O GUADIANA, VIA TURÍSTICA
Por CÂNDIDO MARRECAS
Entre o Alentejo e o Algarve, tão diferentes nos aspectos, na vida
agrícola, no clima e nas gentes, apenas o Guadiana dá um abraço comum
que não distingue as duas províncias, uma da outra.
Quem vai ao Alentejo para o sul, quase nunca escolhe esta via de
comunicação, à ilharga da província, repontada nas terras escaldadas e
agrestes onde corre o vale do rio. E, contudo, a viagem Guadiana abaixo, no barco-motor que faz o tráfego fluvial de
passageiros e carga, não deixa de ter o seu encanto e certa novidade
aliciadora.
Mértola pouco tem que a recomende para uma propositada visita. Mas vista
de baixo, do rio, com o embrenhado do casario alcandorado no pendor das
encostas sobranceiras à corrente, com os restos da sua ponte-cais ou
revelim romano, molhando o pardacento da muralha vetusta na veia
barrenta – tem um aspecto risonho e maneirinho que dir-se-ia sugerido pela
curiosa bisbilhotice com que a vila toda assoma do alto, sobre as águas
apertadas entre os serros de uma e outra margem.
Não vos direi que a viagem se faça com os confortos que exige o moderno
turismo, fastiento e comodista. No barquinho da carreira, a carga e as
pessoas misturam-se e ajeitam-se, com promíscua sem-cerimónia. Mas o
panorama, que o pachorrento andar do barco vai desenrolando diante dos
nossos olhos, absorve-nos o espírito, mais que a faltante comodidade da
jornada...
Até ao Pomarão, o rio é português. Quantas vezes perde ele a tramontana
e se desorienta nesta carreira para o sul, caracolando, dobrando-se
sobre si mesmo, esquecendo o bom rumo ao sabor das serranias que o
conduzem? Em certos sítios, ao viajante desprevenido que pela primeira
vez desvenda as misteriosas vistas da margem,
alguém diria que a corrente pára ali, estrangulada e retida pelas
lombas truculentas daqueles serros a pino! Mas logo a perícia de quem
governa o barco lhe encontra saída, mascarada a nossos olhos pela
confusa perspectiva dos repregos dos montes.
Às vezes, é quase a tocar as paredes, desses alcantis a prumo, estriados
do roçar das torrentes invernias, que a gente passa rio abaixo. São
fragas enormes e hirtas, saindo das águas, com a solenidade calada de
quem assiste há séculos àquele eterno tropel da corrente rumorosa.
O Pomarão é o porto fluvial para carga dos minérios da Mina de S.
Domingos. De ali até à mina, uma linha férrea conduz os imensos comboios
de
minério, que o porão dos vapores atracados à muralha absorve incessantemente. O Pomarão é uma aldeia pequena e pobre. As casinhas vêm
até à beira da água olhar os barcos que passam, com uma secreta mágoa de
ali ficar, apertadas numa encosta da margem, vendo o rio correr-lhes aos
pés...
Para baixo do lugar, quando o «Chança» vem trazer as suas águas ao
Guadiana, o rio é internacional.
Aquelas casinhas da margem esquerda, que de vez em quando a gente
enxerga ao passar, poisadas no bico dum serro, são de pequenos «cortijos»
ou «fincas» espanholas.
A margem direita, ou se aplana em pequenas veigas de regadio, onde
pastam gados e onde os milhos nos mostram a sua bandeira ondulando à
brisa, ou continua em certas voltas o ar adusto das gargantas semeadas
de penhascos, sem outros verdes além dos tufos daninhos que crescem no
alto, lá onde nem chegam as torrentes do inverno bravio.
Os sítios por ali têm nomes sugestivos – a «Pedra da Galé», a Penha d'
Águia, a «Rocha dos Grifos».
/
231 /
Quem conhece bem o rio ensina-nos
nas águas o lugar dos grandes «pegos» – os do «Porto do carvão» e do
«Torno da Pinta», com 90 pés de fundo, outros menores, como os do
«Esteiro do Boi» e o da «Casa da Cruz», com 45 pés.
Às vezes, passam por nós algumas lanchas de vela bastarda que fazem o
tráfego do rio e descarregam nas aldeias da margem as mercadorias de
que se abastecem nos cais de Vila Real.
Estes barcos recoveiros do Guadiana, quase todos de convés corrido, são
tripulados por gente que a maior parte das vezes nunca foi ao mar. Mas
conhecem os «tornos» do rio, sabem marear a preceito a bastarda das suas
lanchas e defendê-las das refregas traiçoeiras que sopram entre as
gargantas dos serros e levam uma vida trabalhosa e mal paga, água abaixo
e água acima, de dia e de noite, aproveitando a maré, ou lutando com a
corrente que, na época das chuvas, pode mais que a força do vento.
Algumas aldeias da margem – Alcoutim, Montinho das Laranjeiras,
Guerreiros, Álamo, Foz d' Odeleite, Almada Douro – são risonhos
aglomerados de casas humildes, todas elas olhando o rio, com as
fachadas ensombradas de parreiras, e o alvor das frontarias asseadas
acenando a quem passa...
Por aqueles sítios, as pequenas fazendas dão apenas de comer a uma
família. As eiras redondas não são muito maiores que a roda dum
carro... E cada meda de palha não é muito
mais alta que um homem.
Alguns aspectos maneirinhos e suaves de hortejos e de fazendas bem
tratadas dão à terra ribeirinha um certo ar de abastança. Este rosário
de aldeias, de Alcoutim para baixo, é todo na margem portuguesa. Do lado
de Espanha é terra mais seca, e a margem deserta de povoados.
Para recolher e deixar passageiros, o barco da carreira detém-se às
vezes a meio do rio, e é com uma simples lancha de remos que se comunica com
a terra. Apenas em Alcoutim, defrontando na outra margem a pitoresca
«San Lucar del Guadiana», se faz uma paragem de maior vulto, atracando
o barco ao pequeno cais da vila.
Depois, quando a corrente se alarga e a viagem está próxima do seu
termo, já uma aragem fresca nos traz os primeiros eflúvios da maresia.
No último «torno», surge-nos de repente, na margem esquerda, o alvíssimo
casario da «Villa», a cavaleira dos montes que defrontam a vetusta
Castro Marim.
Depois, é Ayamonte, com o tropel das suas
«açoteias», as altas chaminés
das fábricas conserveiras, e a intérmina fila dos armazéns ao longo do
cais. E, por último, no estuário amplo em que o rio agora se alarga, a
/
234 / pombalina Vila Real assenta o geométrico reticulado das suas ruas sobre a
planura das areias, branca e risonha, sem maiores perspectivas que as
dos primeiros planos que defrontam o rio.
Para além ainda, direito ao sul, adivinha-se a «corda» da rebentação que
o levante atira sobre os baixos da barra, ou o simples cachão que o
poente levanta à tarde naquela costa de águas tranquilas.
Quando o barco atraca ao cais da «Vila do Marquez», é talvez com alívio
que ele encosta, depois de trabalhosa e pachorrenta jornada, rio
abaixo...
Carreiros que esperam a carga, gente que vem receber conhecidos e
parentes, ranchos de garotos que oferecem os seus serviços a quem chega
– tudo isto produz uma ruidosa algaravia, pitoresca e alegre, que é o
primeiro contacto do viajante com a terra que marca o final da travessia. |