Arsenal da Marinha
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O
actual momento em que de novo se volta a falar – e agora com maior
insistência – na transferência deste importante estabelecimento do
Estado para a margem esquerda do nosso formoso Tejo, afigura-se-nos
interessante dar umas breves notas acerca do Arsenal da Marinha.
Antes, porém, de tratarmos do Arsenal propriamente dito,
parece-nos curioso deixar aqui uns ligeiros apontamentos com respeito
aos antigos estabelecimentos, origem do Arsenal, essa construção
pombalina, que, para o tempo, era uma das mais notáveis da Europa.
*
Tercena naval
era o nome que os primitivos estabelecimentos deste género tiveram em
Portugal.
Não é fácil, porém, precisar rigorosamente o local dessas
antigas Tarcenas. Os vestígios de uma espécie de marinha de
guerra, senão navios de estado, remontam ao tempo de D. Teresa, e são
bem palpáveis no reinado de D. Sancho, aquando da tomada de Silves. Mas
na época de D. Sancho II é que a construção de navios tomou maior
incremento. Onde se construíram, em que estabelecimento, esses navios
que – segundo a História - figuraram na conquista de Silves e em outras
empresas até 1223, é que os nossos cronistas nos não indicam. O que de
positivo se sabe é que no reinado de D. Sancho II já havia um arsenal da
marinha em Lisboa, ignorando-se, porém, tudo quanto diga respeito à sua
organização, recursos, de que, certamente, tinha de dispor para manter
umas esquadras, para aquela época, tão numerosa.
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245 / O local desse estabelecimento pode
supor-se que seria aí pelas alturas da Ribeira Velha e isto se infere de
se dizer que as casas da Judiaria eram edificadas junto às Taracenas
e de se saber que a Judiaria tomava o bairro de Alfama, fronteiro àquele
local.
Foi
sobre as Tercenas navais que D. Manuel mandou edificar o actual
Arsenal da Marinha que – ao tempo – não era exclusivamente
estabelecimento naval, pois possuía armazéns de armas para o exército.
Nos reinados de D. Manuel e D. João III, guardavam-se nestes depósitos
armamentos completos para quarenta mil homens de pé e trinta mil de
cavalo, além de muitas peças de artilharia.
A 30 de Janeiro de 1396, um grande incêndio destruiu toda
a parte da Ribeira Velha e a Confeitaria de Ver-o-peso, que ficava para
a banda do mar. Parece que a mudança do Arsenal para o sítio em que está
edificado foi motivada por essa calamidade. Esse edifício desde aquela
época até 1755 – foi conhecido pelo nome de Ribeira das Naus. Nesse ano
terrível foi destruído pelo pavoroso terramoto de 1 de Novembro.
Por alvará de 16 de Novembro desse mesmo ano, ficou
determinado que a sua reconstrução fosse feita no mesmo local que
ocupara antes do terramoto, seguindo-se o risco de João Eugénio dos
Santos de Carvalho. Nessa ocasião, solicitaram os carpinteiros licença
para se erguer uma capela sob a invocação de S. Roque.
No último domingo, segunda e terça-feira de Setembro
costuma realizar-se uma festa promovida por esses operários em honra do
orago, havendo no último dia uma procissão que sai da capela aonde torna
a entrar depois de dar uma pequena volta. É interessante a forma por que
se fazem esses festejos. Arma-se uma espécie de torre com respectivos
sino grande e sino pequeno, que, acabada a festa – que é pública – logo
se desarma, a seguir à procissão ter entrado na capela.
Tanto este edifício como outros destruídos pelo terramoto
foram reconstruídos com o imposto de 4% lançado a todas as mercadorias
que entravam na capital e que – como está de prever – rendeu quantias
enormíssimas.
A infinidade de providências decretadas até 1761
demonstram o desejo de colocar este estabelecimento à altura condigna
que lhe competia.
É curioso, porém, que – sendo a administração do Marquês
de Pombal tão fecunda para o país – se descurasse um pouco deste
importante assunto, pois apenas se ocupou dele quase no período final da
sua vida de ministro. Parece, porém, que o grande estadista já havia
escolhido o homem que no futuro devia ser colocado à testa da
administração da marinha, pois que no reinado de D. Maria I foi chamado
a ministro da marinha Martinho de Melo e Castro que, havia pouco,
chegara de visitar os arsenais estrangeiros, missão que lhe fora
confiada. Este ministro a quem a marinha de guerra portuguesa tanto deve
– conhecendo os defeitos da fiscalização, a maneira pouca própria por
que nos almoxarifados se encontravam os objectos da fazenda, a falta de
uma nomenclatura num estabelecimento naval, a imperfeição e pouca
nitidez em inventários, viu-se forçado a chamar pessoas devidamente
habilitadas para se fazer a bem combinada e útil reforma de 3 de Junho
de 1793. Dessa reforma resultou o apresamento de trinta e nove navios de
guerra e mais vinte e seis embarcações de serviço, inclusas seis grandes
charruas. A 24 de Março de 1795 – tendo falecido Martinho de Melo e
Castro – foi chamado para o substituir
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246 / D. Rodrigo de Sousa Coutinho que, não
tendo o génio do seu antecessor, teve todavia o magnífico bom critério
de desenvolver as medidas já decretadas e ampliá-las com outras de sua
lavra e de grande alcance prático.
Sob as boas disposições administrativas desses excelentes
ministros, a marinha de guerra foi criando forças, parecendo querer
regressar ao seu primitivo brilho, e a bandeira das quinas – quase
esquecida – flutuava de novo quer nos navios que faziam serviço de
guarda-costas, quer nos comboios das frotas mercantes da Índia e Brasil,
quer na passagem dos piratas barbarescos, quer no bombardeamento de
Tripoli, em que, a par duma esquadra espanhola figurou uma divisão naval
portuguesa, comandada por Bernardo Ramires.
A retirada da família real para o Brasil, em 1807, deu um
golpe mortal na marinha portuguesa, visto como a esquadra foi dividida,
ficando uma pequena parte em Portugal e passando outra para o Rio de
Janeiro, aonde apodreceu nas águas da ilha das Cabras, porque se incutiu
no espírito fraco de D. João VI a ideia de que Portugal não carecia de
marinha de guerra e que todas as vezes que precisássemos de empregar
forças navais recorrêssemos à nossa antiga aliada, a Inglaterra.
Uma das boas construções do Arsenal era o dique; pois
este mesmo – abandonado pelo desleixo que reinava em todas as
repartições de Estado – foi-se entulhando até ficar completamente
obstruído pelo lodo e pela areia, visto que não podendo as comportas
aguentar o embate das águas, e não se providenciando, como era dever – o
lodo e a areia iam entrando e aglomerando-se a ponto de o taparem. Por
várias vezes se tentou o trabalho do desaterro, que resultava inútil
pela dificuldade de se conseguir fabricar portas que sofressem o bater
das águas. Neste estado se conservou o dique, até que em 1845 – sendo
ministro da marinha
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Joaquim José Falcão – se fez nova tentativa, que deu resultado mais
propício. O trabalho de desobstrução foi planeado e dirigido por um
engenheiro holandês – Pieterson. O dique ficou, pois, fechado com umas
portas solidamente construídas e em óptimas condições de serviço.
Mais tarde assentou-se uma máquina a vapor para esgotar
rapidamente as águas, e, pelo lado de fora, colocou-se uma draga, também
a vapor para conservar sempre desobstruída a entrada. Só muito
posteriormente – em 1873 – é que o dique ficou ainda em condições
melhores com a colocação de um batel-porta.
As oficinas do importante estabelecimento fabril são
construídas sobre um plano regular e têm um aspecto agradável; o
desenvolvimento do trabalho artístico honra os operários, o Arsenal da
Marinha e o país. A oficina de serração é vastíssima, de estilo moderno
e elegante, sendo o trabalho feito por meio de máquinas a vapor.
Em 1865, executou-se – sob a direcção do engenheiro João
Evangelista de Abreu – uma obra importantíssima: a ponte e a cábrea,
ambas as construções em ferro, e muito notáveis pela sua estrutura e
solidez. Por muito grande que seja a tonelagem dum navio, pode
facilmente atracar à ponte, enquanto que a cábrea permite o
descarregamento dos mais pesados volumes, pois pode levantar até
sessenta toneladas, tirar ou receber mastros, artilharia, sendo a
condução feita para o Arsenal em zorras de ferro.
A primeira embarcação que esteve na ponte foi, em 1865, a
fragata D. Fernando que veio ali receber os mastros.
O Arsenal tem um cais todo em cantaria, denominado a
Inspecção, porque é ao centro dele que está colocada a secretaria da
Inspecção, hoje arvorada em Administração dos Serviços Fabris, e
dirigida agora (Maio de 1909) pelo digno contra-almirante, Sr. João
Boto, secretariado pelo Sr. Castro Moreira.
A Administração dos Serviços Fabris tem sob sua alçada a
Direcção das Construções Navais e esta, por seu turno, tem a Direcção
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Serviços Marítimos. Uma das Direcções tem a seu cargo: a polícia,
fiscalização dos depósitos, marinheiros, gente do talhame da artilharia,
navios desarmados, guarnição dos iates, barcaças, barcas de água,
faluas, dragas, pontões, vapores, rebocadores, escaleres e as oficinas
de aparelho, pintores, tanoeiros; a outra tem a responsabilidade do
corpo de engenheiros maquinistas, e as oficinas de máquinas, serração,
ferraria, fundição de bronze, latão e ferro, caldeiras de vapor, moldes,
caldeireiros de cobre, poleeiros, torneiros, entalhadores, calafates e
carpinteiros de branco e de machado.
O
serviço das Construções Navais tem actualmente como director técnico, o
engenheiro naval Sr. Mancelos Ferraz; e os Serviços Marítimos têm como
director o Sr. Francisco Vieira de Sá, sendo subdirector o Sr. Júlio
Cardoso Pacheco Moreira, capitão de fragata; chefe da secção de
contabilidade o Sr. Adelino da Costa Barradas, comissário de 2.ª classe,
e sub-chefe o Sr. Miguel Pinto-Homem, aspirante de 1.ª classe.
Além do que fica exposto, o Arsenal da Marinha tem ainda
– como dependência – ao sul do Tejo os depósitos de Vale de Zebro e da
Azinheira.
Como nota histórica, temos a acrescentar que ainda existe
neste edifício um recanto dos antigos paços da Ribeira: um grande portal
em cantaria, que se vê no extremo oriental do edifício, conhecido pelo
nome das galés. Este portal era pertença das obras empreendidas nos
citados paços de D. João V.
Foram, pois, durante séculos, construídos neste Arsenal
centenas de barcos, sendo as últimas construções ali realizadas a do
cruzador D. Amélia, sob a direcção de A. Croneau que fora
especialmente contratado em França para dirigir tecnicamente os serviços
de construção naval naquele estabelecimento do estado, e em 1908, as
canhoneiras Save e Lurio, destinadas principalmente às
estações africanas e que foram feitas sob a direcção do engenheiro-naval
Sr. Mancelos Ferraz.
Este vastíssimo e importante estabelecimento fabril tem
no andar nobre a Relação de Lisboa e a Escola Naval, onde há de
importante a Biblioteca, a Sala do Risco – ao fundo da qual existe uma
corveta em que os alunos fazem exercício e que é conhecida pela típica
designação de Paciência – e o Museu.
Aí se vêem alguns modelos de grandes embarcações
construídas no Arsenal da Marinha, o modelo em madeira de uma estátua –
que nunca chegou a fazer-se – de D. João V, e um grande quadro a óleo
representando uma baleia, cópia de uma que entrou o Tejo em 11 de
Janeiro de 1783 e que deu à costa na praia do Alfeite.
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Como notícia da última hora acrescentemos aqui que no
estaleiro deste Arsenal
/ 249 / está
em construção a canhoneira Beira, especialmente destinada para
serviços em África.
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Para finalizar e como compensação da obsequiosidade com
que os amáveis leitores dos “Serões” nos têm acompanhado,
recomendamos-lhes a água da ponte do Arsenal, estomacal e digestiva,
cujas virtudes terapêuticas o Dr. Alfredo Luís Lopes menciona a páginas
147-148 do seu livro publicado em 1896, Águas minero-medicinais de
Lisboa.
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Não conseguimos talvez realizar o que a índole ligeira
desta elegante publicação requer – dizer muito em poucas palavras; em
todo o caso confiamos em que o assunto não desagradasse por completo,
ainda que descrito monotonamente.
Maio, 1909
HENRIQUE MARQUES JÚNIOR
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