ser conservado, mas a nova construção desligou-se dela
estilisticamente. Foi um critério válido e honesto.
É claro que semelhante posição
requereu sensibilidade na forma de fazer; um partido de grande
simplicidade de linhas foi o caminho mais seguro de uma integração
sempre difícil. Todavia, uns pedaços góticos de parede, no interior,
servem de traço de separação-união.
No termo desta reflexão sobre a Arte
nas Igrejas – de Roma, pela Europa, até Aveiro – não me referi a
tantos documentos da Arte, que mereciam uma alusão; seria enfadonho
nestas despretensiosas colunas. Nem sequer tive a veleidade de
inventariar todos os edifícios religiosos que, nas terras de Aveiro,
testemunham, a seu modo, as novas formas do estilo. Estes, porém, se
desejam evitar anacronismos e reflectir o nosso tempo, hão-de
exprimir a Verdade de Deus na nudez dos materiais e manifestar a
Simplicidade do Evangelho na singeleza das linhas; na funcionalidade
que facilita a participação da assembleia, eles constituem
certamente um válido instrumento da Igreja-Comunidade.
Estando ao serviço do culto, os
nossos templos – igrejas e capelas – não podem ser apenas peças
inanimadas de um passado mais ou menos longínquo; sem desprimor pelo
que tem interesse histórico ou artístico, eles serão objecto de
abertura às hodiernas necessidades litúrgicas e pastorais, sofrendo
as adaptações úteis e indispensáveis. A vida não se compadece com
pesos mortos; estes, ou ressuscitam, ou perdem-se na memória dos
homens. O seu lugar é nos museus, como objecto de simples estudo ou
de mera curiosidade.
_________________________
NOTAS:
(1)
– Sacrasanctum Concillum, n.º 112.
(2)
– Id., n.º 117.
(3)
– Destruído por um incêndio em 1823, foi logo reconstruído.
(4)
– Depois da tomada de Bizâncio, os Turcos transformaram-na em
mesquita e acrescentaram-lhe quatro minaretes.
(5)
– Entretanto, Roma, sob a égide do Papado, prosseguiu numa certa
continuidade artística; é desta altura, por exemplo, a reedificação
da igreja de Santa Maria in Cosmedin (finais do século VIII).
(6)
– Ano de 950 da Era de César, então em vigor.
(7)
–Entre as Igrejas e catedrais europeias, de estilo românico,
enumeram-se: a) na França – Saint-Sernin de Toulouse, Saint Nectaire,
Notre-Dame-Ia-Grande de Poitiers; b) na Itália – Catedral de Parma,
Catedral de Pisa, Santo Ambrósio de Milão; c) na Espanha – Sant'lago
de Compostela, Catedral de Zamara, S. Vicente de Ávila, Santo
Isidoro de León.
(8)
– Pertencem ao estilo gótico: a) na França – S. Dinis de Paris,
Catedral de Reims, Catedral de Chartres, Catedral de Amiens,
Catedral de Laon, Catedral de Notre-Dame de Paris; b) na Itália –
Catedral de Milão, Catedral de Florença; c) na Espanha – Catedral de
León, Catedral de Burgos.
(9)
– Cit. por Flórida de Vasconcelos em A ARTE EM PORTUGAL – I (Verbo
Juvenil), 2.ª edição, pg. 75.
(10)
– Fora autorizada pelo Papa Alexandre VI em 1496, logo após a subida
do Venturoso ao trono e ainda antes da viagem marítima para a Índia
e da descoberta do Brasil.
(11)
– Já no século XVII, o mais notável escultor português é Manuel
Pereira, artista atraído pela Espanha; a sua obra-prima é a estátua
de S. Bruno, patente na Cartuxa de Miraflores (Burgos).
(12)
– Cit. por Miguel de Oliveira em HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE PORTUGAL,
4.ª edição, 1968, pg. 331.
(13)
– Numa criação artística há três coisas a considerar: – o sujeito ou
tema, que existe fora do artista e lhe é independente; o conteúdo,
que é a maneira como o artista apanhou e sentiu o tema; e a forma,
que é a sua revelação externa e sensível. Por isso, o mesmo tema
ocasiona reacções diversas, porque o conteúdo depende da
personalidade do artista; assim, a expressão plástica tem mesmo de
resultar diversa.
(14)
– Gaudium et Spes, sobre a Igreja no Mundo Actual, n.º 62.
(15)
– Aquela imagem românica, que se descobriu numa das paredes do
templo aquando das últimas obras de restauro e ampliação em
1971-1973, encontra-se hoje convenientemente guardada numa das salas
da referida Igreja paroquial de Soza.
(16)
– Estas datas são do calendárlo da Era Cristã; nas lápides
encontra-se Indicada a Era de César, avançada 38 anos sobre aquela.
Foi el-Rei D. João I que, em 1422, decretou a adopção da Era de
Cristo em Portugal.
(17)
– Os autores dos projectos são respectivamente: – São Bernardo e
Palhaça – ARS – Arquitectos, do Porto; Bustos – Arq. Rocha Carneiro,
de Águeda; Ribeira de Fráguas – Arq. Mário Bonito, do Porto.
Entretanto, os Padres Salesianos
também construíram a sua Igreja, anexa ao Instituto ou Seminário, em
Mogofores (1958-1963); é um edifício de tipo tradicional, na linha
dos anteriores templos salesianos em Itália.
(18)
– Respectivos arquitectos: – D. Maria Adozinda Gamelas de
Albuquerque, de Aveiro; Fernando Seara, do Porto; Fernando Abrunhoza
de Brito e Manuel Magalhães, do Porto (Gafanha do Carmo, Calvão);
Diogo Lino Pimentel, de Lisboa; Santos Malta, do Porto; e José Pires
Roque, de Águeda.
Algumas povoações têm igualmente
construído novas capelas, por vezes espaçosas, para a celebração do
culto, que obviamente, obedecem aos mesmos princípios.
(19)
– Doc. cit., de 16-10-1979, n.º 15.
(20)
– Id., n.º 67.
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PADRE MANUEL ANTÓNIO DE CARVALHAIS,
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CÚRIA DIOCESANA DE AVEIRO,
Diversos Processos de construção ou de remodelação de Igrejas. |