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Em 6 de Agosto de 1933, o Dr.
António Gomes da Rocha Madail lia aos seus conterrâneos, nos Paços
do Concelho de Ílhavo, um notável relatório em que traçava o
esqueleto do que viria a ser o museu da sua terra, dando, assim,
concretização ao sonho de um grupo de impenitentes bairristas, à
frente do qual se encontrava Américo Teles, que era o elemento
aglutinante de todas as boas vontades e que, ainda hoje, é o coração
pulsátil de uma obra que, em grande medida, a ele se deve.
Trata-se de um trabalho
meticulosamente estruturado e culturalmente fundamentado e que
continua a servir de vertebração sistemática à instituição e de que
veio a ser publicado, sob a designação de «Etnografia e História»,
uma exígua edição, hoje, deploravelmente esgotada, dado que foi
apenas de 300 exemplares.
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O «Homem do Leme» – Escultura de
Américo Gomes |
Nesse trabalho inicial eram
consideradas, objectivamente, todas as possibilidades que Ílhavo
tinha de concretizar o seu Museu sem que, nem ao de leve, a erudição
e a cultura do seu autor o deixassem resvalar para entusiasmos
fáceis, que são o caminho que conduz à utopia. A propósito desse
modelar trabalho, o Prof. Mendes Correia disse, com inteira justiça,
que «não se trata de um plano ambicioso, desordenado ou com os
exclusivismos que são o defeito de muitos especialistas. Antes pelo
contrário, ao mesmo tempo que se confina, modestamente – mas
seguramente – no terreno das possibilidades reais da sua Terra, –
estabelece, metodicamente, os tópicos de uma ampla messe de
documentos e materiais que definem a região e a gente, os caracteres
locais, as tradições, as actividades dominantes, desde a Geologia e
a Geografia, à História, à Arte, à vida espiritual, desde o Mar e
desde a Ria – teatro da labuta e dos sonhos de tantos ilhavenses – à
terra, à faina mercantil e agrícola».
Sumariamente, pode-se enunciar assim
o plano que então foi estabelecido:
1.º) Como elemento basilar uma
secção de Arquivo que haveria de recolher o mais possível de
documentação gráfica referente aos aspectos geológico, topográfico,
hidrográfico e climático, enriquecido com boas fotografias, gravuras
e outras espécies de documentação;
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2.º) Pesca – Ria, litoral e Alto,
que recolheria o mais possível de redes, anzóis, agulhas e
respectivos muros, canastras, oleados, macolas, foquins, etc.
3.º) Navegação – Com o maior
acervo possível de barco, actuais e históricos, quer de transporte,
quer de recreio, quer à vela, quer a remos, quer a motor, com
particular interesse pelas embarcações específicas da Ria de Aveiro;
4.º) Sala de Fauna e Flora
marítimas;
5.º) Vida agrícola, com particular
atenção para a especificidade da lavoura da região, designadamente
quanto ao chão de areia e à adubação à custa dos moliços;
6.º) Indústrias locais, com
particular atenção para a salicultura, a construção naval e a
cerâmica, muito especialmente o que diz respeito às porcelanas da
Vista-Alegre;
7.º) Artesanato (olaria, tecelagem,
vestuário regional, etc.);
8.º) Recordações históricas da
terra;
9.º) Artistas locais;
10.º) Obras de arte, embora de
autores estranhos à terra mas que tenham qualquer relação com o meio
ou documentem paisagens, usos e costumes.
Galera de Guerra do século XVIII –
Precioso exemplar em marfim.
E sobretudo, já se aventava, talvez
ainda no campo das hipóteses possíveis, a tentação de uma etnografia
comparativa que dilataria as colecções para fora de um âmbito
puramente local, possibilitando estudos de genética etnográfica.
Por fim, uma Biblioteca completaria
o plano de aspirações então formulado.
Apontou-se, resumidamente, o
projecto, dada a impossibilidade de, num trabalho deste género, nos
podermos deter sobre a argumentação robusta com que Rocha Madail
fundamentava as suas aspirações e a sua sistematização.
A concretização das aspirações levou
ainda muito tempo e acarretou um trabalho árduo e teimoso de
recolha, de selecção e de exposição museológica restringida e
perturbada pela exiguidade do edifício que foi adaptado a uma função
para a qual não tinha sido construído. Com o tempo, com o aumento do
recheio e com a degradação que a casa foi sofrendo, mercê das
intempéries e da velhice, que não mereceu qualquer socorro de
restauro, as coisas complicaram-se de tal forma que a exposição
museológica de hoje enferma de defeitos a que nenhuma ortopedia pode
dar solução.
Na verdade, os objectos expostos
amontoam-se de modo a não deixar os imprescindíveis espaços vazios,
para que as peças possam ser convenientemente apreciadas e a
circulação se possa fazer em condições aceitáveis. Por outro lado,
este estado de coisas, inibe, totalmente, a direcção do Museu de
trazer à luz do dia uma grande quantidade de objectos merecedores de
exibição e que jazem inumados em arrecadações de empréstimo, à
espera da hora em que a construção de um edifício próprio, que se
impõe, venha possibilitar um arranjo museológico que, devendo ser
selectivo, permita tirar das colecções o máximo que elas
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comportam em documentação científica, em função pedagógica e em
valor estético.
Reconstituição de uma xávega.
Sendo, como é, um Museu
essencialmente de etnografia marítima, é sob esse aspecto que tem de
ser encarado. E pode-se, sem excessos deformantes de bairrismo,
dizer que sob esse ponto de vista o seu recheio é notável.
Se os argumentos de autoridade podem
valer alguma coisa ao menos como testemunhos qualificados não me é
difícil apoiar o meu juízo de valor sobre opiniões de conhecedores
do assunto, pondo à cabeça o parecer do Prof. Dr. Jorge Dias, uma
das maiores competências em assuntos de Etnologia e que se exprime
nestes termos:
«Este Museu importantíssimo deve-se
ao seu director e fundador (Rocha Madail) e a um grupo de ilustres
ilhavenses que reuniram uma preciosa colecção de miniaturas de
embarcações e barcos da Ria e do Mar, aprestos, vários tipos de
redes, vestuário popular, ex-votos e louças regionais. É um Museu
Etnográfico regional valiosíssimo, muito digno de ser visitado e
que muito honra esta pequena e simpática terra».
E acentua, como não podia deixar de
ser, que «Pena é que a falta de instalações adequadas não permita
dar-lhe o desenvolvimento que era de esperar viesse a conseguir pelo
que vemos realizado, etc., etc.».
Jean Meirat, o conhecido nautógrafo
francês, refere-se assim ao Museu de Ílhavo:
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«Aux amis des Musées de
la Marine qui vont visiter le Portugal nous croyons devoir signaler
la petite ville d'lIhavo, sur Ia Côte, à 5 km au sud d'Aveiro, pour
I'intérêt que présente son musée municipal».
Por sua vez, D. Sebastião Pessanha,
outra autoridade em assuntos de etnografia faz, entre outras, as
seguintes referências:
«Este pequeno, mas adorável Museu de
Ílhavo, só poderia ser uma realidade com uma feição nitidamente
etnográfica, pobre todo o concelho de outros valores afins, e a
própria realização de tão feliz iniciativa se encarregou de
demonstrar que foi acertado o caminho seguido, muito havendo, ainda,
neste campo, para arrecadar e pôr a bom recato.»
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Utensílios de uso nas Xávegas.
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E acentua: «Sem instalação condigna
e adequada, como sucede com a maioria dos nossos museus, é, porém,
um modelo de arrumação metódica e de bom gosto, que muito contribuem
para a valorização do seu já valioso recheio.»
Poderiam multiplicar-se os
testemunhos, alguns de grande valia, como os de Jaime Cortesão,
Artur de Magalhães Basto, Aarão de Lacerda, Alfredo de Magalhães,
etc., etc., se não fosse, apenas, a título exemplificativo que se
transcreveram para aqui algumas opiniões.
Impossível enunciar nesta sumária
memória mesmo o essencial dos documentos etnográficos recolhidos,
mas, como simples amostra, diremos que na sua secção marítima, desde
a canoa ao dongo africano, desde o
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chaveco argelino ao palhabote, desde o pangaio da índia ao «kayak»
esquimó, desde a Caravela e a Nau dos Descobrimentos ao paquete dos
nossos dias, a colecção reúne tal profusão de modelos (muitos,
rigorosamente construídos em escala) que dificilmente encontraremos
outra que emparceire com ela.
Notável também a colecção de agulhas
de marear e um rico mostruário de poleame que tem 42 peças: notável
da mesma forma a colecção de trabalhos de marinheiro em fio que
reúne 153 espécies.
Os barcos da nossa ria estão, como é
natural, completamente documentados, e lá se encontram a bateira
mercantil, o moliceiro (o das Gafanhas e o Mirão), o
barco saleiro, a bateira labrega, a ílhava, a
caçadeira, senda de lamentar que a precariedade das instalações
não tenha permitido recolher exemplares autênticos, o que se fará
quando as futuras instalações em edifício próprio o permitirem.
Redes e apetrechos de pesca estão
também completamente representados, bem como uma interessante
miniatura da instalação de uma Xávega com o seu Palheiro, o
Barco de Mar, e o carro de bois de rodas apropriadas para
areia e de tudo aquilo que constitui a utensilagem empregada naquela
actividade.
Importantíssima a documentação que
diz respeito à Salicultura com uma miniatura, em escala, de uma
marinha de sal e exemplares autênticos das alfaias onde estão
recolhidas as almanjarras, o anafador, o basculho,
a trangueira, o círcio, a moeira, o pajão,
o pé de pou, o ugalho, o rapão, e onde nem
sequer falta o sal, o sal de espuma, a ândua, o torrão,
etc.
Documentados, também se encontram
com modelos, rigorosamente construídos em escala, a «Seca do
Bacalhau» com seus armazéns e utensílios e uma xávega com seu
barco em crescente cuja misteriosa origem talvez possa ir catar-se
no petroglifo de «Haggeby» na costa da Suécia, com seu carro de bois
de rodas de largo rasto para rodarem sobre a duna, o Palheiro e
todos os aprestos de uma actividade popular que ameaça desaparecer
definitivamente se o turismo não a vier conservar ou a criar,
para exemplo, um sucedâneo deturpado para turista ver.
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O túmulo do Bispo, de Claude Laprade, na
Capela da Vista Alegre.
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Seria fastidioso nesta mera notícia
espevitadora estar a fazer enumerações exaustivas que, futuramente,
terão o seu lugar no catálogo quando a disposição, tanto quanto
possível definitiva, da exposição museológica permitir fazer o
roteiro do Museu ao mesmo tempo da catalogação.
Entretanto não poderá deixar de se
chamar a atenção do leitor para a já preciosa colecção de
porcelanas, vidros e meios cristais da Vista-Alegre que se
amontoam (é o termo), na exiguidade da sala de exposição e na
insuficiência das vitrinas que a contêm. Do mesmo modo é de realçar
a escultura e a pintura que o Museu possui e que, apesar de modesta,
tem já motivos reais de interesse e, sobretudo, de corroboração do
núcleo etnográfico que constitui a medula de toda a instituição. Na
verdade, a maior parte das obras plásticas que enriquecem o museu
estão ligadas à parte paisagística da região e às actividades
piscatórias, marítimas, não apenas regionais, mas de sentido muito
mais lato ou a razões de ordem iconográfica
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em relação com ilhavenses que se tenham notabilizado.
A título meramente exemplificativo
interessa referir que se encontram, entre muitas outras, obras dos
seguintes artistas: Alberto de Sousa, Alfredo Morais, António
Vitorino, Cândido Teles, Cândido Craveiro, Rei D. Carlos, Fausto
Gonçalves, Francisco José de Resende, Fausto Sampaio, João Carlos,
Manuel Tavares, Martins Barata, Sousa Lopes, Tomazzini, em pintura e
desenho, e Abel Salazar, Américo Gomes (a escultura «O Homem do
Leme», documentada em fotogravura nesta Revista) Euclides Vaz,
Henrique Moreira, Sousa Caldas, Raul Xavier, etc., sem falar de
outras menos conhecidas mas que, por razões ligadas à especificidade
das obras, mereceram representação.
Par de preciosas jarras pintadas por
Victor François Chartier Rousseau.
Claro que o Museu de Ílhavo quer ser
– e é, realmente e nuclearmente – um museu de etnografia marítima; e
é nesse sentido que a sua função tem maior interesse para o
visitante e para o estudioso que lá encontrará excelente material
para gastar tempo e actividade com real proveito. Mas foram
cuidadosamente aproveitados dentro das possibilidades todos os
elementos corroborantes, quer importados da actividade artística,
quer do elemento natural (fauna e flora, por exemplo, onde são
notáveis as colecções de algas). Por outro lado, não podia deixar de
se interessar por variadas manifestações de artesanato regional
(olaria, tecelagem, trajes, etc.) e por uma indústria de tanta
expressão artística como a porcelana da Vista-Alegre que, no
concelho, há perto de cento e cinquenta anos, tem enobrecido o vidro
e o caulino com os primores de um apurado fabrico e com o
virtuosismo dos seus artífices, pintores e escultores.
E não se estranhe que um Museu que
se chama "Marítimo e Regional» não tenha esquecido aquilo
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que recorda os seus homens notáveis e as peças de valor artístico
que, embora de origens dispersas, foram recolhidas dentro do
concelho e com ele tenham relação.
Imperioso é que uma obra, tão
amorosamente concebida e realizada, e tão sistematicamente
organizada, encontre apoio para a concretização da sua aspiração
máxima – um edifício capaz onde possa recolher e expor (sobretudo
expor) para um destino pedagogicamente fecundo o que tanto custou a
recolher e tantos anos de estudo sério gastou ao seu sonhador e ao
seu concretizador.
O alçado do futuro Museu de Ílhavo.
Estão dados os passos iniciais já
visíveis no terreno onde virá a ser implantado, na aprovação, pelas
entidades superiores, do projecto do edifício e, até, na existência
de uma quantia que, bem medida, deve orçar pelo milheiro de contos.
Esperamos todos – e confiadamente –
que, num futuro próximo, a mão de dar de entidades e instituições
venha em socorro de uma obra que não merece a condenação do
armazenamento em que neste momento se encontra e que tão
expressivamente tem sido lamentado pelos conhecedores do assunto que
a têm visitado com visível e expresso interesse. |