Em pleno Verão, nesses dias de calor
insuportável, em que o termómetro oscila entre os 30 e os 40 graus
positivos, Portugal sente a nostalgia das paragens frias, das planícies
geladas que alastram até ao infinito, e gostaria de ver os telhados
cobertos de neve.
Há bocas sequiosas que não pedem beijos, mas
suspiram pela delícia suprema de um sorvete ou uma carapinhada, a
fundir-se em cristais de gelo, de doce e perfumada frescura.
Enquanto
nos «bares», nas cervejarias, nas esplanadas, a multidão sufocada e
ruidosa consome toda a sorte de gelados e bebidas frescas, ao mesmo
tempo que nas praças soalheiras as pedras quase estalam de sede, sob as
ardências de um sol de fogo, há lugares onde a temperatura desce aos 25
negativos.
O País, em pleno Verão, consome muitas e
muitas toneladas de gelo; e para alimentar esse desejo de frescura que
atormenta as cidades abrasadas, as fábricas não param no seu labor.
Uma pedra de gelo que mata a sede de uns
lábios rubros, estonteantes, que se querem sempre abrasados de desejo,
vale um diamante.
Os cristais que gelam o «champanhe» em vasos
de prata podem
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pedaço de gelo a flutuar num capilé que regala é o alívio de uma alma
plebeia, sem ambições.
Para
uma multidão de trabalhadores ignorados, esses cristais de gelo com
cintilações de pedrarias, que às vezes entorpecem os dedos calejados, é
oiro -- o pão de cada dia.
Os contrastes vibrantes das energias que se
combinam para a transformação dos elementos em outras energias
produtoras tem expressões magníficas nas fábricas de gelo, onde a
electricidade ou o fogo accionam complicados maquinismos e através
destes a água passa ao estado sólido, pela quebra de temperatura.
Imaginem um tanque rectangular de 8 por 5
metros, com 1 metro e meio de fundo. Dentro desse tanque, um recipiente
com caixas, também rectangulares, que a água inunda. Em volta, entre as
paredes do tanque e daquele recipiente, medeia um espaço destinado a uma
solução de água salgada, que estabelece temperatura neutral, para efeito
isolador, como vácuo.
À volta, uma serpentina, movida por um
compressor, dá passagem a certa. quantidade de amoníaco anícrico,
proveniente de garrafas metálicas: este, impelido pela pressão, circula
através dos compartimentos e estabelece a temperatura própria nesses
pequenos frigoríficos. A solução de líquido isolador era
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cálcio, que congela até 25° negativos, mas devido à carestia do produto,
empregam, agora, o cloreto do sódio (sal), que proporciona uma
temperatura de 15 a 18 graus abaixo de zero.
O
tempo de fabrico das barras de gelo depende da espessura das mesmas. As
de 1 metro de comprimento e 25x25 de espessura saem das formas de ferro
galvanizado, ao cabo de 12 horas. Há uns guindastes que levantam as
caixas dos tanques e, depois, as pedras são submetidas a um banho de
água tépida (o banho de descongelação) para poderem sair das formas.
Passam às câmaras frigoríficas, de onde são distribuídas para a venda ou
para a brita que as transforma em cristais. Estes têm várias aplicações
e os navios de pesca carregam-nos às toneladas. Quase todos os barcos
fazem provisão de gelo britado, entre 100 a 1000 toneladas.
Quando o calor aperta, a produção sobe e o
consumo, nas cidades, atinge, então, muitas toneladas de gelo que,
também é feito nas fábricas de cerveja. Toda uma complicada engrenagem
se move para um simples objectivo: produzir o frio que solidifica a
água. Esta corre para os tanques em torrentes, com fulgores de cristal
ou cai do alto, gotejando de mil orifícios, em chuva de lágrimas que o
sopro álgido transforma em pérolas. |