Suponho que pela pecha velha –
irreprimível e, já agora incurável – de reduzir todos os temas a um
denominador aveirense e de misturar, pelo menos aparentemente,
«alhos com bugalhos» para alcançar esse objectivo obsessivo,
incluirei neste modesto trabalho mais de relato objectivo que de
preconização de princípios, três assuntos distintos, embora ligados,
mais efectiva ou indirectamente por um comum motivo de feição
política. Imediata ou remota. Positiva ou conjunturalmente.
Desse modo, farei uma natural alusão
aos justiçados da temerária revolução anti-miguelista de 16 de Maio
de 1828 – cujos crânios são inspiradora e venerandamente, numa das
aras aveirenses mais exalçantes, guardados no centro geométrico do
nosso mais antigo e rico de valores «campo santo», nesse como que
relicário chamado tradicionalmente o «monumento das cabeças».
E recordarei, lógica e
consequentemente, num preito de justiça – a que em nosso desabono de
aveirenses, nados ou de adopção, ou de mera presunção enganosa, nos
temos degradadamente furtado – a que não quero perder o ensejo, à
eminente figura de aveirense que foi – e na nossa memória preiteante
permanece – Manuel José Mendes Leite. Lembrá-lo-ei
especialmente, porque foi o liberal de uma vida inteira, a múltiplos
títulos insigne e impoluto, que apostolizou generosa e
calorosamente, e denodadamente conseguiu fazer incluir em adicional
à Carta Constitucional a abolição da pena de morte por crimes
políticos – ou como tal considerados pelas parcialidades detentoras
do poder e as leis em vigência.
*
* *
E depois de aludir resumidamente à
sessão parlamentar, agitada, polémica e cheia de dignidade, em que
foi votada essa pioneira disposição – que deixou imorredoiro o nome
daquele aveirense tão mal e escassamente relembrado, recordarei,
porque me parece oportuno, já que desse negregado acto julgo não
estar de todo alheio a malquerença política – e ainda que restrita a
um só indivíduo de personalidade cúpida, maleável e odienta, quiçá
com prenúncios de anormalidade – à última execução capital que se
registou em Aveiro.
(Em Aveiro, nos subúrbios da qual
subsiste – diga-se, no ensejo, num breve parêntesis – mesmo ao revés
dos sentimentos da gente cordata, moderada e tolerante, e da
tradição dos autóctones da cidade e seu redor, consabidamente
avessos à violência e a toda a casta de excessos, uma pequena
localidade suburbana, maculativa e paradoxalmente com a designação
toponimicamente macabra de a Forca).
E já que a ocasião se proporciona
não me esquivarei a observar que Aveiro nunca prestou, no bronze
perpetuador a homenagem que deve ao principal autor, grande
aglutinador de adesões e propulsionador dessa honrosíssima
iniciativa da inclusão no diploma fundamental do país da rasgada e
humaníssima disposição. Estamos em dívida. Havemos de reconhecê-la
colectivamente. E de tentar animosamente liquidá-la.
Ao aveirense de tão numerosos,
relevantes e prestimosos predicados de carácter e ilustração, e de
homem público isento e aplicado aos deveres cívicos, cumpridos com
exacção e largueza, tão estreita e persistentemente ligado à sua
terra natal – mero cidadão participante, respeitado e esclarecido,
presidente da Municipalidade, governador civil, e antes
secretário-geral dessa delegação distrital do executivo
governamental, deputado, homem desprezador de honrarias, títulos e
veneras, que foi uma alta figura paradigmática. Combatente e
pioneiro esforçado e constante das mais ardentes aspirações
aveirenses, foi o mais respeitado durante bem um quarto de século,
desde que José Estêvão morrera, prematuramente, em 1862, de todos os
grandes vultos de Aveiro, onde nascera, como o grande tribuno, em
1809, e viria a falecer, abrindo um sentido vazio entre os seus
conterrâneos, em 1887.
/ 47 /
Conhece-se-lhe – embora não lembrada
com a merecida assiduidade – uma participação sumamente operosa e
prestante na vida pública agitada do segundo quarto do século
passado. E nos campos mais diversos; na luta armada e nos riscos que
durante ela enfrentou intrepidamente, nas pugnas da palavra escrita
e falada, na actividade administrativa, zelosa e impoluta e, repito,
na repetida e vitaliciamente testificada devoção aos mais altos,
lídimos e indeclináveis interesses da terra onde nascera e, que
alcançadas as condições ressurgidoras, ansiava pela reentrada nos
caminhos ascendentes da prosperidade e do desenvolvimento.
Sempre se aponta como o mais fiel
companheiro de José Estêvão, o mais fraterno de quantos seguiram na
sua órbita, satelizados e ofuscados pelas suas fulgurações, desde a
idade moça em que se radicam, inquebrantáveis as vitalícias amizades
irmanadoras.
Ambos, apertados em Aveiro os laços
de estima juvenil, frequentando as mesmas escolas e os mesmos
logradoiros de traquinices de crianças, coabitaram no mesmo velho
prédio, de que ficou a recordação de irreverências estudantis
famosas, durante os tempos universitários conimbricenses – em que se
fortaleceram nos ideais do liberalismo e que a revolta contra a
opressão personificada em D. Miguel interromperia por dilatados
anos.
Um e outro, seguiram similares
caminhos, frequentes vezes incómodos e arriscados – na dianteira do
combate pelos princípios perfilhados, e no exílio, a mais abonada
bolsa de Mendes Leite, abrindo-se largamente, com liberalidade
talvez imprevidente, aos caprichos e aos irreprimíveis apetites de
guloseimas do vinculador amigo. Logo em 1828, ao chegar a terras
galegas, para incógnitos e incertos destinos. E depois, já quando se
lhe abriam os novos itinerários do homísio, nas brumosas, alongadas
e árduas paragens britânicas, ou, sequentemente, em mais acolhedores
ambientes açorianos. Ou ainda, furtando-se à vindicta cabralista, de
má sanha e ínvios tramas, em Paris e noutros chãos franceses.
|
Associados, como já sentimentalmente
vinham sendo numa aliança de afecto indestrutível, partilharam a
fundação da depois famosa «Revolução de Setembro», que seria a mais
perduradoura das tribunas impressas do empolgante orador, e aquela
onde se forjou o maior jornalista português da segunda metade de
oitocentos – o insigne António Rodrigues Sampaio, que era
mesmo mais correntemente designado pelo «Sampaio da Revolução».
Secundá-lo-ia, ocupando, aliás, a
sua vaga parlamentar como representante dos eleitores seus
conterrâneos, mesmo após o seu passamento prematuro e imprevisto,
com o mesmo vibrante vigor, no combate atento e decidido pelos
anelos aveirenses, para um progresso que potencial e promissoramente
se prenunciava – e agora, passado um século e dois decénios, se
concretiza, desbordando das dimensões então ambicionados, para nossa
fruição, e dos que nos sucedam, sobretudo.
|
Joaquim de Melo Freitas,
que em múltiplas circunstâncias foi um eloquente, fiel e
potencializador intérprete do mais lídimo e estreme sentimento
aveirense, relevando-lhe o «carácter honestíssimo»,
(1) testemunhava que «o seu nome é acatado
por todos, amigos e inimigos». E inimigos seria uma força de
expressão. O termo terá sido empregado na menos acerba acepção de
adversário. E, de certo, apenas de parcialidade política. Porque só
nesse âmbito alguém deixaria em Aveiro de lhe consagrar a mais
desembaciada simpatia. Em Aveiro e no país.
Assim se deduz das referências
encomiásticas que, por exemplo, entre muitas personalidades ilustres
do tempo, lhe consagrou o pouco lisonjeiro Camilo Castelo Branco,
(2) mencionadamente nestas elogiosas
passagens: «Este homem foi muito querido e respeitado por tantos que
o viram sem o prisma insidioso da política. Parece que ele, se a
teve, robusta e indomável, foi exclusivamente a política do
sacrifício pessoal ao bem da colectividade. Egoísmo, se o teve foi o
da primazia na honra inflexível. E, contudo, depois de haver
arrostado bravamente os adversários nas pugnas do braço e do
espírito, nas batalhas e nos parlamentos, morreu (dir-se-á um dia,
quando morrer) sem inimigos.»
De uma lisura exemplar na conduta
pessoal e política, sabendo encarar as derrotas eleitorais – em que
era medularmente, e coerentemente incapaz de exercer a sua
influência pessoal directa para pedir um voto, mesmo àqueles que de
algum modo estivessem na sua dependência – só se lhe terão conhecido
irresistíveis pecadilhos amorosos. Não só, pessoalmente, por dotes
másculos, apuro de apresentação e legendárias, talvez avolumadas,
narrativas de conquistas, mais fáceis ou mais difíceis, a que era
naturalmente propenso, mas que cativantes predicados de atracção,
viril e distinta, e que tanto desabrolhavam em qualquer esfera, na
terra natal – onde ficou conhecida especialmente a romântica paixão
mortal que incendeu em D. Ana Libânia de Queirós, sua vizinha, e tia
paterna de Eça de Queirós –, como em Lisboa. Aqui viveu, do mesmo
passo nos meandros e nos palcos da acção política e nas altas rodas
mundanas, neste aspecto também não havendo desmerecido dos
atractivos e indesvendadas aventuras de que deixou fama o seu
companheiro mais constante, o seu como que gémeo José Estêvão. E nem
só na capital portuguesa, mas no exílio, mencionadamente em Paris,
de onde traria, raptada a um nobre francês, a distinta senhora que
foi mãe do único filho que teve.
/ 48 /
Mendes Leite
tornara-se, especialmente em Aveiro, uma veneranda personalidade,
uma relíquia sobrevivente dos tempos das temerosas lutas pela
Liberdade, respeitada pelos adeptos de todos os quadrantes
ideológicos, mesmo aqueles que mais manifesta e veementemente
discordavam dos seus actos de administração pública ou de quaisquer
atitudes políticas.
Quando no cemitério local foi negada
campa a um primeiro aveirense incréu que, fiel às ideias
perfilhadas, dispôs que lhe efectuassem um funeral civil, o
aguerrido «Povo de Aveiro» abriu contra Mendes Leite, ao tempo
governador civil – e contra, simultaneamente, o bisavô materno do
signatário destas dissaboridas linhas memorativas, o administrador
do concelho de então Francisco António do Vale Guimarães – uma
ardorosa e azeda campanha, violenta e desarvorada como seria sempre
timbre do contundente semanário aveirense. Acoimaram-no de senil,
amolecido e tergiversante, de incoerente com os princípios de
liberdade e tolerância que ao longo de uma vida, sem desânimos nem
cedências, de luta ininterrompida e alevantada, a múltiplos títulos
exemplar, haviam sido o seu mais enobrecedor apanágio. Trataram-no
com acritude, irreverente e implacável, como se a velha relíquia dos
heróicos e inspiradores tempos das lutas liberais, se renegasse e as
renegasse.
Não muito tempo volvido, o mesmo
combativo e impiedoso periódico aveirense – onde se fazia doutrina
mesmo no auge do mais agreste combate – noticiava o falecimento da
insigne figura de Aveiro, e do país, num comovido artigo,
(3) justo, de certo modo reconsiderador,
em que todas as divergências se apagam, e quase empolgante ao
incender os sentimentos dos conterrâneos, quiçá dos republicanos
aveirenses, no momento de luto profundo que a sua terra atravessava.
Aí se proclamava, repetidas vezes,
como um «Ieitmotiv», incitando as mais expressivas e simbólicas
demonstrações de preito: «Armas em funeral, bandeiras para o chão,
que Manuel José Mendes Leite morreu.»
Acrescentava-se, nesse impulsionador
necrológico, reparador, justíssima e fidelissimamente intérprete do
colectivo sentimento aveirense, no momento em que sensibilizadamente
perdia a sua mais representativa e respeitada figura: «Bandeiras
para o chão, não por conciliação, não por transigência, porque a
nossa bandeira é nova, é bela, é altiva e limpa para que caia na
lama. Não porque a morte de um homem, por maior que seja, nos faça
pensar o contrário do que pensamos em sua vida (...). Mas porque na
nossa bandeira republicana está bem o nome desse valente, desse
audaz democrata, que jaz enfim caído por terra.»
E repetia-se: «Armas em funeral,
bandeiras para o chão, orvalhadas de lágrimas, em sentimento e luto
pela morte de um benemérito.»
Prosseguiria, insistindo nessas
razões preiteantes: «Nem um ressentimento neste momento solene.
Manuel José Mendes Leite fez-nos um dia algum mal. Mas que importa
isso, espírito imaculado que fugiste há uma hora do mundo, se na tua
vida há páginas de abnegação que apagam todas as ofensas pessoais,
páginas gloriosas de serviços relevantes à sociedade portuguesa, que
façam calar míseros despeitos, páginas de trabalho, de
desprendimento, de justiça que te dão lugar de honra no rol dos
obreiros úteis da humanidade?»
E na sequência acentuava – talvez
pela pena, com mais preocupados propósitos estilísticos do futuro
Barão de Cadoro, então redactor efectivo do semanário, do que pela
do grande inspirador do jornal, inclemente desde o início, o
singular e medular plumitivo de combate Homem Cristo, de estilo tão
despido de arrebiques e tão meridianamente límpido e acessível – a
espontaneidade sinceríssima das justas e profundamente sentidas
palavras de póstumo elogio:
...«nos corações dos rapazes que
procuram neste jornal e nas lutas da política imitar, de longe, o
denodo com que lutaste pela civilização da tua pátria e pelo bem da
humanidade, só há dor, e justiça para o teu grande carácter.»
E, depois de convidar o povo
aveirense, a «raça forte de Aveiro», a ir até junto do cadáver,
ainda não de todo arrefecido, do inseparável companheiro de José
Estêvão, para melhor sentir como se luta desprendidamente,
modestamente, grandemente pelo bem da Pátria, e pelo bem dos outros»
repete uma derradeira vez a frase reiterada como um brado plangente
ao longo do eloquente artigo necrológico, que apetece ler alto,
declamando contristadamente como uma comovedora oração fúnebre;
«Armas em funeral, bandeiras para o chão.»
Como evidenciava nas celebradas
«bodas de diamante» de Mendes Leite, no opúsculo em que por
iniciativa do aveirógrafo Marques Gomes, tantos vultos aveirenses e
estranhos de destaque lhe renderam o seu preito, Joaquim de Melo
Freitas, salientou: (4)
«É velho, é liberal, é honrado. E tão velho que pertence à época em
que havia crenças políticas (...). Como liberal emigrou, padeceu e
combateu. As batalhas, a tribuna e a imprensa conheciam-no na
primeira fila. Finalmente carácter honestíssimo...» – como aliás já
num passo anterior referimos.
Não é menos significativo o
depoimento cheio de independência, incluído numa publicação similar,
no ano seguinte, do eminente jurista anadiense Alexandre Seabra
(5), que põe em realce entre os predicados
de Mendes Leite, as suas naturais e evidentes propensões para o bem
e as suas aprumadíssimas acções «próprias de um cavalheiro». E,
frisando que nunca a amizade o havendo impedido de apreciar como
entendia os actos de administração ou de significado político do seu
velho parceiro
/ 49 / de ideais e lutas,
também em momento nenhum deixou de fazer justiça à sua incontestável
probidade, observa mesmo, ao concluir as suas laudas de preito, o
que representava o velho lutador liberal na cidade em que nascera:
«Creio que Mendes Leite, quando morrer deixará mais um lugar vago em
Aveiro.»
*
* *
A cronologia induz, se não impõe,
que este modesto trabalho busque uma ordem e uma sucessão.
E, se não recuo a tempos como os
resultantes dos seiscentistas apoios aveirenses às malogradas
pretensões régias do Prior do Crato, não me parece que, na
circunstância possa omitir os justiçados na portuense Praça Nova, em
1829 – por conivência ou efectiva participação armada, comprovadas,
na revolução frustrada de 16 de Maio de 1828, não escapos à vindicta
de um poder tirânico e desumano.
Lembro essas inolvidáveis vítimas do
seu idealismo nessa ara de inexaurível inspiração, que os mantém,
acendrada ou em latente brasido nunca extinto, na veneração
suscitadora e constante das gerações subsequentes, que neles buscam,
e encontram, alentadores estímulos de efectiva solidariedade humana,
de generosidade e devoção até ao último sacrifício num ideal – e que
são essencialmente um grande apanágio aveirense, assimilado no mais
escorreito espírito da comunidade, e tanto nos filhos de raiz como
de coração.
Recordo-lhes, venerandamente, o
exemplo – porque em todos os propícios ensejos como este o considero
uma obrigação indeclinável de muito grato e merecido preito – e os
nomes inesquecíveis, e que nos compete continuamente incender, de
mártires dos altos ideais de que somos agora como que os
usufrutuários – e por eles imolados pela malquerença, cega e crua,
inclemente e ínvia na repressão e na vindicta dos antagonistas,
ainda os mais nobres, e dignos, e respeitáveis.
Relembro-lhes os nomes, desses de
quem nos ficaram os crânios como que num relicário que é perpétua
fonte inspiradora para nosso fortalecimento de ânimo quando este se
entibia, e de afervoramento, e simultaneamente de condenação dos
meios, evidentes ou ocultos de que serve a prepotência impune.
Relembro-os reiterada,
contumazmente, em mais esta oportunidade: Francisco Manuel Gravito
da Veiga e Lima, Manuel Luís Nogueira, Clemente de Melo Soares de
Freitas, Francisco Silvério de Carvalho de Magalhães Serrão,
enforcados em 7 de Maio de 1829, e Clemente de Morais Sarmento e
João Henriques Ferreira, que sofreram também a pena capital, com a
mesma sanha torva, cinco meses depois, em 9 de Outubro do mesmo ano.
Relembro-os reverentemente.
Salientemos nestas linhas de mal
concatenada evocação o nome do aveirense e cidadão, a que talvez
apenas a idade alquebrou na defesa ardorosa dos princípios, que foi
a figura maior, a glória viva mais paradigmática e eminente, durante
um bom quarto de século antes da sua morte unanimemente sentida – o
egrégio Manuel José Mendes Leite, que Aveiro subestima nas
suas memórias concretizadas de preito aos conterrâneos de mais fundo
vinco nos seus anais.
Com a população aveirense,
praticamente sem excepção, a tomá-lo como um seu expoente de
grandeza raramente alcançada, e a ele vinculada pelas suas
consabidas inclinações de solidariedade e consideração fraternas, e
os ideais comuns à maioria e condicentes com o espírito colectivo
manifestado desde há pelo menos alguns decénios. E, ao mesmo tempo,
os evitados riscos em que bravamente incorreu e o espectro que se
lhe antepôs no horizonte do enforcamento na memória de todos, ele
foi o liberal sem jaça, rasgado e íntegro, marcado indelevelmente
pelas moças impressões de horror, e de repulsa, e de afinidades
sentimentais e de idealismo com a cordata e independente comunidade
aveirense.
|
|
Mendes Leite |
Aberto e tolerante, despido de
malignidade e do espírito de reivindicativa, Mendes Leite, que
perdia eleições com espírito desportivo (sem afrouxamento, mas sem
malquerença) em toda a sua longa existência de quase oito décadas de
anos, soube sempre inquebrantavelmente divergir sem vislumbre de
animadversão.
/ 50 /
Nessa honrosíssima iniciativa –
quiçá imortalizadora – testifica, evidente e magnânima, a sua
coerente e larga grandeza de ânimo o liberal que partilhou
inveteradamente convicto os sentimentos latentes nos mais
desprotegidos, e os compreendeu e perfilhou com fraterna humanidade,
nas pérfidas mancomunações e influências.
*
* *
Aflorei, sem concretizar dados
biográficos, honrosíssimos e numerosos, uma apreciação do eminente
vulto aveirense que emparceirou dedicadissimamente com José Estêvão,
e lhe deu com um afecto indefectível, os mais amistosos alentos,
tanto, nas penosas vicissitudes de alguns períodos de exílio, como
no acamaradar, em plena partilha, nas mais diversas iniciativas, e
na sintonia dos momentos mais acerbos ou na euforia do triunfo – o
tão despicientemente esquecido dos seus conterrâneos Manuel José
Mendes Leite.
Volvamos, porém, ao título que mais
o impõe, e mais perenemente, à veneração dos aveirenses – nessa
qualidade e como cidadãos – a sua acção persistente e animosa,
convincente e aglutinadora a favor da abolição da pena de morte por
crimes políticos, que seria um primeiro passo decisivo para que ela
fosse banida também da nossa legislação penal nos crimes comuns.
Relembremos como o grande título de
glória de um aveirense ilustre e devotado, a inclusão no Acto
Adicional à Carta Constitucional desse rasgado e percursor
princípio.
A Câmara electiva, não sem
divergências e lutas, viria a aprová-lo na memorável sessão de 29 de
Março de 1852.
A proposta foi apresentada à Câmara
electiva, na sessão de 10 de Março. Curtíssima, mas bastante para
consagrar um princípio, que afinal estaria no sentimento colectivo.
O deputado Mendes Leite, o homem
generoso que lembramos, indestrutivelmente ligado aos humanitários
ideais, por que desde a mocidade intrepidamente lutava, mandou para
a mesa, e justificou, um aditamento ao Acto Adicional, com o
seguinte teor:
«É abolida a pena de morte nos
crimes políticos». «Fica, assim, ampliado o § 8.º do artigo 145 da
Carta.»
Esta proposta foi admitida pela
mesa, mas, porque tanto a decorrente como as imediatas sessões se
encontravam densamente preenchidas, ficou a aguardar propícia
oportunidade.
Viria, assim – e aumentando o
interesse pelo debate paralelamente com a demora – a ser apresentada
à consideração da Câmara, em 29 de Março, na ordem do dia. Deu
ensejo a um debate vivo, participado por algumas das mais destacadas
figuras políticas do tempo, e em que uma parcela dos oradores
manifestando-se pela proposta inserção e, assim, contra os
porta-vozes da opinião governamental – que, aliás, apoiava o
princípio, julgando que a abolição não devia inserir-se na Carta –
viu sair vitoriosa, mesmo sem propósitos hostis ao executivo, essa
forma de consagrar e firmar esse terminante banimento dessa já quase
anacrónica gradação penal máxima. Todos dela manifestamente
discordavam, apenas divergiam, por motivos de especulativa
dialéctica de oportunidade.
Os apoiantes dos pontos de vista de
Mendes Leite, eram, todavia, impelidos pela magnanimidade que era
apanágio inquebrantável do grupo de homens fortes e rectos para quem
a circunstância de ocuparem politicamente a posição dominante
representava como dobrada razão e obrigação para serem rasgada e
decididamente clementes. Não desejavam, nem em consciência podiam
admitir, que se submetessem mesmo os seus mais contumazes e mais
despidos de sensibilidade entre os seus adversários, ao que haviam
vivido como um atroz espectro – que os perseguira em momentos de
perigo, e atingira implacavelmente alguns companheiros de ideal e de
luta.
A memorável sessão, a que presidia
Silva Sanches – e foi secretariada por Rebelo de Carvalho – segundo
diria o próprio presidente, seria preenchida em todo o
/ 51 / período da ordem do
dia, dado o número de intervenientes e a controvérsia que se
prenunciavam, com o «aditamento do Sr. Mendes Leite, para que se
consigne no acto adicional a pena de morte para os crimes
políticos.»
O aditamento do Sr. Mendes Leite,
sublinhe-se, diz o relato oficial da sessão. E como tal
indisputavelmente foi então geralmente designado e ficou consagrado.
Claro que tinha outros subscritores. Entre eles, por exemplo,
António Xavier Rodrigues Cordeiro, que desse plenário inolvidável do
Parlamento viria a escrever trinta e dois anos mais tarde
(6)... «hoje seria objecto de admiração
que, em matéria controvertida, na qual três ministros, tantos
quantos estavam na sala, se terem pela palavra, e mais que uma vez,
manifestado contra ela, houvesse uma câmara de deputados que, (...)
sem nenhuns intuitos de oposição, votasse, em votação nominal,
contra o que o governo queria.»
E acrescentava ainda, ufano desse
triunfo parlamentar, que partilhara, ao relembrá-lo, passado um
terço de século: «É que a Câmara era um dos parlamentos mais
independentes, mais inteiros, de maior ombridade que temos tido. Não
são esses os mais duradouros, infelizmente.»
Um parlamento com esse livre
espírito de independência não agradaria, de certo, ao governo, já
que mesmo alguns daqueles de quem habitualmente lhe viria apoio, se
lhe furtavam, e se desirmanavam dos mais fiéis e disciplinados, para
exprimirem, em algumas circunstâncias, claro e firme, o seu voto
antagónico.
Por isso – ou pelo menos por
parcelar influência do caso – após a sessão do dia imediato, já que
o governo, apesar do seu «fair-play», terá ficado ressentido com o
toque, acaso um tanto inesperado, as reuniões parlamentares sofreram
sucessivos adiamentos.
Os deputados, aliás, haveriam tomado
o gosto na reincidência de contrariar o executivo, e já, quando com
ele não estavam de acordo não hesitariam em evidenciá-lo nas
votações. E, claro. o governo, como tantas vezes tem sucedido em
casos similares, acabou por promover a dissolução da câmara
electiva, tão pouco submissa.
António Xavier Rodrigues Cordeiro,
nas mesmas páginas de preito a Mendes Leite, e em remate delas,
escreveria: (7)
«O combate começara em 29 de Março,
com o princípio da abolição da pena de morte nos crimes políticos
inserto no Acto Adicional. Teve então
(8) o seu desenlace.»
|
Feita a chamada, disseram – approvo – os Srs. Braamcamp,
Cardozo Avelino, Corrêa de Mendonça, Dias de Oliveira,
Barjona, Duarte de Campos, Holtreman, Pequito, Pinheiro
Ozorio, Sampayo, Rodrigues Cordeiro, Balthazar Machado,
Barão de Almeirim, Bento de Castro, Seixas e VasconceIlos,
Marques Baptista, Conde de Villa Real (D. Fernando), Rebello
de Carvalho, Martins da Costa, E. da Cunha Pessoa, Faustino
da Gama, Barroso, AIves Vicente, F. M. de Carvalho, Soares
de Azevedo, Loureiro, Mello Soares, Carlos da Silva, Soure,
Almeida e Silva, Benevidas, J. C. de Campos, Sousa Pinto
Basto, Pestana, José Ferreira Pinto Basto, J. J. de Mattos,
J. M. Ferreira, Casal Ribeiro, MelIo Giraldes, Sousa
Caldeira, Passos (José) Justino Ferreira Pinto Basto, Leonel
Tavares, Trindade Leitão, e Moreira Maya, Mendes Leite,
Passos (Manoel), Fernandes Thomaz, Coelho de Carvalho,
Sebastião Manoel de Gouvêa.
Disseram rejeito os Srs. Agostinho Albano, Avila, Lousada,
Fontes Pereira de Mello, Sousa Menezes, Saraiva de Carvalho,
Sarmento, Vaz da Fonseca, Aristides, Barão das Lages, Barão
de PaIme, Carlos Bento, Conde da Ponte (D. João), D.
Francisco de Assis, Gomes de Carvalho, Lobo de Moura, Vaz
Preto Giraldes, Gomei Lima, Honorato Ferreira, Abreu
CastelIo Branco, Ferreira Pontes, Ferreira de Castro, J. M.
Grande, Ribeiro de Almeida, Silva Sanches, Justino de
Freitas, Placido de Abreu, Nogueira Soares, Thomás de
Aquino, Ferrer, Visconde de Azevedo, e Visconde de Fornos de
AIgodres.
Ficou portanto approvado o additamento por 50 votos contra
32. |
Reprodução, do
relato da sessão de 29 de Março de 1852 |
Mas o que importa para aqui é a
sessão de 29 de Março.
O primeiro dos oradores a
intervir no debate – e com pensamento coincidente com o do
governo, foi o Sr. Ferrer. Não renegava o que havia escrito
sobre o princípio que motivou a proposta. Julgou conveniente,
todavia, que ele não fosse inserido no Acto Adicional, uma vez
que na lei fundamental só devem ser consignados princípios
orgânicos e esse o não era.
Ripostou imediatamente Mendes
Leite, que era o grande patrono da proposta, e, nos termos
textuais do relato oficial da sessão, «observou que o Sr.
Ferrer, concordando com o princípio, opõe-se a que ele seja
consignado no acto adicional; porém, pela sua parte, não pode
deixar de insistir pela sua aprovação, porque não é um favor que
se pede para os partidos, é uma garantia para todos eles, e é um
princípio, cuja consignação nas leis fundamentais já tem um
precedente, por isso que a França o inseriu na constituição de
1848, e não há inconveniente algum em que seja inserido também
no acto adicional, porque uma lei regulamentar desenvolverá o
mesmo princípio, assim como leis regulamentares têm de
desenvolver alguns outros princípios que estão consignados no
acto adicional.» |
|
Intervieram no debate, com razões
semelhantes às aduzidas, e contestando a validade do caso francês,
pois este se verificara numa oportunidade que nada teria de
semelhante ao momento português, e, defendendo o ponto de vista
governamental – que viria a ser vencido por larga maioria na votação
a que depois se procedeu – além do referido deputado, que
sustentaria a sua posição, individualidades como: Rodrigo da
Fonseca
/ 52 /
Magalhães, à data Ministro do
Reino; António Luís Seabra que era o Ministro da Justiça, e Carlos
Bento. E apoiava-os entre outros. Fontes Pereira de Melo.
Pronunciaram-se a favor da proposta
além de Mendes Leite, seu primeiro signatário e seu mais entusiasta
defensor, figuras igualmente destacadas desse período e das lutas
que o antecederam, nomeadamente Casal Ribeiro, Leonel Tavares, Barão
de Almeirim e o citado Rodrigues Cordeiro.
O considerado proponente, que
requereu a votação nominal, veria triunfar a sua proposta – ainda
que depois se verificassem inconsistentes controvérsias de pormenor,
inteiramente supérfluas – por 50 votos contra 32.
Estava, assim, até hoje, e cremos
que por largo tempo ainda, abolida a pena de morte por crimes
políticos – os crimes que só o são quando são vitoriosos os
adversários.
*
* *
Aos aveirenses causará talvez
estranheza que entre os votos de aprovação – em que figuram grandes
nomes como os dos irmãos Passos – e entre as vozes que se ergueram
para a defender, não figure José Estêvão. Este grande amigo de
Mendes Leite adoecera gravemente com uma febre tifóide e esteve
quase cinco meses sem frequentar a Câmara. Só, por isso, se não
associou à defesa, com o ardor, o brilho e a capacidade de convicção
que lhe eram peculiares, da proposta.
Regressaria às lides parlamentares
em Julho, sendo em 21 desse mês, a primeira sessão a que assistiu e
em que usou da palavra. E com as comovidas e comovedoras expressões
de cativado reconhecimento pelas demonstrações de interesse pelo seu
estado – «raríssimas vezes tem presenciado a capital manifestação
idêntica; o nome de José Estêvão andava na boca de todos»
(9) – e, então afirmou que
(10): «sentia muito não ter podido
associar o seu voto ao daqueles que tinham votado pela abolição da
pena de morte nos crimes políticos, porque, além de ser um grande
princípio, era o sentimento nacional, e mesmo nos crimes civis a
desejava ver abolida, para que o homem não pudesse ter mais força
que Deus.»
*
* *
«COSPE-FORA» – O ÚLTIMO ENFORCADO EM AVEIRO, EM 1841
Crime comum, ou pelo menos assim
considerado – embora não seja totalmente de excluir, como já
dissemos, a hipótese de na sua génese haver torvos desígnios de
política odienta e, assim, indirectos, mas insidiosamente
determinativos na pertinácia do tecer de um estado de espírito de
cegueira cúpida e vindicativa, lembremos aquele que motivou a última
execução capital, por enforcamento na cidade e na comarca de Aveiro.
A execução efectuou-se no Rossio. No
Rossio de S. João, como nesses tempos se chamava, por nele se erguer
a capela – demolida em 1911 – que tinha por orago o Santo Percursor,
e para o distinguir do Rossio, ou Terreiro, das Carmelitas. E
verificou-se há mais já de cento e quarenta anos. Precisamente a 3
de Setembro de 1841.
Foi efectivamente o último condenado
à pena capital na comarca aveirense e o último – por isso recordado,
digamos, como um marco histórico nos anais de Aveiro, mormente numa
terra onde raramente se regista um homicídio – consequentemente, a
ser levado à execranda forca; Abominanda, sem dúvida, banida dos
princípios e códigos penais que desde então se foram humanizando e
recorrendo à modernização mecanizada de métodos mas que, não sabemos
porquê, se mantém, numa região que se ufana de gentes de humana
tolerância e benignidade sentimental, num topónimo do aro citadino,
talvez de fundamento histórico, mas de degradante lembrança.
Chamava-se esse derradeiro
supliciado em Aveiro Jerónimo dos Santos Brandão. E, acaso por um
inveterado vício desprezador das regras higiénicas e da suscitada
repugnância alheia, era geralmente conhecido – nesses antigos tempos
em que as alcunhas abundavam em Aveiro e eram talhados,
identificadores, para cada qual as características de mais evidência
– pelo apodo, com o seu quê de repulsivo de o «Cospe-Fora.»
Sapateiro de profissão, morador,
suponho, para as bandas do S. Gonçalinho, este deita-tombas ávido e
talvez canhestro. viveria, provavelmente com aperto de uma economia
doméstica sem folgas. Ele na sua arte, que não dava talvez para mais
que um modesto, aperreado dia a dia, e a mulher na absorvente lida
da casa. A labutarem sem descanso, acaso sem sequer amealharem para
«receber o ramo», como tantos vizinhos das redondezas, e sem
forrarem para constituir o pecúlio que uma velhice descansada
requeria.
Passava por ter umas vagas simpatias
pelo opressivo, ainda que não de todos malquisto, miguelismo, já
então banido de vez mas de que, bruxuleantes, algumas simpatias
persistiam.
Esse facto – aliás contestado por um
dos exumadores desse triste acontecimento – não o impediu de acolher
no seu aperreado lar, um tio, António José Gomes Guimarães, também
vulgarmente denominado por uma expressiva alcunha, a de «António, ou
Antoninho das Más Horas», que faz lembrar um celibatário, ou viúvo,
sorumbático, ensimesmado, a quem a sorte adversa ou algumas nefastas
circunstâncias da existência, atormentara. Era liberal convicto o
triste velho, no qual o luzeiro do idealismo nunca se terá
extinguido. Por esse facto sofreu nos
/ 53 / calabouços da praça de
Almeida, largo tempo de soturna e depressora prisão. E uma vez
restituído à liberdade, veio definitivamente para Aveiro, para casa
do sobrinho – em cujos sentimentos de parentesco acolhedor confiou.
E com alguma correspondência
afectiva, ou já com interesseiro cálculo, o facto é que o «Cospe-Fora»
e a mulher, Ana Rosa, nos primeiros tempos o acarinharam a ponto de
o levar a fazer testamento dos seus haveres em proveito do casal.
Daí em diante, si vera est fama,
os sobrinhos cúpidos, sentindo-se servidos, tiraram a máscara de
dedicada afeição fingida e passaram a tratar o benfeitor
agrestemente, com crescente azedume e sobranceria amargurando-lhe
uma vida de precária saúde, melancolicamente arrastada.
Numa ocasião em que descarregaria as
suas mágoas, um amigo, considerando a razão dos queixumes que lhe
confiava do casal que o acolhera por cobiça, aconselhou o infeliz
velho a fazer novo testamento deserdando os sobrinhos.
Ora essa disposição do António das
Más Horas transpirou e, casual ou mal intencionadamente, chegou aos
ouvidos do interesseiro casal, que se viu em risco eminente de
perder alguns cobiçados bens – modestos, mas que para a sua pobreza
constituíam uma fortuna apetecível e confortável.
Assim, segundo a versão que correu
pela imprensa do tempo (v. g. “O Constitucional”, n.º 52, de 1841, e
o “Periódico dos Pobres”, n.º 207), na madrugada de 11 para 12 de
Setembro de 1938, sem rumores que os denunciassem, entraram no
quarto do velho tio, que dormia sossegadamente com a cabeça coberta
com o lençol, e vibraram-lhe, certeira e mortal, uma machadada, que
logo o liquidou. E, ao que parece, para consumar o homicídio bárbaro
e se assegurar dele, haveria repetido o violento golpe por duas
vezes, segundo então se divulgou. E é muito plausível, mais por
ardor de sanha assassina, para arrumar o caso definitiva e
prontamente, do que no intuito, com vagos vislumbres de
humanitarismo, de lhe aplicar o abreviador golpe de misericórdia.
Socorrendo-me de abundantes e
escrupulosos apontamentos que sobre o macabro caso reuniu o Dr.
Joaquim de Melo Freitas que, além de muitos outros méritos, anotava
com a regularidade, a minúcia e a exactidão que lhe eram possíveis,
e não só nos acontecimentos quotidianos de interesse geral, mas dos
factos mais salientes, de toda a feição, dos anais aveirenses –
relembramos alguns aspectos de pormenor desse crime, que tanto
abalou a pacatez da população aveirense, mormente da zona da
Beira-Mar.
Homem Cristo vê neste cruel
assassinato (11) uma
maquinação de cariz político, vesga e satanicamente concebida e
perpetrada para reduzir o número dos adeptos da parcialidade
adversa. E, embora nas notas coligidas por Melo Freitas não se
exclua e antes se sugira a hipótese de intolerância, não se
apresenta o ódio político tão peremptoriamente na origem do
impressionante crime. E, afinal, essa admissível causa nos conduziu
a juntar a exaltação da alta e simpática figura aveirense
oitocentista que fez incluir no diploma basilar da vida do país, a
percursora disposição que aboliu a pena de morte para crimes
caracterizadamente políticos, com a recordação deste hediondo
episódio do patrazanal dia a dia da sociedade aveirense de há perto
de século e meio.
Reatemos, no entanto, o relato dos
factos de acordo com as narrações dos periódicos citados e das
Memórias do Tempo Passado para Lição dos Vindouros,
(12) do Dr. António Luís de Sousa
Henriques Secco e as duas mencionadas fontes aveirenses.
Com o horror que se calcula
(especialmente numa terra ainda não refeita dos abalos causados
pelas execuções daqueles que ficaram considerados como os aveirenses
Mártires da Liberdade, e cujos crânios são conservados, para alento
e inspiração dos aveirenses, como que num relicário ou numa ara dos
nossos Lares, ao centro, geométrico e de maior significado para a
nossa cultuação, do mais antigo dos cemitérios citadinos, (então
único) o cadáver do António das Más Horas, com as marcas evidentes
das machadadas brutais, junto ao que sucintamente na altura se
designava apenas pelo Cais.
E ignoramos, assim, se do lado do
Canal das Pirâmides – ao tempo recente – se já do Canal Central que,
por essas alturas, se chamava ainda, sobriamente, a Ribeira – a
pequena distância da Capela de S. João, que só viria a desaparecer
já no século que corre. Concretamente em 1911.
Aveiro – Ria e Campo do Rossio, onde se efectuou o último
enforcamento na cidade, em 1841.
A partir daquele local, as
autoridades, que logo acorreram, e os populares curiosos, que não
resistiram ao impulso mórbido de ir contemplar o macabro
espectáculo, foram encontrando, a par de cabelos, dispersos de onde
a onde, um rasto intermitente de sangue, até à casa do suspeito «Cospe-Fora»,
o que avolumava os motivos da sua culpabilização. E, mesmo dentro do
prédio, no pequeno quintal dele e na escada de acesso ao primeiro
andar, as manchas de sangue continuavam com acrescida densidade.
Aliás, os degraus mais elevados,
onde acaso se haveria derramado maior quantidade do sangue do
assassinado, mostravam haver sido lavados há pouco. Prosseguindo na
sua investigação, os representantes da autoridade, não obstante
terem sido já também submetidos a uma lavadela, não tiveram dúvidas
também de que houvera o propósito de apagar alguns
/ 54 / comprometedores
vestígios do sangue vertido, no quarto contíguo àquele em que dormia
a vítima.
No próprio quarto do desventurado
velho, aliás, havia evidentes marcas de sangue coagulado, tanto na
cama, à cabeceira dela, como na parede a que encostava, numa fiada
praticamente ininterrupta.
No exame minucioso efectuado à cama,
em que houvera o cuidado de colocar lençóis lavados, verificou-se
que o enxergão fora cortado, de forma regular e cuidadosa, na parte
central, e remendado, com serapilheira. Ora sob esse recente
remendo, no fundo de duas camadas de palha fresca, encontrava-se uma
terceira mais antiga. E nesta observavam-se manchas idênticas, não
apagadas, que tudo fazia crer serem do sangue derramado pela vítima.
A palha ensanguentada que houvera o
cuidado de retirar do enxergão viria a ser encontrada, na
continuação do exame feito à casa, numa latrina, e num outro quarto
apareceria o lençol tirado da cama, ainda enodoado, e com três
rasgões, que coincidiam exactamente com os golpes marcados no crânio
assassinado.
Claro que, com estas provas
evidentes, e a ajuntar os zunzuns que há um certo tempo se
cochichavam acerca dos propósitos cúpidos e desumanos do «Cospe-Fora»,
este foi imediatamente preso. Sobre ele recaíam, aparentemente
indubitáveis, as culpas do cruel homicídio.
O sapateiro, estribado talvez em
ilusórias promessas de um oculto instigador do crime, terá reagido
com relativa serenidade à determinação de captura, alegando que
ninguém podia ser preso sem culpa formada. E, agarrado a essa
pretensa tábua de salvação, interrogado acerca dos vestígios de
sangue encontrados, calmamente retorquiu que eram devidos à
aplicação de sanguessugas que o desventurado Antoninho das Más Horas
usava amiudadamente.
De seguida, foi levado até ao cais,
e colocado defronte do maltratado cadáver do tio. Pelo caminho,
repetidas vezes, houve quem notasse que procurava apagar, com as
solas das botas, os vestígios já secos dos pingos de sangue. E, na
presença do corpo, cinicamente, declarou que o desventuroso António
das Más Horas, não pernoitara em casa. Teria estado durante a noite,
provavelmente, com algumas mulheres da vida fácil, que acaso o
houvessem roubado, e depois assassinado.
O desprendido à-vontade e a
insensibilidade com que engendrava fictícias razões para um crime
que à generalidade das pessoas, horrorizadas e indignadas não
deixava dúvidas da autoria e do móbil, indispusera as ânimos a ponto
de os populares, desbordantes de ira castigadora, mostrarem
disposição de desejar fazer «justiça» por suas próprias mãos,
imediata e decisiva. Só a prudência e os suasórios argumentos das
autoridades o terão evitado.
O julgamento, a que presidiu o Juiz
José Maria da Silva Pinto, terminou a 8 de Março de 1839. O «Cospe-Fora»,
não obstante a sua persistência em negar a autoria do crime, tão
evidentes lhe pareceram as provas, condenou-o à pena capital por
enforcamento.
A mulher, a seu turno, condenou-a a
degredo por toda a vida, em Cabo Verde – zona ultramarina para onde
normalmente estava impedida a imposição de degredo a mulheres, pelo
expresso na Ord. L.º 5, tit.º 14.º § 2.º, mas que, em casos de muita
gravidade, como o que estava em causa, fora consentida, por um
decreto de 27 de Junho de 1795. Solidariamente, aliás, o tribunal
condenou também o casal, e, pois, «ambos os condenados, no pagamento
das custas» do processo.
A Ana Maria, que teria agido em
conivência com o marido, na mesma mira da herança que via em perigo
/ 55 / de fugir-lhe, mas que
teria desempenhado um segundo papel, de comparsa apenas, apelou da
sentença. Vê-la-ia comutada em apenas quatro anos de degredo, na
ilha de S. Vicente, também do arquipélago cabo-verdiano.
O enforcamento do «Cospe-Fora»
verificar-se-ia a 3 de Setembro de 1841 – uma data negra da história
de Aveiro, que só se recorda pela circunstância de a aplicação da
pena capital haver sido a última na cidade e na comarca. E a forca
foi erguida no Rossio, o logradoiro em cujo entrada se ergueu,
durante vários séculos, o pelourinho, que os liberais não resistiram
a derrubar, já que de algum modo lhes lembrava um regime banido. E
no Rossio ainda não ampliado com a expropriação da velha marinha
Rossia, de que há já notícia dos fins do século XIV, nem com a
demolição já novecentista, como já referimos, da mal estimada capela
de S. João, o malquisto condenado chegou do Porto, onde estivera a
aguardar o cumprimento da sentença, e de onde partira na sua última
segunda-feira, para chegar a Aveiro, na terça imediata, ao princípio
da tarde. E no moroso, fastidioso percurso – com uma parcela feita
por terra, e outra, do Carregal de Ovar à cidade, por via fluvial, a
remos ou à vela – nunca deu sinais de abatimento. Talvez, e até aos
derradeiros momentos, confiado em qualquer poderosa intervenção
protectora enganosamente prometida.
Ao contrário, mostrava-se, sereno,
confiado, bem humorado. Apodava pejorativamente de «malhados» os
soldados que o custodiavam, o que faz crer nas suas simpatias
miguelistas. E asseverava-lhes, convicto, que a sua morte, se se
verificasse, a curto trecho seria vingada.
Inseguro, todavia, da sorte que lhe
estava destinada, inconfiado na efectivação de frustes prometimentos
que lhe hajam feito, perdeu, porém, o apetite. Salvo uma pequena
porção de marmelada que mal saboreou por alturas de Ovar, nada terá
comido na demorada viagem, que, afinal, efectivamente o trouxe para
a fatídica forca.
Com a antecedência de três dias,
para cuidarem, em pormenor, de todos os preliminares, já haviam
chegado, para procederem à execução, dois algozes oficiais e
experimentados.
Em Aveiro, já que a pena de morte,
em consonância com o sentimento das populações, estava já caindo em
desuso, não os havia, e ninguém se disporia a desempenhar essa
macabra, nefanda função.
Nessa altura, segundo as notas
recheadas de dados, os mais mínimos, de que me venho servindo, os
execrandos algozes envergavam uma indumentária negra – negra como a
tarefa de que se encarregavam –, com botas também negras, e uma
espécie de gabão amarelo – como o desespero dos penitentes
executados.
Ficou na tradição – e tanto Melo
Freitas como Homem Cristo o registam – que o «Cospe-Fora» teria
relatado com minúcia e sem esconder o mínimo pormenor, como se dera
o crime e quem realmente o praticara ao sacerdote que o ouviu de
confissão antes de subir à forca, o conhecido e conceituado Padre
Possante – ou melhor o Prior Possante, o bondoso e ilustrado
murtoseiro Padre João José Marques da Silva Valente.
Este respeitado sacerdote talvez não
desse inteira credibilidade aquela última confissão e tê-lo-á
dissuadido de declarar a pouco verosímil versão que lhe apresentava
e que comprometia o conhecido Capitão Joaquim, pertencente a uma
conceituada família. Antigo «assentista da tropa», chamava-se
Joaquim António Coelho de Almeida, e, alvo da pecha local de crismar
com as mais diversas alcunhas os habitantes da cidade, foi durante
largo tempo apodado de Joaquim dos Burros. Só mais tarde, e já
quando desempenhava aquela rendosa função, passou a ser geralmente
designado por o Capitão Joaquim – porventura capitão de milícias
como sugere Homem Cristo.
O veemente panfletário aveirense
refere-se-lhe nos seguintes termos:
(13)
«Esse nome ficou ligado a uma
tragédia que teve o seu epílogo na forca, erguido no Rossio (...). O
Capitão Joaquim era ferozmente miguelista. Como o Fernando da
Estalagem, (14) como
toda a família.
«Enquanto D. Miguel esteve no poder,
os miguelistas em geral – havia excepções como em tudo – andavam à
caça dos liberais como quem anda à caça de codornizes. Destruí-los
pela mais extrema violência, a prisão em condições horrorosas, o
cacete, a forca, eram todo o seu objectivo. Caído D. Miguel
recorreram, para o mesmo fim, à calúnia, à intriga, a todos os
expedientes, por mais vis.»
E concretiza: «Em Aveiro houve um
qualquer dissentimento entre dois liberais
(15), que viviam juntos, o António das Más
Horas e o Cospe-Fora, tio e sobrinho. Capitão Joaquim
procurou meios de os perder. E começou a andar à roda do sobrinho, a
envenenar-lhe a alma, a perturbar-lhe o espírito, dizendo-lhe: – Vai
refazer o testamento e deserda-te, se, antes, não deres cabo dele.
«Ao Cospe-Fora, a ideia de o
tio o deserdar endoidecia-o. O Capitão Joaquim foi-o percebendo, e
foi insistindo: – Se não deres cabo dele estás perdido.
O Cospe-Fora acabou por aceitar a
ideia de dar cabo dele, Mas, confessava, não se sentir com ânimo
para ser assassino. – «Tens coração de pombo! Mas não tem dúvida.
Isso arranja-se. Eu forneço um homem de pulso.»
O crime consumou-se nas
circunstâncias que vimos.
E, depois de perpetrado, diz ainda o
castigador polemista:
«Quando raiou o dia, o Capitão
Joaquim dirigiu-se a casa do Manuel Maria Ferraz (...) com uma loja
de
/ 56 / mercearia
(16) no ainda hoje chamado Largo do Manuel
Maria, alegre e sorridente: – Manuel, já lá vai mais um.»
E, depois de acrescentar que o
Manuel Maria também era adepto do miguelismo, odiento e opressor,
adianta:
«O Cospe-Fora, preso e
julgado, negou sempre que houvesse sido ele o assassino. E
tudo o mais ocultou, convencido de que o salvariam as influências
que tinha na terra o Capitão Joaquim. Enganou-se. (...)
«Conta-se – e neste particular, como
vimos há coincidência manifesta com o referido nas notas do Dr.
Joaquim de Melo Freitas – que, no oratório, disse tudo ao confessor.
Era tarde.»
E, antes de recordar o terror que as
várias facetas do caso lhe causavam, quando em menino o ouvia
relatar, rematava a sua alusão a uma última fase, de incontidas
manifestações alucinadas, do hediondo crime: «Capitão Joaquim, mais
tarde, endoideceu (17).
E foi ele quem, nos desvarios da loucura, veio a lançar a melhor luz
sobre a tragédia. Tinha visões horríveis. Ora sentia estalar os
ossos do António das Más Horas sob os golpes da machada, ora
via o Cospe-Fora, com meio palmo de língua saída, a baloiçar
na forca. Aos gritos, tapava os olhos com as mãos, e caía de
joelhos, pedindo perdão aos homens e a Deus. Às vezes fugia, de
olhos esgazeados e mãos crispadas, de corpo vergado para o chão,
como se alguma coisa horrenda o perseguisse. E clamava: – Deixa-me,
deixa-me, perdão. Quem mandou matar o António das Más Horas
fui eu». (18)
Admite-se, pois, que este último
enforcamento, efectuado no amplo logradoiro, junto ao qual foi
encontrado o cadáver do velho indivíduo assassinado, tivesse na
origem um vesgo ódio político. É apenas uma suposição, uma
conjectura talvez infundada, ainda que com aparências sugerentes de
uma confirmação e de uma credibilidade com largos pontos de
verosimilhança.
Lembrar esse episódio, com aspectos,
aliás, antagónicos com a anterior evocação, conjuntamente com o
relevamento de significado humano da abolição de pena de morte por
crimes políticos, ao mesmo tempo que um ilogismo, parece-me
perfeitamente justificado e oportuno. E julgo que constitui mais uma
demonstração incontrovertível da grandeza de espírito do inspirador
e propugnador dessa humanitária disposição constitucional – que,
mesmo na lembrança relativamente fresca do crime hediondo que deu
motivo à última execução capital efectuada na sua terra, não deixou
de apostolizar, vibrante, generosa, aglutinadoramente, para os
próprios adversários mais intransigentes e torvos.(19)
__________________________________
(1)
– Parabens, 1884, pg. 25.
(2)
– Parabens, 1885, pg. 6.
(3)
– O Povo de Aveiro, n.º 288 (7.º ano), de 21-8-1887.
(4)
– Parabens, 1884, pg. 25.
(5)
– Parabens, 1885, pg. 13.
(6)
– Um combate sem sangue, in Parabens, 1885, pg. 8.
(7)
– Parabéns, 1885, pg. 9.
(8)
– Um combate sem sangue, in Parabens, 1885, pg. 8.
(9)
– A Constituição da República Portuguesa, actualmente em vigência, e
aprovada em 2 de Abril de 1975, diz, textualmente, no Artigo 25.º –
2 – no Título lI: «Em caso algum haverá pena de morte». Mais: no n.º
2 da Artigo 26.º ficou expressamente disposto que «Ninguém pode ser
submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou
desumanas».
(10)
– Marques Gomes, «José Estêvão», 1889, pg. 119.
(11)
– José Estêvão –«Estudo e Colectânea», 1962, pg. 121.
(12)
– Notas da Minha Vida e do Meu Tempo, VpI. 1, pg. 67.
(13)
– Fasc. 2.º, pg. 226.
(14)
– Ob. cit., pgs. 67 a 69.
(15)
– Pai do Capitão Joaquim, de seu nome completo Fernando António de
Almeida.
(16)
– É duvidoso que fossem.
(17)
– Que mais tarde pertenceria a Albino Pinto de Miranda, cujo nome
preteriria o do antecessor, na toponímia popular, espontânea.
(18)
– O Dr. Joaquim de Melo Freitas, nas suas notas apontou: «O Capitão
Joaquim endoideceu depois e dizia: «Quem o matou fui eu. Dei-lhe com
um pau de campeche».
(19)
– Não há, em diversas particularidades, inteira concordância nas
duas versões do caso que citei, o que, aliás, é natural acerca de um
facto ocorrido multo tempo antes, e que se transmitira em relatos
orais deturpadores. |