José Pereira Tavares, Literatos do Distrito II. Fr. Pantaleão de Aveiro, Vol. VI, pp. 139-141.

LITERATOS DO DISTRITO

II

FR. PANTALEÃO DE AVEIRO

ACERCA da vida dêste escritor aveirense do século XVI, pouquíssimo se sabe. BARBOSA MACHADO, na sua Biblioteca Lusitana, deixou, a tal respeito, escrito apenas o seguinte: − «Fr. Pantaliam de Aveiro natural da Villa do seu apelido, do Bispado de Coimbra. Professou o instituto Seráfico da Provincia dos Algarves, onde exactamente praticou as virtudes de hum perfeito religioso. Anhelando o seu espirito testemunhar com os seus olhos aquelles lugares, que com a sua presença, e seu sangue santificara o Verbo Divino feito Homem, alcançou faculdade dos Superiores para tão devota jornada, a qual executou caminhando a pé até chegar à Cidade de Jerusalém em o anno de 1563, onde pelo espaço de tres annos venerou com profundo afecto, e cordial ternura aquelle theatro em que se representou a dolorosa Tragedia do Nosso Redemptor. Restituido a Portugal se resolveo para beneficio das almas devotas escrever tudo quanto observou nesta jornada, publicando o itinerário.»

O Itinerário da Terra Santa e Suas Particularidades teve até hoje sete edições, feitas nos seguintes anos: 1593, dedicada  ao Arcebispo de Lisboa, D. Miguel de Castro; 1596; 1600; 1685; 1721; 1732 e 1927. Esta última, fundada na primeira, foi revista e prefaciada por ANTÓNIO BAlÃO.

Numa espécie de prefácio, dirigido na 1ª edição «Aos devotos e desejosos de visitar Terra Santa e os lugares delta», etc..

FR. PANTALEÃO DE AVEIRO escreveu o seguinte: − «Partidos de Roma fomos por algumas províncias mais propincas buscando frades, os mais devotos, virtuosos e quietos que se podiam achar, sobre cuja vida e conversação se fazia secreto exame, encarregando sobre isso muito a consciência dos prelados locaes e padres velhos dos conventos. Ajuntados desta maneira até sessenta frades e dando-lhes as obediencias para que com ellas nos fossem esperar a Veneza onde se estava preparando a não / 140 / dos peregrinos que aviã ir aquelle anno a terra sancta: com a nossa chegada se partiram tanto que lhe fez tempo e nós tambem nos partimos para a cidade de Trento, onde se então celebrava o sagrado concilio no qual detidos alguns meses, negoceando o que convinha para Terra Sancta nos tornámos a Veneza. E com o primeiro tempo me parti eu primeiro, por ser necessario, ficando na cidade de Veneza o padre Bonifacio, guardiã do monte Sion o qual por sua ordem esperei no reino de Chypre. E porque vi muitos peregrinos fazerem itinerários de sua peregrinação, onde escrevião seus trabalhos e perigos e os lugares que em Terra Sancta visitavam, os quaes quasi nunqua são visitados sem o contrapeso de muitos enfadamentos, permitindo-o assim a divina clemencia que em muitos dos taes lugares os quis padecer, determinei seguir sua openiã, não por satisfazer a outrem, que tal cousa me não veo ao pensamento, mas somente para minha spiritual consolação e particular gosto, por que, como nossa memoria é fraqua, avendo em algum tempo na minha esquecimento do que tenho visto e passado, a pudesse refrescar com ler o que tenho escrito. − Depois, considerando ser culpa buscar meu proprio interesse, no que com muitos se, pode comunicar sem perda minha, pareceu-me dedicar este meu itinerario a todos aqueles que tem memória daquela bem aventurada terra da promissão, figura da patria celestial para a qual fomos criados e a desejem visitar e saber suas particularidades, aos quaes peço e mui humildemente rógo e queira ler com aquelle candido animo e limpa vontade com que lhe é oferecido nã atentando ás toscas e grosseiras palavras com que vae escrito, mas somente a muita fidelidade e verdade com que o escrevi: o de vista como de vista, e o de ouvido de pessoas dignas de fé, como tal. E se lhe virem que emendar emendem, não com espirito de contradição e ignorancia, mas com aquele amor e caridade que nos manda o Senhor, suma bondade, olhar e julgar as cousas de nossos proximos com o qual queremos as nossas serem julgadas. O qual itinerario eu com toda a humildade someto a correição e obediencia da santa madre igreja e daquelles que por sua sciencia e virtude tem liberdade e autoridade, para o bom aprovar e autenticar e o mao reprovar e repudiar. Valete ».

Pela leitura da obra, conclui-se que Fr. PANTALEÃO embarcou em Veneza, tocou na ilha de Corfu, esteve na de Cândia (Creta) e Cipro e desembarcou em Jafo. O seu itinerário posterior foi: Rama, Jerusalém, Belém, Hebron, Jericó, Emaús, Biro, Sicar, Caná, Tiberíades, Nazaré, Damasco, Baruti, Tiro, Sidónia (Sidon), Tripoli, Cipro, Veneza.

A bibliografia portuguesa conta outros Itinerários de viagens à Terra Santa, como os de JOÃO HENRIQUES, cónego da Sé de Viseu (1561 a 1562); FRANCISCO GUERREIRO, (1588); Fr. ANTÓNIO TAVEIRA e Fr. JOÃO DE JESUS CRISTO (1817).

/ 141 / Por associação de ideias, vem-nos à memória o ltinéraire de Paris à Jérusalem, de CHATEAUBRIAND, que tem alguns curiosos pontos de contacto com a obra do nosso autor, sem que com isto queiramos significar que o escritor francês haja recebido qualquer sugestão do escritor português. A título de curiosidade, estampamos aqui os principais assuntos da narração de CHATEAUBRIAND: Grécia, Arquipélago, Anatólia, Constantinopla, Rodes, Jafa, Belém, Mar Morto, Jerusalém, Egipto, Tunis; volta a França.

É natural, também, que a propósito nos lembremos da viagem de EÇA DE QUEIRÓS, feita em 1869 em companhia do Conde de Resende, mais tarde aproveitada na Relíquia.

O Itinerário de Fr. PANTALEÃO DE AVEIRO é digno de leitura, já pela sua linguagem, de grande vernaculidade, já pela singeleza, arte e pitoresco das descrições, já pelas informações que nos dá acerca dos lugares visitados.

O autor tem a preocupação da verdade. Em vários pontos da obra o revela, como se pode ver no passo do prefácio, que sublinhámos. Vejamos mais. No cap. IX, lê-se: − «E por aqui contam hüa história muyto grande, frivola, apocrifa, ainda que sobre maneyra gostosa às orelhas. Quanto ao da gloriosa Santa Helena, já o li em hüa historia authentica, se me não engana a memoria: o mais tenho por cousa redicula, e fabulosa, e por isso a não escrevo aqui.»

Pertencem ao cap. LXXXIX estas palavras: − « ... do que somente Deus sabe a verdade, ao qual seja glória e louvor, porque eu escrevo fielmente o que estando ali, me afirmaram pessoas dignas de fé, e muitas cousas deixo de escrever, não somente ouvidas, mas vistas com meus olhos, por evitar juízos de caluniadores incredulos

O ltinerário termina com o costumado Laus Deo, a que se seguem estas palavras: Pax hominibus, bonis remissio peccatorum, malis autem aeterna confusio.

A obra mereceu de A. GOMES PEREIRA um estudo, publicado na Revista Lusitana (voI. XVI), sob o título de: Gramática e vocabulário de Fr. Pantaleão de Aveiro, precedido dum breve estudo sobre o autor e sua obra.

JOSÉ TAVARES

 

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