Convidado pelo Senhor Presidente da
Câmara da Feira a apresentar um apontamento resumido sobre a
história das freguesias que hoje formam o concelho da Feira, aqui
trago um pequeno ensaio nesse sentido sobre a parte mais antiga
dessa história, baseado no que me foi possível recordar através dos
nomes dos seus lugares.
São conhecidas as possibilidades
desse estudo, por fornecer um apreciável número de elementos que,
por vezes, constituem o único meio de vislumbrarmos o que terá
acontecido. Será provisório, porque está muito incompleto em
consequência de eu não possuir, de momento, a lista de todos esses
nomes, mas apenas uns tantos, recolhidos nos cadernos da matriz
provisória de 1845. Na actualidade os livros da matriz, até há pouco
em serviço na Repartição de Finanças concelhia, são bem mais
completos; mas, dado o cuidado que precisa e o tempo que gasta a sua
recolha, não pude ainda dedicar-me a tal trabalho, tanto mais
demorado quanto é certo que não bastam os nomes dos lugares
habitados, mas também os dos sítios e até os dos simples campos e
pinhais, que igualmente podem ser reveladores.
Começarei pela pré-história, sem
todavia ir até aos alicerces mais profundos, já que desses tempos
mais recuados não obtive referências directas ao concelho da Feira,
mas apenas a uma zona mais larga. Esse estudo ficará para outra
oportunidade. Assim, entrarei directamente no período que vai desde
o Neolítico até à Idade do Bronze. Isto é um tanto vago; mas segundo
os tratadistas, irá desde o ano 2000 até ao ano 450 a. C.,
aproximadamente.
Para rastrear alguns dos
acontecimentos desses velhos tempos feirenses, basta procurarmos os
nomes que através do concelho os recordem. Assim, apesar dessa
recolha incompleta acima referida, encontrei Mâmoa e Mamoa
pelo menos nas freguesias do Fiães, Lobão, Milheirós de Poiares,
Feira e Travanca; Mamoela em Escapães; Antela em Lobão
(e não devemos esquecer Anta de Espinho); Arca ou Arcas
em Canedo, Escapães, Fiães, Pejeiros e Travanca; Arcapedrinha
em Travanca; Orca em Canedo; Forno, Fornos ou
Forninhos em Arrifana, Canedo, Fiães, Fornos, Guisande,
Lobão, Milheirós de Poiares; Moselos, Rio Meão, S. João de Ver,
Souto e Travanca; Arcos (se é que não refere outra
construção) e seu diminutivo Arcozelo em Argoncilhe,
Milheirós de Poiares, Rio Meão e S. Jorge.
Castelo de Vila da Feira
Todos estes nomes, apesar de algumas
discordâncias dos especialistas, recordam sepulturas pré-históricas.
Se considerarmos a falta já notada de outras referências, a aparecer
provavelmente nos nomes de campos e pinhais não incluídos nas listas
consultadas, pode concluir-se, sem receio de grande erro, que a
região feirense e suas vizinhanças eram, desde há milhares de anos,
apesar da natural menor densidade de população, já razoavelmente
povoadas. Por outro lado, se estes nomes recordam apenas locais de
enterramentos, é evidente que os habitantes dessa época viviam
perto. Também se encontram através da toponímia alguns dos lugares
onde essa gente vivia até à chegada dos romanos. Contam os
escritores da época que surpreenderam esses nossos antepassados
reunidos em pequenos povoados no cimo dos montes, certamente para
mais fácil defesa deles. Os romanos, por analogia, chamaram a essas
povoações Castros, nome esse que ainda na actualidade
conservamos, ou como por metátese o povo diz, crastos. Pois
também esse topónimo se encontra pelo menos nas freguesias de
Argoncilhe, Canedo, Fiães, Louredo e Romariz. Que eu saiba apenas o
castro de Romariz está parcialmente explorado (pelo falecido Pe
Manuel Fernandes dos Santos, dali natural) que deixou a descoberto
umas tantas casas e recolhido diverso material, constituído por um
pequeno espólio que só muito recentemente tive oportunidade de
contemplar. Pelo que me pareceu, tal material quase não acusa a
presença romana, a não ser talvez em alguns restos de telhas que, se
não estou errado, por lá vi. Pelo exame, (ou melhor, simples
contemplação apressada), tanto das ruínas como
/ 16 /
do espólio, fiquei com a impressão de não ter havido luta ou
incêndio, apesar dos carvões aparecidos por diversos lados.
Provavelmente a população foi convencida a trocar aqueles altos
pelas terras baixas, para se dedicarem à agricultura e reduzir os
hábitos guerreiros, como foi política dos romanos.
Continuando a prospecção, entramos
agora já no tempo dos romanos, ou seja do século II a V, e para isso
será melhor socorrer-me dos seus escritores, onde se podem recolher
diversas informações relativas aos povos que as suas tropas
encontraram na região. Mas não dizem grande coisa sobre a zona que
agora é a Feira. A tal respeito, pouco mais encontrei que o nome dos
povos residentes a sul do Douro: túrdulos antigos e
pesúrios. Apesar dos romanos terem sido os invasores que mais
influenciaram os invadidos, pondo de parte a linguagem, pouco mais
resta deles entre nós que diversos topónimos mal definidos, algumas
estradas e o castelo. Quanto aos topónimos, há evidentemente
bastantes de origem latina, mas, segundo pensam os especialistas,
não devem vir desse tempo, mas sim de época bastante posterior, da
Reconquista provavelmente. Por isso passo avante. Quanto às
estradas, possuímos umas boas centenas de metros junto ao largo das
Airas, na sua face poente, em direcção a Fiães, (que não me parece
estimada como merece), com o empedrado característico, evidentemente
consertado em épocas posteriores, e natural é que existam outros
bocados por inventariar. Também não parece haver dúvidas da presença
romana no castelo, ali provada por diversos indícios.
Se algum escritor romano se aproxima
mais da nossa região, é Plínio sem dúvida. Todavia, nada diz que se
possa imputar directamente a esta região, embora ande por perto.
Efectivamente diz ele: A Durio Lusitana incipit. Turduli veteres,
paesuri, flumen Vagia, oppidum Talabrica, oppidum et flumen Aeminium,
oppida Conimbrica, Collippo, Eburobrittium. O que em português
significa: A Lusitânia começa no Douro. Contém os túrdulos
antigos, os pesúrios, o rio Vouga, a cidade de Talabrica (ainda
por deteminar com segurança) o rio e a cidade de Eminio (o
rio Mondego e a cidade de Coimbra) as cidades de Conimbrica
(em Condeixa-a-Velha) Colipo (talvez Leiria) e Eburobricio
(Alcobaça?).
Considerando que Plínio viveu no
século I da nossa era, somos com este texto levados a concluir que
naquela altura, provavelmente, pouco haveria por aqui digno de
referência. Não esqueçamos, porém, que, para além das aras
presumidas como romanas, existem pedras integradas de modo disperso
nas paredes da torre de menagem com um tipo de aparelho, ao que
parece, feito por pedreiros romanos do Alto-Império (como me
confirmou o sr. dr. P.e Carlos Alberto Ferreira d'Almeida, nosso
ilustre conterrâneo e muito sabedor Assistente da Faculdade de
Letras do Porto), a indicar-nos a data da construção de um outro
edifício anterior, cuja pedra foi depois aproveitada para a
construção da torre. Não admira, portanto, o silêncio de Plínio,
pois tal construção pode ser-lhe posterior.
Continuando a perscrutar os
escritores romanos, vamos deparar com o vulgarmente chamado
ITINERÁRIO DE ANTONINO, muito citado. Aí, efectivamente, ao tratar
da estrada Lisboa a Braga, toca-nos directamente quando, ao apontar
as distâncias e povoações, na parte do percurso que nos interessa,
depois de Emínio diz:
Talabriga mpm XL
Lancobriga mpm XVIII
Calem mpm XIII
Com esta indicação resumida (aliás
pouco segura segundo alguns autores) levanta para nós um problema
ainda por resolver, ao dizer que Lancobriga dista de Calem 13
milhas. É que durante muito tempo, e não sei na peugada de quem, era
considerado o nome de Lancobriga como referente à Vila da Feira. É
até curioso notar que, em 1758, já o pároco da Vila referia essa
opinião. Conta ele, nas respostas dadas para o DICIONÁRIO
GEOGRÁFICO, que se dizia haver memórias manuscritas que davam
a Vila da Feira como fundada pelo rei Brigo, e daí ler o nome La
Cumbrica. Apesar dessa confusão etimológica (briga – de origem
celta significa ‘altura fortificada’) e do ar espanholado e saleroso
que a disfarça, quer dizer apenas, Lancobriga. Todavia, mais tarde,
creio que já neste século, alguém fez contra-vapor e abalou a antiga
convicção, ao alegar que as 13 milhas romanas referidas por
Antonino, a separar Gaia da Lancobriga (que correspondem a 19220,5
metros, visto que cada milha tinha 1478,5 metros) não chegam para
cobrir a distância entre Gaia e a Vila da Feira. Efectivamente assim
parece, mesmo talvez depois de entrar em linha de conta com a
redução do percurso da estrada romana, que de modo geral cortava a
direito.
Apesar disso, suponho que não se
pode dar o assunto por inteiramente arrumado. Todos os raciocínios
para isso feitos assentaram na ideia de que a estrada n.º 1 é uma
edição actual da antiga via romana referida pelo Itinerário romano.
Mas será essa, na verdade, a via a que Antonino se refere? Como não
deu mais referências entre Talabriga e Calem além de Lancobriga,
parece-me que não se poderá garantir que a via por ele referida seja
aproximadamente a actual estrada n.º 1, mesmo contando com as
alterações. E se assim é, pode referir-se a outro percurso. Ora o
curioso é que esse outro percurso existe, se é que não estou muito
enganado; simplesmente ninguém lhe ligou qualquer importância.
Trata-se da via denominada por alguns documentos dos cartórios de
Grijó e Pedroso por estrada mourisca.
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Enquanto uns escritores aceitam a sua existência, outros
consideram-na fantasia e apenas derivada da ideia de que tudo quanto
é mais antigo e se desconhece a origem se diz ser do tempo dos
mouros. A princípio também naveguei nessas águas, mas depois de
considerar a dificuldade de justificar a situação do castelo longe
como está da estrada n.º 1, procurei sinais de uma via que lhe
passasse próximo. Como amostra dessa colheita posso apresentar as
seguintes notas: «in villa dicta azevedo subtus iIIam stratam
mouriscam», como se diz num documento de 1145, ao referir-se ao
lugar de Azevedo, da freguesia de S. Vicente de Pereira; podendo eu
acrescentar que ainda hoje existe um antigo caminho mais ou menos
abandonado que, do referido lugar de Azevedo, passa pelo Ferral e S.
Gião, de Souto, em direcção ao Castelo, parecendo confirmar não só
este documento como outro de 1141 diz: et subtus e eandem
stratram mauriscam prope littus marinus sub castelo sancte marie.
E junto ao lugar de Brito (perto de Espinho) há também vestígios de
uma antiga estrada há muito abandonada, que Armando de Matos
classifica de «segunda estrada» numa classificação sua, e que seguia
mais junto ao mar. Há outras referências, mais ou menos nítidas em
diversos documentos, que não cito aqui para não alongar muito este
apontamento. Mas suponho que não será preciso referir nada mais
para, ao contrário do que alguns escritores dizem, considerar como
efectivamente existente uma segunda via, não convenientemente
estudada, e que afinal pode muito bem ser aquela a que Plínio
aludiu. Quanto ao nome por que era conhecida no século XII, não vejo
razões de peso para não aceitar o nome de estrada mourisca
dado pelos notários, não coevos, mas pelo menos muito mais próximos
do domínio muçulmano, cuja memória portanto poderia estar mais
fresca.
Festa das Fogaceiras (20 de Janeiro) -
Vila da Feira
E, assim, se pode esta hipótese ter
probabilidade, volta a ter cabimento a pergunta: mas afinal onde se
situava a Lancobriga? Por agora, embora talvez pudesse acrescentar
mais alguma coisa em seu favor, deixo a pergunta suspensa e sem
resposta; pois o assunto precisa de maior e mais profundo estudo,
deslocado no propósito deste escrito.
Todavia, ainda sobre essa
localização direi que o general João d'Almeida, na sua obra ROTEIRO
DOS MONUMENTOS MILITARES PORTUGUESES, afirma não ter dúvida em
localizar a citânia de Lancobriga num terreno em Souto Redondo, no
triângulo existente entre a estrada nacional n.º 1 e a estrada que
da Vila da Feira segue para S. Jorge e os restos de estrada romana
ali existentes. Diz mesmo que o seu traçado está ainda claramente
definido pela aresta do terreno em que assentavam as muralhas,
interrompido aqui e além pelas escavações feitas recentemente na
exploração do volfrâmio, e dos entrincheiramentos, na banda do sul,
abertos pelos liberais, em 7 de Agosto de 1832, na célebre batalha
aqui travada contra os realistas comandados pelo general Póvoas.
Conta mesmo, por informações recebidas no local, terem sido
encontradas pedras trabalhadas e até uma estátua no género das
consideradas
/ 18 / como reproduzindo velhos
guerreiros lusitanos. Tudo isto impressiona muito e requer estudo
atento, mas parece-me que não estaria ali a Lancobriga. Também o dr.
Mário de Sá, na sua obra AS GRANDES VIAS DA LUSITANIA, é de opinião
que a estrada mourisca foi uma realidade, mas imagina que na Vila da
Feira se situava a cidade de Samarium, mencionada no
itinerário do Anónimo de Ravenate. Esta proposição, sem dúvida digna
de atenção, teria até a vantagem de servir de base para a origem do
nome de Santa Maria, a derivar foneticamente daquele nome latino.
Ainda a respeito deste pormenor da origem do nome Santa Maria, o dr.
Strecht de Vasconcelos, no seu livro DIVAGAÇÕES ETlMOLÓGICAS ACERCA
DO NOME DE PORTUGAL, propõe para essa origem outra solução, ao
afirmar que virá da expressão terra seente maria ou seenta
maria. Não estará certa, mas é curiosa. Como quer, porém, que se
chamasse a Vila da Feira e a estrada que a atravessa e serpenteia
junto ao castelo, vem ela justificá-lo melhor, já que o castelo
teria sido mais útil, não apenas para refúgio da população, mas para
funcionar também como dique a uma estrada, o que não aconteceria se
a única estrada existente ficasse a alguns quilómetros de distância,
como dista a estrada n.º 1.
Quanto ao problema da fundação do
castelo, que poderei eu dizer? Pois se não falha o pormenor do
aparelhamento das pedras, apontado como saído das mãos dos pedreiros
romanos dos séculos I ou II, poderemos admitir que naquele alto,
quem sabe se sobre um castro pré-romano, foi ali construído um
edifício por esses séculos I ou II, que poderia ter sido um templo,
ou apenas uma torre de vigia para defesa de um possível
aquartelamento romano, situado ao fundo onde está a Vila (e ela tem
um sinal que creio permite levantar essa hipótese, na antiga rua
Direita, orientada na direcção norte sul, como faziam ao instalar um
aquartelamento). De simples torre de vigia poderia ter passado a
residência de um chefe a que – creio não ser caso único – aliasse de
certa altura em diante a função de templo, que as aras podem
confirmar, tanto como um templo inicial. Suponho assim como natural,
e espero que justificada, a época romana para o aparecimento de uma
construção onde está o castelo, que hoje não é mais do que um
gracioso símbolo da ligação que unia a Terra de Santa Maria, onde
deveria existir um museu com reconstituições a lembrar os seus
tempos mais altos.
Como é sabido, o domínio romano
acabou às mãos dos bárbaros, no século V. Vieram quase seguidos os
alanos, vândalos e suevos em 411, espalhando-se por diversas
regiões. Parece que na nossa região ficaram os alanos, mas pouco
tempo e sem estrutura. Deixaram todavia má fama (principalmente os
vândalos, basta reparar no significado que a palavra vandalismo
ainda hoje tem) apesar de não ocuparem de modo efectivo a região. Só
os suevos criaram um reino na Galiza, com a capital em Braga. Logo
depois vieram os visigodos que correram com aqueles, mas apenas em
585 é que o reino suevo foi absorvido pelos visigodos. Mais adiante,
quando referir os tempos da Reconquista, notarei a influência que
esses povos deixaram marcada na nossa região, apesar de romanizados
em contacto com a cultura superior que encontraram.
Por sua vez, o domínio visigótico
durou até aos princípios do século VIII, pois em 712 já Muça deve
ter passado por esta região da Feira, no regresso da sua expedição à
Galiza (não esqueçamos que neste tempo os árabes chamavam Galiza a
toda a terra a norte do Douro). Pois Muça nesse passeio arrebatou
todas as riquezas que encontrou e (não distribuía com ninguém) mas
não consolidou dessa vez qualquer ocupação. Isso só veio a acontecer
em 715, ficando desde aí a nossa região sob o domínio árabe e
certamente em paz, pois os cristãos ainda não atacavam por essa
época. Em 746 já os árabes tinham organizado estas suas conquistas,
a península quase inteira, militar e civilmente, dividindo tudo em
cinco províncias, pertencendo a nossa área à que tinha Mérida por
capital. No livro HISTÓRIA DE LA DOMINACION DE LOS ARABES EN ESPAÑA,
recheado de referências tiradas de autores árabes da autoria de Don
José António Conde (por onde neste ponto me guio) só aparecem
vestígios de ataques cristãos, ao serem perseguidas algumas
taifas cristãs, certamente em regiões mais ao norte, visto que,
como é sabido, os cristãos mais ciosos da sua independência se
refugiaram nas Astúrias, e a princípio não estavam aptos a atacar à
distância.
Depois, em 784, o próprio rei
Abderahman esteve com certa permanência em Coimbra, Porto e Braga,
sinal de que nesse momento o domínio árabe passava muito acima do
rio Douro. Em 793 Abdelkerim entrou outra vez na Galiza, forçou
fortalezas cristãs e queimou Igrejas; mas, quando regressava
carregado de despojos, caíu numa embuscada dos cristãos em que os
seus homens sofreram muitos danos. Em 808 coube a vez aos cristãos
de descerem dos seus montes e atravessarem o Douro, entrando assim
no que os árabes também chamavam Lusitânia, causando os maiores
prejuízos, inclusivamente destruindo povoações. Mas, logo que estas
notícias chegaram a Córdova, vieram os árabes em retaliação procurar
os cristãos, que castigaram. Em 838 árabes de Lisboa e outras
cidades do sul avançam em direcção à Galiza, passando naturalmente
por aqui. Em 852 e 854, querendo os árabes propagar o Islão, tornam
à Galiza, combatem com vária fortuna, mas acabam por consertar
pazes.
Em 863 os cristãos, agora comandados
pelo rei Afonso, descem outra vez até à Lusitânia, penetrando, mesmo
em Lisboa e Cintra, passando muito naturalmente
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por aqui; toma riquezas, gados e cativos que leva consigo. Mas não
demora muito que os árabes façam uma razia com que ameaçam Santiago
de Compostela. Em 888 o vali de Lisboa, por dissenções internas, vem
tirar satisfações ao vali de Lamego e outros que mantinham as
fronteiras do Douro, sendo natural que em tais disposições também
passasse pela Feira. Em 931 o governador de Santarém, em
consequência de um amuo com os seus correligionários, passa-se para
o rei Ramiro da Galiza; mas em 963 os árabes reorganizam as suas
fronteiras, exigindo que os povos se convertam ao Islamismo ou então
paguem umas certas párias.
Em 988 aparece o célebre Almansor a
ocupar Coimbra e avançar até Santiago, passando logicamente por esta
banda, sem todavia deixar rasto nos escritores árabes; como outro
tanto aconteceu em 944, quando outra vez esteve no Porto e novamente
se dirige a Santiago que destroi e arrasa, dando-se ao requinte
maldoso de mandar aos ombros de cativos cristãos os sinos daquela
Igreja para Córdova, onde os destinou a servirem de lâmpadas da
mesquita. Em 1001, com reforços vindos de África, deve ter passado
por aqui um dos exércitos em que dividiu as suas forças, percorrendo
as margens do Douro até às nascentes. Mas dessa vez, no fim da
batalha havida, Almansor, por cansaço, não tratou os ferimentos
recebidos nela, e disso morreu passados dias.
Como nem sempre a actividade
guerreira dos árabes está virada para os nossos lados, deixo espaços
de tempo em silêncio, visto não interessar directamente à nossa
região; isto sem esquecer a vitória que o rei Vermudo obteve dos
mouros, cujo rei Cemia capturou numa batalha travada na freguesia de
Cesar em Abril de 1045. Assim, depois deste ano, só em 1057 encontro
outra vez sinais de movimentos mais próximos, quando Fernando Magno
toma Viseu, Lamego e outras terras e fortificações. Salvo melhor
opinião, creio ser essa data a que, mais ou menos, corresponde à
passagem da Terra de Santa Maria para o domínio cristão, depois
confirmada com a conquista de Coimbra em 1064, que permitiu
consolidar a conquista cristã até ao Mondego.
Como não podia deixar de ser, um
povo que por aqui viveu mais de 300 anos, natural é que tenha
deixado recordações, conquanto menos frequentes do que no sul do
país, onde a sua presença se prolongou por mais tempo. E será
curioso notar que apesar dos naturais horrores da guerra, segundo os
processos daqueles tempos, acabamos por normalmente os lembrar com
vincado sabor de simpatia. São exemplo disso, creio bem, as lendas
de moiras encantadas, por tantos lados recordadas, e na imaginação
popular sempre povoadas de lindas mulheres. Onde há restos de
construções antigas diz-se vulgarmente, com certa dose de admiração
à mistura, que são do tempo dos mouros.
Não existem entre nós construções da
sua lavra, mas em compensação encontramos outros tipos de
recordações suas, quer no vocabulário, quer mesmo na toponímia.
Vários são efectivamente os vocábulos de origem árabe, à frente das
quais se destaca entre nós a palavra e respectivo conceito de
Aldeia. Encontrámo-Ia em muitas freguesias e pelo menos em Escapães,
Milheirós
/ 20 / de Poiares, Nogueira da
Regedoura, Oleiros, Paços de Brandão, Pejeiros, S. Jorge, Sanfins,
Souto e Travanca. O próprio nome da freguesia de Arrifana
também nasceu do árabe; e aqui na Vila da Feira há pelo menos o
lugar da Charca, que me parece deveria escrever-se Xarca,
pois que eu saiba não existe ali nenhum charco, mas sim uma espécie
de «terreno despenhado e apertado, garganta entre colinas»
como David Lopes define Xarco, termo árabe. Temos ainda uma
Mourisca em Paços de Brandão; um Mourão em Rio Meão;
Moure em Argoncilhe, Moselos e Santa Maria de Lamas. Em
Milheirós de Poiares há uma Pedra da Moura (provavelmente
adornada de uma lenda) e em Moselos uma Cova dos Mouros, que
naturalmente também terá a sua lenda. Em S. Jorge há o lugar de
Casal Doído que vem de um Casal pertencente a um homem chamado
de Olidi ou Dolidi, de origem árabe. Também aparece entre nós o nome
que os árabes davam às suas hortas – Almuinha, que por vezes
o povo transforma em Almunha, como em Canedo, Lobão e Paços
de Brandão. Existe ainda um Albarrada e uns Alpoços, o
primeiro em S. João de Ver e os segundos em Rio Meão, que parece ter
pelo menos o artigo árabe, se é que o primeiro não vem todo daquela
origem. E também as Azenhas de várias freguesias deles nos
vieram.
Festa das Fogaceiras
O castelo da Feira, como não podia
deixar de ser, está povoado de lindas moiras encantadas, que não
trago para aqui para não alongar este escrito, e também a sua
reconquista está envolvida numa lenda. Não estando divulgado não
será descabido incluí-Ia. Quando não há história escrita dum
acontecimento, o povo cria uma lenda para o explicar. Esta foi
recolhida pelo P.e Quintela, pároco da Vila da Feira, em 1758 de
onde a extraio. Diz ele: «A tomada do castelo aos mouros só anda
na tradição do vulgo, o qual assevera que o primeiro conde da Feira
intentando conseguir a terra e posse do castelo, e do título por
indústria (parece-me haver aqui grande confusão, pois os
chamados condes da Feira nada devem ter tido com o assunto)
prendera o cão que era fiel guarda de todo ele, a qual falta foi
muito sentida de seus senhores, e que tendo-o uns poucos de dias sem
comer, ajustou o dia do assalto para a manhã do dia vinte e quatro
de Junho, dia festivo por ser do Batista, e que levando o cão atado
e faminto enquanto a sentinela da porta chamada da traição por isso
mesmo se detivesse em o festejo do achado cão e sua fiel companhia,
podiam entrar repentinamente e assenhorearem-se do castelo, como
fizeram, e por essa causa se diz que ficara a obrigação de irem
todos os homens que têm servido e servem a República a São João da
Madeira ou a São João de Ver, da sorte que dissemos acima, e por
essa razão lhe chamam a Sina.»
Na verdade, faz parte do mesmo
texto, em situação anterior, a descrição pormenorizada dessa
comemoração, onde esclarece: «homens que servem e têm servido a
República, montados a cavalo com a bandeira adiante, e os Vereadores
com as suas insígnias vão um ano à freguesia de São João de Ver, e
nesta Igreja se canta uma Missa, e outro à freguesia de São João da
Madeira, do mesmo modo. Chama-se nesta Vila a esta função «vêr a
sina». Não sabemos a sua origem, e a notícia que temos, referiremos
no compêndio das coisas menos verosímeis.»
Aparte alguns acrescentos e
confusões sempre vulgares nas histórias transmitidas oralmente, há
uma vaga ideia de comemorar o facto da reconquista do castelo aos
mouros; se bem que eu suponha também haja confusão na data, que mais
creio comemorativa da batalha de S. Mamede em 1128, tomada como
marco inicial da independência portucalense em relação ao jugo
leonês.
Este castelo vindo ou não dos
romanos, foi muito provavelmente baluarte árabe, pois seria nessa
ocasião, em que a região desde o Douro ao Mondego funcionou como
terra de ninguém, e em consequência disso sofria umas vezes as
devastações árabes, e outras aguentava as arremetidas dos cristãos,
que acabou, como se viu, por passar com a Reconquista para o poder
dos cristãos. Esses cristãos, mistura de diversas raças, eram
certamente prodominantemente visigóticos pelo sangue, como se verá
pelo que desse tempo nos ficou. Como é sabido, a Reconquista não foi
resultante de um arranque fulminante; bem pelo contrário foi lenta,
com vaivéns inseguros, conquanto o somatório tivesse resultado
favorável aos cristãos. Dado que as áreas estavam de há muito sob o
domínio árabe, não havia motivo para qualquer espécie de respeito,
por parte dos cristãos, pela organização existente naquele momento,
conquanto ainda existissem restos dos tempos antigos, numa
sobrevivência provável dos tempos anteriores aos árabes.
A Reconquista tomou aspectos
diversos que vamos ver para melhor compreensão; enquanto uma vezes
era presidida pelo próprio rei, outras era feita pelos guerreiros
por delegação sua. Se o rei não estava presente, a presúria
(assim se chamava este sistema de reconquista) era normalmente feita
sob permissão e autoridade real, conforme se pode ver de uma citação
de Alberto Sampaio tirada da ESPANHA SAGRADA que diz: «gratia de
Rex... Edefonso mayor, & concornu de de ipse Rex. per manus comite
Petrus Vimaras. O corno ali referido era portanto uma trombeta
de algum modo símbolo real, talvez ainda recordada nos brasões de
Gaia e Viseu. Portanto, enquanto naquele documento se diz que aquela
presúria se fez por graça do Rei, com a trombeta do próprio
Rei por mão do conde Pedro Vimara; noutro documento, respigado da já
referida ESPANHA SAGRADA pelo mesmo Autor, fala-se mais claramente
nas insígnias reais que acompanhavam as presúrias,
/ 21 /
ao dizer que fora feita cum cornu et cum aluende de rege, de
que não sei traduzir aluende, mas sem dúvida outro distintivo
real, usado quando o rei estava ausente. Nessas circunstâncias, como
se refere na presúria já citada de Vimara, «apreenderam as
vilas que possuíam «& ipsas... quae presserunt abidem quintarut
illas & dederunt illa quinta ad me Rex (Afonso II). Por
aqui se vê que aqueles conquistadores tomaram posse em nome do rei
das vilas que possuíam e dividiram em cinco partes iguais, das quais
reservaram uma para o rei.
Se a conquista em presúria
era daquele modo na ausência do rei, vejamos agora o que acontecia
quando ele estava presente. Por casualidade há um texto que o
refere. Em tal caso, terminado o combate e metidas as espadas nas
bainhas, o rei procedia à divisão das propriedades pelos seus
homens, como declara outro documento também tirado da ESPANHA
SAGRADA pelo Autor já referido. Aí se diz que Odoario concedeu a
seis dos seus homens as vilas Avezani, Guntini, Desterit, Provecendi,
Sendoni, Macedoni e que as denominou Avezano, Guntiano, Desterigo,
Provecendo, Sendo, Macedonio.
Fui buscar tudo isto para mostrar
como as coisas aconteciam; pois na Feira, e aliás por toda a região
nortenha, aconteceu mais ou menos o mesmo. Pode afirmar-se isto em
consequência de se encontrarem muitos topónimos derivados de nomes
pessoais, e pelo menos no concelho da Feira, de origem germânica a
sua maioria, a provar que nos vieram por intermédio desses
guerreiros descendentes dos invasores visigodos, perpetuando assim
esses homens que, pelo valor guerreiro mereceram contemplação real,
ou comandaram presúrias, transferiram as terras das mãos dos
árabes para as dos cristãos, e por isso mesmo as deixaram apelidadas
com os seus nomes pessoais. Para verificação disso e fazer uma ideia
da influência de origem visigótica, bastará recolher os nomes de
diversos lugares e freguesias. Será uma lista reduzida, porque para
um estudo completo será preciso, antes de mais, proceder à tal
recolha completa de todos os nomes de lugares, sítios, campos e
matos, com a maior minúcia e cuidado, já que os aqui apresentados
não passam de simples amostra.
Apesar de todas estas limitações e
insuficiências, não deixa de impressionar a frequência com que se
encontram os actuais topónimos a recordar essas antigas lutas e
gentes do tempo da Reconquista, desses visigodos perfeitamente
confirmados pela origem dos seus nomes, que, segundo os
especialistas, todos vêm do germânico. Dentro dessa ideia de simples
amostra posso citar diversos topónimos como: o lugar de Adoufe,
da freguesia de Arrifana, vindo do nome pessoal de Ataulfus;
Aldriz, da freguesia de Argoncilhe, que vem de outro nome
pessoal Aldericus; o próprio nome de Argoncilhe, entre
as possíveis origens que se lhe apontam pode vir de Dragoncelus;
Arilhe, da freguesia de Louredo, vem de outro nome pessoal
Arilus; Balteiro da Vila da Feira vem de Baltarius;
Godinha virá de Gotina e Godinho de Gotinus
(diminuitivos de Godo e Goda); Ermilhe de Moselos vem de
Ermelus; Escapães vem de outro nome Scapa;
Fafião da freguesia de Romariz, vem de Fafila; Fagilde,
da freguesia de Canedo, deriva de Fagildus; Framil,
também de Canedo, vem de Filimir; Fiães de outro nome
pessoal Fidila; Formal que aparece em mais de uma
freguesia virá de Frumarius; Gondufe, da freguesia da
Feira, vem de outro nome Gondulfus; Goda, de Moselos,
descende de Gota; Gulfar da freguesia de Sanfins, vem
de Vulfarius; Gualtar de Fiães, deriva de
Gualtarius; Guilhadães, da freguesia de Arrifana, vem de
Viliatanis; Goim, de Romariz, deriva de Goninus;
Guisande virá de Vuisandus; Lobel, de Vila
Maior, deriva de Leuba; Manhouce, primitivo nome da
freguesia de Arrifana, deriva de Maniocus; Morgado, da
freguesia de Louredo vem de Maurecatus; Mualde, de
Sanguedo, tem a sua via em Manoaldus; Ramil, de
Argoncilhe descende de um Ramildus; Romariz vem de
outro nome Romaricus; Ordonhe, de Argoncilhe, lembra
Ordonho; Tarei, lugar mieiro a Travanca e Souto, vem
de Atanaredus; Toseiro, da freguesia de Louredo, vem
de outro nome pessoal Teresarius; Teobalde, da
freguesia de Souto, vem de Teodebaldus; Guimbras, da
Vila da Feira, que terá vindo de
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outro nome pessoal Guimara; Beire e seu divergente
Ver, de S. João de Ver, descendem do mesmo tronco Valerius;
Gongeva, de Canedo, do nome Gudegeba. Ora segundo os
especialistas todos estes nomes, apesar de alatinados, vêm dos
visigodos, que eram germânicos.
Estes homens, quando constituíram as
suas propriedades, ainda denominadas vilas, com sentido
romano, ou seja, uma unidade residencial e agrícola com todo o
equipamento de construções e pessoal, deram certamente origem a
solares, ou como ao tempo se chamava paço e paçô
(quando de tipo mais pequeno), quinta e quintã (com a
significação de propriedade honrada) também topónimos esses
frequentes no concelho. Temos paço ou paços em Canedo;
Fiães, S. João de Ver e Paços de Brandão; e quintã nas
freguesias de Argoncilhe, Geão, Moselos, Sanfins, Fornos e Travanca
pelo menos. Também Sá pode ter a origem germânica em Sala,
no sentido de habitação.
Podem, porém, esses Paços e
Quintãs nada deverem a esses homens da Reconquista e só terem
aparecido posteriormente. Por causa disso dei uma espreitadela nos
NOBILlÁRIOS, e se alguma coisa encontrei não a consigo ligar
convenientemente. Assim entre os feirenses dos séculos XIII e XIV
que neles aparecem posso citar: Pero Martins de Cafarom cavaleiro
bom da Terra de Santa Maria (como adiante se verá, era de
Moselos); Pero Esteves de Vila Maior da Terra de Santa Maria;
Fernão Lourenço da Terra de Santa Maria, que noutro local
aparece com o nome de Fernão Louredo a lembrar a freguesia
daquele nome; um cavaleiro bom que houve nome Vasco Afonso e era
natural de Lobão da Terra de Santa Maria, uma dona...
(lacuna do texto)... subdita mulher de Reimão Viegas de Sequeira
suso dito era natural da Terra de Santa Maria de uma parte de
Peiieitos (que parece ser Pejeiros); Estevão Lavandeira
Estevão Malhóo da Terra de Santa Maria, (como há duas ou três
Lavandeiras no concelho ficamos indecisos); Rodrigo Henriques de
Louredo da Terra de Santa Maria; Gil Fagundes natural dos de
Merufe julgado da Feira; Pedro Esteves Danta da Terra de
Santa Maria (que deve ser a actual Anta de Espinho); dona
Sancha Pires de Moselos filha de Pedro Martins de Cafarom e de dona
Maria Guendi uma boa dona e honrada da Terra de Santa Maria;
Estevaninha Nogueira da Terra de Santa Maria, a lembrar a
freguesia de Nogueira da Regedoura, e, finalmente, outro Estevão
Rodrigues da Terra de Santa Maria.
Como se vê só muito vagamente se
localizam as suas residências ou naturalidades, e menos se consegue
quanto às datas das suas vidas, pois os NOBILlÁRIOS são omissos a
tal respeito. Para os localizarmos no tempo será preciso cotejá-los
com outros nomes de vidas mais conhecidas. Mas isso está fora dos
limites deste apontamento.
Há ainda outro topónimo espalhado
pelo concelho digno de uma palavra, provavelmente ligado a essas
residências senhoriais. Refiro-me a Torre. Há uma Torre
Velha em Argoncilhe, em Canedo um campo chamado da Torres;
em Lobão aparece outra Torre; em S. João de Ver existe a
quinta da Torre; no Vale também aparece uma Torre, e
outra ainda em Nogueira da Regedoura e pelo menos mais outra, ligada
a um tanque, em Souto. Todavia é preciso cuidado na conclusão, pois
podem ser por vezes restos de uma Igreja transferida, ou fazer parte
de uma rede de torres de vigia ligadas ao castelo, como aparece mais
claramente na freguesia de Travanca, com o lugar de Atalaia.
E para terminar este apontamento,
que em boa verdade devia ser continuado até mais tarde, pois há
outros topónimos dignos de comentário, (mas não se esqueça que isto
não passa de pequeno ensaio para ver o que é possível historiar
através da toponímia, e a Reconquista deve ter sido o período mais
fértil nesse aspecto); não quero fechar sem uma referência à origem
da palavra Feira, que preside a todo este conjunto, e em
tempos passados teve maior jurisdição.
Diz-se vulgarmente que tal nome vem
de um mercado que aqui se realiza desde há muitos séculos. Claro é
que pode muito bem ser assim; mas também pode ter nascido de outra
maneira. Não esqueçamos que já em 1117 existia esse nome dado à
Vila, com aspecto não de novidade mas de continuidade de tempos
anteriores; e que podia muito bem ter acontecido com esse nome um
facto paralelo ao que se deu com os nomes dos dias da semana, que,
como todos sabem, nada têm a ver com mercados. Efectivamente, aí,
vêm as feiras a descender de feria com o significado
de festa, como ainda hoje se mantém na liturgia católica.
Por coincidência, provavelmente não
apenas casual, fazia-se ainda há algumas dezenas de anos junto ao
castelo uma Feira da Linhaça. E se repararmos, realizava-se
no dia 25 de Março. Ora esta data corresponde ao equinócio da
Primavera, data em que os romanos tinham uma festa, certamente
propiciatória das futuras colheitas, ou qualquer coisa semelhante.
Pois, como ainda hoje acontece sempre junto das festas, mesmo
modestas, das nossas aldeias, aparecem tendas de negócio vário:
natural era que também naqueles tempos se instalasse um pequeno
mercado, com tendência a desenvolver-se num tempo em que
praticamente não havia outro comércio. Com a vitória do
Cristianismo, todo o interesse era abafar a festa pagã, que se foi
transformando em católica sob a invocação de Senhora de Março,
enquanto o mercado continuou a progredir. E ao que me parece desse
modo a palavra Feira perdeu o seu antigo sentido de festa
para se adaptar às novas circunstâncias, esquecendo assim a sua
antiga alegria para se confundir com um prosaico mercado.
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Festa das Fogaceiras (20 de Janeiro)
Conquanto tenha deixado em silêncio
a actividade religiosa, não se pense que a religião estava ausente
de todo este movimento. Bem ao contrário, mesmo em relação ao
período da Reconquista, já era muito antiga a tradição religiosa no
nosso meio. Bastará lembrar que no século VII, segundo o PAROQUIAL
SUEVO, a diocese de Coimbra incluia entre outras a paróquia de
Antunane, que parece não poder traduzir-se senão por Antuã,
pequeno rio que nos fica próximo pelo sul, e deveria referir uma
zona hoje ainda não delimitada. Mesmo assim, porém, é sinal de vida
religiosa organizada por estas bandas.
Não admira que durante a Reconquista
a cruz ao lado da espada. Talvez se possa admitir, sem grande margem
de erro, serem boa parte das nossas Igrejas, se não mesmo todas,
fundadas por esse tempo, e algumas até de épocas anteriores. Ao
fazerem as presúrias, e desaparecidos os antigos senhores,
ficaria, como propôs AIberto Sampaio, a povoação atraída para o
pequeno templo na ocasião edificado, ou já existente, onde lhe era
dada assistência moral e religiosa. Que isso se passou mais ou menos
assim parece prová-lo a palavra freguesia, actualmente
circunscrição religiosa e administrativa, mas a princípio apenas
religiosa, como de resto o demonstra a origem da palavra, já que
veio de freguês, por sua vez nascida, segundo as melhores
opiniões, de filius ecclesiae (‘filho da Igreja’), através de
diversas formas intermédias, como filigreses, freegues
e finalmente freguês.
Se fôssemos ver os padroeiros ou
oragos (repare-se por um momento na reminiscência da mitologia
romana da palavra orago, que vem de oráculo) de todas
essas Igrejas, também certamente encontraríamos a sua antiguidade,
por preferirem santos anteriores à Reconquista. E não eram só as
Igrejas paroquiais que perfumavam espiritualmente a vida dura
daqueles tempos. Hava conventos, mosteiros, acistérios espalhados
pela região que hoje forma o concelho da Feira. Não é só o convento
dos Loios, da Vila da Feira – aliás fundado já muito tardiamente,
século XVI – de que a Feira guarda memória, apesar de não terem
chegado até nós as paredes que os recordem. De momento lembro o
convento de Sala, da freguesia de Mosteirô; o de S. Julião,
em S. Gião da freguesia de Souto; o de S. João na freguesia
de S. João de Ver; o de Azevedo, da freguesia de S. Jorge; e
dois em Canedo sendo um no lugar do Mosteiro e outro no de
Mosteirô. E se saltarmos as barreiras concelhias continuaremos a
encontrar outros conventos vindos daquelas épocas, alguns dos quais
prosperaram e chegaram até nós como os de Grijó e Arouca, enquanto
os outros não se consolidaram por falta de meios ou outras razões.
Como disse a princípio, este
apontamento é simples esboço (e como tal incompleto, mal e
apressadamente alinhavado) de um trabalho a desenvolver que me
proporia realizar, se um dia dispuser dos elementos em falta e as
circunstâncias auxiliarem, o que todavia não é de esperar, pois tudo
parece conjugar-se no sentido contrário. |