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Memória sobre Aveiro do Conselheiro José Ferreira da Cunha e Sousa

XXIII - Notícia resumida dos conventos, etc. Capitania-mor de Ordenanças

Havia ou tinha a cidade, de freiras professas, o convento de Jesus, (dominicanas); o convento das carmelitas descalças, com o título de S. João Evangelista; e o da Madre de Deus, de Sá, de fransciscanas da terceira Ordem. E de frades, tinha a cidade o convento de S. Domingos cuja igreja é hoje paroquial; de franciscanos antoninhos da província da Piedade, orago Santo António; e o de carmelitas descalços, do título de Nossa Senhora do Carmo, cuja igreja é hoje do Senhor dos Passos. Mais detidamente nos ocuparemos deles todos.

O orago do de S. Domingos era Nossa Senhora da Misericórdia, cuja capela é do lado esquerdo, quem entra, a primeira. O convento de S. Domingos percebia bens de raiz, além da quinta, na Fonte Nova, chamada a Agra dos Frades, doação de um fulano Albuquerque, cujos restos mortais se acham em um túmulo de pedra existente na igreja da Glória, actualmente no primeiro altar da esquerda, quem entra. Percebiam vinhas na Bairrada, marinhas de sal e outros bens, cujo rendimento lhes proporcionava meios para viverem em abastança e ao mesmo tempo exercerem a virtude da caridade. Este é o convento onde os frades gozavam de mais liberdade; como só usavam das capas ou no coro nos dias em que a liturgia assim o mandava, ou em actos solenes fora da igreja, saíam a seus passeios ou visitas com um capote como os dos seculares e chapéu de copa alta.

Os frades de Santo António e Carmo, e principalmente estes, viviam mais recolhidos, menos quando saíam para pregar ou ao peditório. No convento do Carmo era a disciplina mais rigorosa, o que fazia com que os frades fossem muito menos comunicativos.

Esta solenidade que hoje se faz na igreja da Apresentação pela irmandade do Senhor do Bendito, era feita naquele tempo no convento do Carmo; era daqui que saía a procissão dos Passos, recebendo-se na igreja de S. Miguel, da qual tinha ido dois dias antes para o Carmo a imagem do Senhor em camarim cerrado. Em S. Domingos e Santo António eram convidadas a jantar nos dias de festa dos respectivos patriarcas algumas pessoas da cidade, entre as principais dela; no Carmo, porém, não havia isto.

No convento de S. Domingos havia sermões nos domingos de Quaresma, Advento, além dos das festas da Ordem.

De freiras, o convento de disciplina mais rigorosa era o das carmelitas; nem no coro se deixavam ver, pois que as ocultava um cortinado junto das grades. Nas raras visitas que recebiam na grade, não eram admitidas pessoas do sexo masculino, e havia uma freira que, oculta aos visitantes, escutava toda a conversação entre estes e a freira ou freiras visitadas, do que dava parte à Prelada. Era um cargo como qualquer outro da casa, e chamado a escuta.

No convento de Jesus e no de Sá não havia estes escrúpulos; não só recebiam as suas visitas nas grades, mas serviam de chá e doce, tocava-se e cantavam-se modinhas à moda do tempo. O convento de Sá, pela admissão de educandas, ou parentes ou estranhas, havia mais relações com a cidade e a disciplina mais fácil, pois tendo janelas para a rua, o que os outros conventos não tinham, a elas vinham com frequência, demorando-se até a fazer algum trabalho ou leitura. Na igreja de Sá fazia-se com todo o primor possível o ofício de trevas de sexta-feira santa, concorrendo aí as principais famílias da cidade. Em Jesus também se celebravam com grandeza os ofícios da semana santa, mas a festa mais pomposa era a de Santa Joana Princesa, havendo tríduo, constando de missa solene, com exposição do Santíssimo Sacramento, sermões para os quais eram convidados os oradores de maior fama de terras ainda as mais distantes, havendo enfim a procissão no terceiro dia, à qual, assim como às festas precedentes, não faltavam as principais pessoas da cidade e todas as autoridades. Os paramentos que ainda se conservam e a rica armação de damasco de seda e outras tapeçarias antigas e de valor eram objectos, como hoje são, que só serviam naqueles dias.

Os frades de Santo António e os do Carmo, apesar de não terem bens, viviam com abastança, em virtude das muitas esmolas que recebiam, pão, vinho, carne de porco.

As comunidades de S. Domingos e Santo António davam-se bem, visitavam-se, passeavam juntas e concorriam às festividades umas das outras. Conviviam com a maior parte das pessoas e famílias da cidade, com as quais trocavam presentes, aceitando-as nas suas celas e obsequiando aí os parentes e amigos que as procuravam. Os prelados dos dois conventos costumavam também presentear as autoridades e alguns funcionários públicos e as pessoas amigas do convento, com travessas de arroz doce nos dias festivos da casa, S. Domingos, S. Tomás, e outros. Do mesmo modo procediam os frades de Santo António, mas os seus presentes consistiam em pés de porco, que colhiam no peditório em abundância, pois que ninguém que matasse porco deixava de reservar para os frades de Santo António ao menos um pé de porco ou uma orelheira.

Em todos os conventos o tratamento era abundante, mas em S. Domingos excedia as necessidades da alimentação. Aí, os frades tinham cada um a sua mesa, não lhes eram apresentados os pratos para eles se servirem, mas sobre ela se depunham diversos pratos em que eles de ordinário não venciam, sendo os sobejos para os pobres, além da comida que para eles especialmente se fazia, e para toda aquela gente das ruas de Jesus, Rato e Fonte Nova, que quase toda vivia à custa dos dois conventos dominicanos. Com efeito, ali havia o alfaiate, o barbeiro, o sapateiro, a lavadeira, a engomadeira, e enfim as serventes do convento das freiras e criados dos frades, havendo pessoas que eram exclusivamente sustentadas por uma daquelas casas religiosas.

Em S. Domingos, quando havia doce de prato, o que era frequente, ministrava-se a cada frade em uma tigela nova de barro vermelho, de Ovar, contando-se já que o não comeria, para assim poder dispor dele. Se havia frutas, tinha cada um deles um prato com três ou quatro maçãs, peras, etc. E assim o mais, de maneira que o frade, a sobremesa que não comia, recolhia-a para a gaveta da mesa, donde ia ter à cela, e com isso brindava o rapaz que lhe engraxava os sapatos, que lhe fazia recados, ou a dava de esmola a quem queria.

Se um frade tinha hóspedes, ou se por ocasião do jantar tinha visitas de alguns parentes ou amigos, oferecia-lhes de jantar, e aceito que fosse este oferecimento, não tinha mais que dar parte ao prior do convento do motivo por que não ia ao refeitório, e, ao dispenseiro, para pôr o jantar no refeitório dos hóspedes. Por dúvida, seria preciso acrescentar para duas pessoas a quantidade que ao frade tinha de ser reservada. Na quinta-feira, o jantar era um banquete; ao contrário, no dia imediato apenas se encontrava no refeitório um pão, um copo de água, e um prato com um ramo de funcho, que era de costume trilhar entre os dentes. Alguns havia que observavam este jejum; outros porém, lá tinham na cela o jantar que mandavam preparar fora do convento, especialmente os que tinham de pregar ou cantar, porque os ofícios de sexta-feira santa eram ali celebrados com o maior luzimento, havendo procissão do enterro do Senhor que apenas percorria a rua de Jesus, voltando pela rua do Rato.

Nos outros dois conventos de frades apenas havia na quinta-feira santa a exposição do Santíssimo Sacramento, porque além do prelado e de algum frade velho, todos os mais se achavam ausentes pelas diversas freguesias da comarca, como pregadores, cantores ou professores, pois que naquele tempo era uma raridade subir ao púlpito um clérigo secular. Eram os frades que pregavam todos os sermões, cujas esmolas, assim como a das missas que diziam, eram todas para o convento, isto no Carmo e Santo António, enquanto em S. Domingos só havia a obrigação dos sermões da casa e das missas de legados a que ela era obrigada. Das mais missas que dissessem e dos sermões que por fora pregassem, nada eram obrigados a dar ao convento.

Na igreja de S. Domingos havia todos os dias, ao romper da alva, a missa do Rosário, cantando o povo alternadamente o terço. Em Santo António um frade fazia exorcismos à porta do convento, aos quais concorriam as mulheres doentes ou que como tais se julgavam; poucos homens, sendo a maioria principalmente de mulheres das freguesias da Murtosa, Bunheiro, Veiros, etc. Este serviço era feito gratuitamente, recebendo somente as esmolas voluntárias de quem queria dar-lhas.

A todos os frades dava a casa tabaco ou rapé, e não havia um só que não trouxesse na manga a sua caixa para oferecer, donde nasceu o aforismo de se chamar a uma pitada de rapé pêga de frade.

Além das esmolas que nos tempos próprios pediam pelas terras até onde iam em peditório, tiravam os conventos do Carmo e de Santo António esmola pela cidade, um dia por semana, aceitando dinheiro, pão, enfim tudo o que lhes dessem, e um leigo de Santo António, recebida a esmola, apresentava logo a caixa a oferecer rapé a quem lha dava, dizendo: - agora uma pitadinha, donde lhes resultou o nome de freires pitadinhas.

Os frades do Carmo não eram tão populares nem tão relacionados com as pessoas da cidade nem tão liberais; viviam mais concentrados, e com efeito, a regra era ali mais rigorosamente observada; não saíam senão a dois, excepto quando iam fora da terra, tendo cavalgaduras que os conduzissem, mas os de Santo António andavam sempre a pé.

Como já temos dito, a igreja do convento de S. Domingos é hoje paroquial, Nossa Senhora da Glória; a igreja do Carmo é hoje sede da antiga irmandade de Nosso Senhor dos Passos; e finalmente, a igreja de Santo António ainda hoje existe, unida hoje à capela dos Terceiros da mesma Ordem.

O convento de S. Domingos e a respectiva cerca, parte da qual é hoje cemitério público desde 1835, abrangia um quarteirão, formado a norte e nascente por uma rua sem casas, que partindo do ponto onde hoje está o portão para o cemitério, ia sair no largo da Fonte Nova, achando-se por nascente ocupada parte desta rua pelos jazigos do cemitério, a poente pela Corredoura, e a sul pela rua e largo da Fonte Nova, por onde havia umas pequenas casas que não pertenciam ao convento.

O convento do Carmo, contíguo à igreja pelo lado do nascente e sul, era de todos o mais acanhado, existindo dele apenas a sacristia e algumas casas de arrecadações da irmandade a que já nos referimos.

O de Santo António ainda existe quase todo, como no tempo em que era habitado pelos frades, porque não foi vendido como o foram os outros dois, sendo entregue ao Ministério da Guerra para hospital militar.

Adiante se juntarão memórias relativas ao nome e número dos frades que habitavam nestes conventos, aos seus respectivos rendimentos, com outras notícias que lhes digam respeito.

Constava que a cerca do convento de S. Domingos fora antigamente um largo público, chamado o Campo, onde se faziam os alardos da milícia popular (interinamente ordenanças), e que os frades obtiveram este largo da Câmara, com obrigações de terem sempre no seu convento um professor de Filosofia, como efectivamente tiveram até aos fins do século XVIII, rareando e acabando por fim a frequência pela criação das escolas de Latim, Lógica, e Retórica no tempo do marquês de Pombal. O último frade professor desta cadeira foi o padre mestre frei João Pinto de Queiroz, tio de quem isto dita, assim como de quem isto escreve, e ele mesmo sobrinho de outros dois frades da Ordem, muito considerados, frei João e frei Francisco Pinheiro de Queiroz.

Tinha a cidade capitania-mor de ordenanças com quatro companhias correspondentes às quatro freguesias: uma em S. João de Loure, outra em Albergaria-a-Velha, outra em Lamas do Vouga, havendo mais a anomalia de pertencer à companhia de S. Miguel, de Aveiro, o lugar da Taipa, freguesia de Eirol ou Requeixo (Fim do texto manuscrito).

JOSÉ FERREIRA DA CUNHA E SOUSA

 

 

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