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N.º 1

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Janeiro de 1966 

 

COISAS DO PASSADO

QUE DESENTERREI DA POEIRA

DOS ARQUIVOS

 

Pelo Coronel Diamantino Antunes do Amaral

A FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO DA "VILA NOTÁVEL" DE AVEIRO

 

A história, dizem os bons autores, não tem outro fim que não seja dar a conhecer factos passados; quer esse conhecimento se faça relatando simplesmente os acontecimentos, quer juntando a este relato uma apreciação crítica, moral, política ou filosófica.

Mas, para conhecer factos, necessariamente, há que procurá-los; e essa busca é feita, principalmente, em documentos coevos que os registem.

Será essa a fonte mais segura, direi mesmo, a única fonte séria de que deve lançar mão quem pretenda elaborar qualquer trabalho histórico.

Assim, tudo o que seja tradição oral, para um investigador honesto, pouco ou nenhum valor deve ter, porquanto a tradição altera-se ao passar de uma para outra geração e a história só quer a verdade e nunca esta envolta na fantasia de qualquer narrador que a cobre de ouropeis, roubando-lhe a simplicidade e a beleza primitivas e, o que é pior, deformando-a quase sempre.

Foi pensando assim que, há cerca de ano e meio, em «Voz do Santuário», órgão oficial do Santuário de Nossa Senhora das Preces, da freguesia de Aldeia das Dez, iniciando uma secção que denominei «Dizem Velhos Manuscritos...» , nela tenho inserido, com um outro comentário, a transcrição de alguns documentos dos muitos que anos antes tinha encontrado, a granel, numa cave bafienta e húmida da Casa Nova do Seminário de Coimbra.

E quanta preciosidade ali vi!...

Entre outros, eram bastantes os processos pedindo a erecção de capelas e igrejas, inquirições acerca de seminaristas que pediam para receber graus de ordens sacerdotais e relatórios minuciosos das visitações que os arcediagos dos diferentes arcediagados do bispado, faziam em cada ano.

E tudo isto constituiu, para mim, uma fonte rica de informação que fui saboreando enquanto o tempo de que dispunha mo permitiu.

Uma outra que também utilizei e que, por sinal, manou substancial e abundante, foi o registo paroquial, mesmo a despeito das deficiências que nele notei principalmente até aos meados do século XVII.

É com elementos desta natureza e que reputo fidedignos que tenho trabalhado dando a conhecer alguns factos que as últimas gerações da minha terra natal desconheciam totalmente.

Mas, bebendo agora das mesmas fontes e trabalhando nos mesmos moldes, serei eu igualmente feliz ao tentar dizer alguma coisa sobre Aveiro e, particularmente, sobre a freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, desde a sua criação, em 1572, até à sua extinção?

É o que vamos ver.

Até 1572, a vila de Aveiro constituía toda uma freguesia única, com sede na igreja de S. Miguel, hoje desaparecida.

A sua população era, aproximadamente, de 12 000 almas, cifra demasiado elevada para ser pastoreada por um só pároco, por maior que fosse o seu zelo.

Assim o reconheceu o Bispo de Coimbra, D. Frei João Soares que, por provisão de 10 de Junho daquele ano, ordenou uma nova divisão territorial.

Surgem-nos, assim:

– ao norte do Canal central, as freguesias de ● Nossa Senhora da Apresentação e ● Vera Cruz; e / 32 /

– ao sul do mesmo canal, as de ● S. Miguel e ● Espírito Santo.

A de Nossa Senhora da Apresentação, única que, no momento presente, nos interessa, tinha a sua sede provisória na igreja de S. Gonçalo que, por ser muito pequena, obrigou a pensar, desde logo, na construção de uma nova igreja.

Assim nos aparece a que, sob a invocação de Nossa Senhora da Apresentação, foi sede definitiva da freguesia do mesmo nome até à sua extinção, em 1835.

«Esta igreja – diz Marques Gomes, nas suas «Memórias de Aveiro» – foi edificada em 1906».

Não vi o processo organizado antes da sua edificação e que devia ter servido de base à concessão da licença para essa construção! Mas, respeitantes à Igreja Nova, como então era denominada, duas referências encontrei no registo paroquial que me levam a pôr em dúvida a exactidão daquela data.

A primeira, em 1627, ano em que o vigário, Padre Frei Jerónimo Galvão, registou o falecimento de Maria Pinheiro, em 12 de Setembro, declarando que foi sepultada na Igreja Nova.

Note-se, que foi esta a primeira vez que se aludiu a enterramentos na Igreja Nova.

A segunda, em 1647, em que o vigário, Padre Frei Manuel Pinto de Moura, registou o falecimento de Domingos António, sombreireiro, a 20 de Outubro, o qual foi sepultado na igreja de Nossa Senhora da Apresentação, declarando ainda que «foi o primeiro defunto por quem se tangeram os dois sinos novos».

Estes dois sinos, segundo declaração feita pelo mesmo pároco e escrita na capa do «Livro de Bautizados» de 1638 a 1662, tinham sido postos «aos dous dias do Mes de Outubro de 647 annos».

Ora, para que pudesse haver enterramentos na «Igreja Nova», era necessário que, antes, ela tivesse sido benzida; e esta cerimónia só podia realizar-se depois de concluídas as obras e a igreja já «ornada e paramentada».

Como, por outro lado, a igreja de S. Gonçalo, que estava servindo de matriz, era muito pequena e urgia substituição, não é crível que, estando a igreja de Nossa Senhora da Apresentação edificada, como diz Marques Gomes, desde 1606, só em 1627 começasse a ser utilizada no serviço paroquial.

Pelo que fica dito, sou de parecer que as obras da «Igreja Nova» só em 1627 foram completadas; e, por não ser admissível uma lentidão tamanha (21 anos!) nesta construção, julgo que elas nem sequer em 1606 começaram, mas muito posteriormente a esta data.

A terceira das datas que acima se mencionam só nos podem dizer que em 1647 ficou concluída a torre sineira ou que, estando já feita, como aliás é bem natural, só então houve possibilidade de dotá-la com os dois sinos novos a que acima se alude.

À maneira de anotação devo esclarecer que a torre, hoje existente, dispõe de quatro sinos, não sendo nenhum dos colocados na torre primitiva, visto terem todos data posterior a 1647.

Criada a freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, foi nomeado seu vigário o Padre Frei Luís Dias que em obediência a instruções recebidas do Bispo de Coimbra, sob cuja jurisdição estava, em 1589 começou a organização do seu registo paroquial, cujo primeiro livro destinou ao registo de baptizados, casamentos e óbitos.

Mas os muitos anos, de mistura, talvez, com um pouco de incúria e as imperfeições da tinta, conspiraram contra a integridade do livro a que faltam muitas folhas e contra a leitura de bastantes outras onde não pode ler-se uma palavra, sequer, por ter desaparecido a tinta.

Assim, à primeira folha, além de outras causas que impedem a sua leitura total, falta a metade da direita. Tinha ela sete assentos de baptizados, dos quais os três primeiros tinham as datas de 28 de Maio de 1589, 4 de Junho e 28 de Junho, sendo o primeiro de Francisco, filho de ... André e de Maria Álvares. Desapareceram as folhas em que haviam sido feitos os termos dos baptizados, em 1596, 1598, 1599, 1611, 1613, 1614 e 1617.

Estão incompletos os anos de 1589, 1590, 1592, 1601, 1608, 1610, 1612 e 1621 a 1623.

Servindo este livro também para casamentos, apenas encontrei numa folha solta, uns / 33 / dois ou três assentos quase ilegíveis e somente um registo de Óbito ali vi.

Em suma, só a partir de 1623 se podem considerar os registos de baptizados em estado razoável.

Felizmente, os livros que se seguem a este, ainda estão em regular estado, só havendo a lamentar, numa ou noutra folha, a ilegibilidade de alguns termos em virtude do desaparecimento da tinta.

Apesar das deficiências apontadas, até 1640 inclusive, pude registar o nascimento de 1268 crianças, das quais: 705 são do sexo masculino e 563 do sexo feminino, ou seja, 55,6% das primeiras e 44,4% das segundas.

Assim, o número de crianças do sexo masculino excede em 1420 o das do sexo feminino.

Estes números são, na verdade, interessantes e parece estar em desacordo com o que estamos habituados a ver nas estatísticas oficiais, que acusam sempre um excesso do quantitativo das mulheres sobre o dos homens.

Mas deixemos, por enquanto, de fazer qualquer reflexão sobre o assunto e vamos continuar com o dos nascimentos.

E, a propósito deles, mais uma curiosidade: a dos filhos ilegítimos...

Diz Fortunato de Almeida, em História da Igreja em Portugal, Tomo III – Parte II: «É sempre bem difícil caracterizar sociedades sob o ponto de vista moral, quando simultaneamente se encontram nelas, em grande destaque, paixões estuantes, vícios infames, virtudes elevadas até ao mais puro misticismo, como aconteceu em Portugal desde os fins do século XV até ao meado do século XVIII».

E para corroborar a primeira parte da sua afirmação, o autor apresenta o testemunho de Nicolau Clenardo que, em 1535, de Évora, escrevia ao seu mestre Latomus falando na sociedade portuguesa nos seguintes termos: «Para em breve o dizer: por toda a Espanha me parece quadra muito de molde a Vénus o epíteto de Pública e muito mais em Portugal onde é raro topar mancebo legitimamente ligado.»

E mais adiante acrescenta: «Aqui uns, aproveitando-se da licenciosidade comum, depravam-se nas deleitações e na libertinagem; outros sofrem a miséria e os vexames deste viver tão diverso.»

O quadro, pintado com tão negras cores, aí fica; mas, pelo que é de deprimente para a sensibilidade de um ser humano, eu recuso-me a aceitar a sua total exactidão.

Corrupção, imoralidade, degradação, houve sempre em todas as épocas, em maior ou menor grau.

E ao fazermos o balanço de uma sociedade, sob o ponto de vista moral, não devemos olhar, apenas, para a coluna das «Perdas», esquecendo que, ao lado desta, há uma outra: a dos «Ganhos».

Postas estas considerações, retomemos o fio do nosso assunto e vejamos o que se passa com os filhos legítimos.

Dos 1 268 nascimentos, a que a trás se alude, apenas 29 encontrei que são filhos naturais, sendo um, filho de uma viúva e os restantes, de mulheres solteiras, entre as quais, 2 escravas.

Naquele número, há 22, cujos pais, no acto do baptismo, foram denunciados como tais, sendo 16 solteiros e 6 casados.

Entre os solteiros, citam-se o licenciado Manuel Ribeiro, o Capitão Rafael de Figueiredo e Frei Luís Lopes; e entre os casados, o Licenciado Gaspar Ferreira.

O exame destes números diz-nos que na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, o mal moral não atingiu a profundidade que podíamos julgar depois da leitura dos extractos da carta em que Nicolau Clenardo pretende apreciar, sob o ponto de vista moral, a sociedade portuguesa do seu tempo.

Os 700 e tantos lares, legalmente constituídos e que, ao tempo, existiam na freguesia, não desmentirão a afirmação feita alguns anos antes, de que era raro topar mancebo legitimamente ligado?

Quantas mães dignas, quantos homens simples e honrados!...

O seu número é, graças a Deus, muito superior ao dos maus.

/ 34 / Até 1640, o licenciado Manuel Ribeiro e o capitão Rafael de Figueiredo, sendo solteiros, eram pais de 2 filhos cada um, nascidos da mesma mulher.

Portanto, o número de ligações ilegítimas existente não deve ir além de dois; os casos restantes devem ser meramente acidentais, não podendo ser considerados como ligações condenáveis.

Para terminar estas considerações que já vão longas, apenas mais esta curiosidade.

Dos 1268 nascimentos considerados, foram baptizados com o nome de:

MARIA – 265

MANUEL – 260

ANTÓNIO – 71

JOÃO – 54

DOMINGOS – 52

ISABEL – 48

ANA e ANTÓNIA – 47

JOSÉ – 44

Há, ainda, 85 nomes, cujo número de baptizados, em cada um, não atinge uma dezena, 5 que não atinge 20 e 2 que não vai além de 30.

Aveiro, 9 de Fevereiro de 1966.

 

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