I

Do tempo dos franceses a El-rei D. Fernando
 

Como apareceu a caricatura – Portugal e os caricaturistas – Arma de troça e de combate

A caricatura deve ter nascido na hora em que o homem sentiu a vontade vingadora de mostrar o seu semelhante exteriorizando-lhe os defeitos e castigando-o em traços que fossem ao mesmo tempo rasgões de armas afiadas e bordoadas arlequinescas de matracas cómicas e ruidosas. A essa ânsia de troça não escaparam nem os deuses nem os imperadores; as faces imortais alargaram-se, cresceram, tumificaram-se e os vultos augustos e sagrados apareceram de pés de cabra e orelhas de burro com que os artistas, mesmo nas mais remotas idades, se vingaram dos dominadores. Desde Antrifilo, metido nas enxúndias dum suíno, até Napoleão, encarnado na Besta do Apocalipse, desde as macabras exibições de Góia às endiabradas cargas de Gavarni, desde D. João VI minotaurizado até ao Sr. José Luciano em fralda, a caricatura tem marcado, com o seu ferrete contundente e guizalhante, os crimes, os maus actos, as tranquibernias, as afectações, besuntado com irreverências castigadoras / 180 / as faces mais célebres, não poupando, não transigindo, não se curvando. A caricatura é das artes a única que não pode ajoelhar diante dos poderosos; é aquele que não pode viver senão ridicularizando; a única que ficou filha da revolta e eternamente revoltada como no seu inicio, sem o amoldado fácil da literatura, da música, da poesia, da escultura que bastas vezes sagram em apologias, em hinos, em odes, em monumentos aqueles que a caricatura abexigou com maior Justiça.

Enquanto historiadores graves, pintores famosos, poetas célebres, escultores distintos e inspirados músicos celebravam os dotes do senhor D. João VI, as bondades e virtudes do príncipe fugido para o Brasil num êxodo realengo e cortesanesco, diante dos franceses invasores, aparecia nos muros do paço da Bemposta uma caricatura – uma das mais antigas de Portugal – onde o marido de Carlota Joaquina a parece de pernas tortas, barriga saliente, a cabeça com os apêndices do demónio numa caraça de ruminante de cuja boca saía uma frase caracterizadora e uma alusão aos 200 milhões de cruzados que se dizia tinham ido na armada com a corte acobardada e foragida.

À esquerda surgia a nação com uma perna de pau e na sua frente o exército, os empregados, os operários, os ricos exclamavam: «o meu soldo, o meu ordenado, o meu salário, as minhas tenças!» A nação, segundo uma bandeirola que lhe saía da boca, dirigia-se ao príncipe nestes termos bem pouco respeitosos: Ouvi, cruel, a voz, dos vossos filhos. O que levas não é teu. És um ladrão. Ficamos pobres e infamados! Aparecia ainda uma fileira de frades e de lobinhos, numa alusão aos Lobatos, favoritos de D. João; o seu conselho privado e a Inglaterra de gorro de algodão, / 181 / bradando: Vamos! Vamos! Por detrás do conselho estava escrito: Se vêem os 200 milhões, de Londres não voltam, Bela ocasião para zombar dos credores. Nada de satisfações e que se regalem com os franceses! No alto do papel havia o seguinte dístico: A nação mais valorosa, mais fiel e menos resoluta!

Tal é a primeira caricatura portuguesa em que se castiga um soberano numa explosão de cólera e com uma risada galhofeira. Em pleno domínio dos franceses o ridículo das caricaturas secretas ia atingir Napoleão, Josefina, os reis da casa imperial como numa célebre estampa intitulada o Dragão e a Besta, na qual se dá à imperatriz dos franceses o nome com que lhe castigavam algumas das suas escapadas amorosas do tempo de Barras e nas caleças de viagem do período das vitórias na Itália, há nessa estampa, com um ódio profundo, uma superstição marcada e uma sátira terrível que a expressar-se numa gargalhada seria áspera, sarcástica, epiléptica. Muitas outras se espalharam pelo país e em 1809 aparecia uma que representava Bonaparte de jornada para o inferno. O imperador lá vai, de espada nua, encavalitado no demónio, mais feio que é possível imaginar, com as suas asas de morcego, o rabo em fouce, a bocarra aberta, carregando para o seu antro aquele que devia ainda em Santa Helena receber pelos jornais os insultos que a caricatura de todo mundo lhe enviava.

 
Os malhados e a caricatura – Lápis que ferem – O Rei Nabo

Quando D. Miguel reinava também numa meia caricatura se troçavam os constitucionais. O rei, com o seu belo rosto, sagrado por um anjo que lhe trazia a coroa, protegido pela Virgem, que do céu olhava, nada tinha de caricatura, antes estava mais aformoseado; mas, em compensação, por debaixo do trono três desgraçados constitucionais hediondos, um deles com orelhas asininas, outro com a trolha dos pedreiros livres, o terceiro de guedelha hirsuta, eram bem caricaturais segurando o seu letreiro onde se lê:

Pedreiros livres

E malhados

Debaixo do trono

São esmagados.

A caricatura, porém, só chega a um certo desenvolvimento em Portugal, quando os jornais se atrevem a publicá-la, após a implantação do constitucionalismo que fora celebrado em gravuras lisonjeiras e alegóricas nas quais D. Pedro salvava o / 182 / país – um barbudo vestido de arnês – partindo-lhe os grilhões avassaladores e D. Miguel a parecia calcado aos pés do irmão como um demónio sob o arcanjo vingador. Era a represália das orelhas de burro com que se tinham restituído a alguns dos constitucionais as suas primitivas formas tanto pelo símbolo da sua inteligência como pela fúria com que depois entraram a escoicinhar na liberdade. A D. Pedro, em vez de caricaturas, fizeram cantigas revoltantes e apatacaram-no em S. Carlos outros demolidores mais práticos, mas D. Maria II e seu marido, D. Fernando, que também fez caricaturas, sofreram os rudes embates dessa arte que começava a surgir nas páginas iconoclastas dos jornais.

No “Procurador dos Povos”, folha volante, um tal Filgueiras traçava, embora sem vigor, pálida, desengonçadamente, os perfis dos soberanos. O rei era um nabo muito alto, fardado de marechal; a rainha uma mulheraça gorda, que quase sempre se parecia e muito com D. Maria II.

Após a batalha de Torres Vedras lá aparece na janela do paço saudando um cortejo ratão que desfila grotesca e singularmente e D. Fernando entre os ministros, numa outra página, está todo empertigado com a sua cabeça vegetal numa irreverência de tal ordem, para o tempo, que chega a admirar. Então aparecem outros artistas, quase todos assinando os trabalhos com pseudónimos ou com simples iniciais não indo, na peugada do primeiro, avançando de dia para dia a audácia das legendas que devia chegar ao máximo após o Cabralismo em 1846.

Referindo-se à expulsão dos frades dos seus conventos há uma caricatura com o seguinte titulo: Os roubados pedindo esmola aos ladrões! Dum lado estão os religiosos de mão estendida, do outro a ministralhada radiante. Portugal era já representado nesse tempo por um esqueleto a que se vestia um resto de armadura e quase sempre aparecia a pontapear ministros em curvaturas patuscas, de tíbia vingadora. Alguns artistas punham os caricaturados apenas com deformações nos corpos, conservando-lhes os rostos ou para serem assim bem conhecidos ou por deficiências de poderem marcá-los nas disformidades de traço / 183 / que são a base da caricatura.

As impertinências choviam: o ataque era constante e, apesar do grosseiro trabalho, algumas dessas páginas têm graça pelo arrojo e pela intenção, pelo singelo e inexperiente traço com que se procurava ferir aqueles que não cumpriam os seus deveres e que os jornais muitas vezes, cheios de receios, poupavam. É nesse período que começa a afirmar-se a caricatura política mesmo no estrangeiro, como uma arma de rebelião com que a França ia preparando um pouco a sua república de 48, depois de ter perfurado as enxúndias de Luís XVlII, a corte beata de Carlos X e o burguesismo de Luís Filipe.

Chega-se ao máximo do arrojo; os reis passam a ser do domínio comum desde que transigiram e os grandes personagens, marcados com os seus defeitos faziam rir despegadamente o povo.

 

No tempo dos Cabrais – A história do caleche – O Suplemento do «Patriota»

Em Portugal um dos indivíduos mais violentamente atingidos pela caricatura foi Costa Cabral e duma forma que nem mesmo quando a arte perfeita de Bordalo marcou Fontes, Arrobas e todos os políticos do seu tempo, pôde ser excedida. “O Patriota”, jornal da oposição ao cabralismo, lançou o seu “Suplemento Burlesco”, à imitação dos jornais franceses, um pequeno folheto de quatro páginas recheado de injúrias e de sátiras. Dois caricaturistas, que assinavam Cecília e Maria, a ocultarem-se, a ficarem desconhecidos para a posteridade, fizeram sangrar rijamente os Cabrais, sobretudo António Bernardo, depois marquês de Tomar – que a ter realmente os fígados ferozes que os seus inimigos lhe atribuíam e a rodear-se dos caceteiros / 184 / que, diziam, acaudilhavam os seus sequazes, teria mandado por mais de uma vez, alguns rijos pimpões de Algodres deslombar com o estadulho provinciano os seus acusadores, há uma caricatura em que o ministro aparece rapinando lenços das algibeiras alheias e que traz a seguinte legenda: O Instinto do Roubo; outra intitulada A Sentença do País, e levando escrito nas costas a palavra Ladrão. São como um estigma aquelas letras ressaltando na página do “Suplemento Burlesco” e mostram-nos a liberdade da imprensa que então existia e a audácia de ataque que os nossos avós punham nas suas lutas políticas. As caricaturas têm então um ar de certo capricho, o desenho já é acabado; a ideia é sempre mordaz iniciando assim a arte que faltava nos caricaturistas anteriores. Em 1847 pintavam António Bernardo virando a casaca, transvestiam-no sempre em cabra, referindo-se ao seu apelido de Cabral; os seus partidários apareciam como um rebanho; o seu brasão tinha animais estranhos, toda uma violenta obra de ridículo se fazia pela caricatura que dentro em pouco devia esmorecer para só ressuscitar e engrandecer-se na notável obra de Bordalo. Em 1850-1851 punham o ministro guiando um caleche que os seus amigos puxavam, isto numa alusão a certo negócio, de resto nunca provado, e que as oposições assacavam ao homem de Algodres e colocavam-no sobre peanhas ridículas de um cómico atrevido. Fustigavam-no e aos seus com as caricaturas estranhas que são o Triunfo do Chibo e a Adoração do Cacete. A nação despojada, surge com a legenda hilariante: Estado em que ficou Portugal depois das vantagens de Tomar. A Maria da Fonte aparece de vez em vez nessas páginas com as suas armas, ferrando socos nos Cabrais, os homens mais feridos pela caricatura terrível durante quatro anos em que no Suplemento do “Patriota”, Maria e Cecília, pseudónimos de artistas de algum valor e muita energia foram lutando contra o governo e firmando em mais sólidas bases aquela arte que alvorecera em Portugal nas paredes abandonadas no Paço Real da Bemposta a ferir justamente o príncipe e a sua corte que abandonaram a nação no período crítico em que os invasores vinham chegando para a tomada infame.

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Um rei caricaturista – Um poder executivo chuchado pelo moderador – a aurora duma arte nova

Enquanto atacavam os seus ministros com essas satíricas figuras, o rei D. Fernando, artista precioso, príncipe germânico que trazia no seu lápis evocações de gnomos da sua Alemanha e diatribes aquecidas na vida peninsular, dedicava-se também à caricatura que fazia voga, inofensiva, graciosa, leve, mais de apontamento que de troça, com o seu quê de discreto de risada diplomática.

Em 1840, quando o pintavam como um nabo fardado, ele entretinha-se a tracejar na beira duma fantasia alemã, com as suas eternas figurinhas gnómicas, episódios margeantes na folha onde a composição ressai: e são trechos de corrida de touros a que assistiu e de que talvez se recordava com saudade enquanto ia desenhando as figuras do seu quadrinho. A letra do rei marca os episódios minúsculos, indica o que representam vendo-se então, depois duns cavaleiros que vão farpeando, toda a nota cómica duma tourada no seu intermédio de gargalhada, com uns pretinhos da Guiné desnalgados e de penas na cabeça correndo para os touros enquanto, já numa fantasia, perpassam no meio deles anões bem alemães puxados por cisnes. Noutra, que talvez seja recordação de alguma festa palaciana ou de S. Carlos, põe um homem cantando com largos gestos e um pianista de longas farripas, corcovado sobre o instrumento numa intensa nota de verdade logo desmanchada por ter metido tudo isso entre animais fabulosos que a sua fantasia germânica se comprazia em colocar nas coisas mais positivas.

Em 1836 caricaturava dois tipos com a seguinte legenda: Il vecchio Cappuzi e l'amico Pitichenacaio. Onde a caricatura, porém, se torna franca, sem receios, feita sem dúvida numa hora folgazã pelo soberano é num trabalho curioso intitulado: O poder executivo do Pelouro da Limpeza[SERÕES N.º 51]

É a carroça do lixo para a qual se atiram / 186 / gatos, se despejam caixotes ao som da campainha que o homem agita, numa nota viva de sátira que torna realmente engraçado esse poder executivo do pelouro da limpeza todo achincalhado por uns traços de lápis ático do Poder Moderador. Mais tarde aparece ainda em Lisboa um periódico “O Jornal para rir” onde Nogueira da Silva fazia caricaturas inofensivas e a arte paralisou-se para só se tornar dominante e vencedora, arte portuguesa, nas mãos portentosas de Bordalo. Tais foram as primeiras fases dessa arte que, tendo as levezas duma sátira burilada, encerra o veneno agridoce duma pasquinada, dessa arte que ao atacar – ela, a mãe do ridículo – se vinga divinamente matando, mesmo os mais cépticos, sossegando-os, fulminando-os quanto mais não seja pelo riso.

O horror da sátira ataca bem vivamente todos os portugueses; o ridículo é a arma que mais os perturba porque havendo no fundo de todos eles o atavismo das velhas quixotadas jamais podem perdoar que se lhes pinte os defeitos no exagero que a caricatura arranja, umas vezes com o poder artístico como o de Bordalo Pinheiro nas páginas brilhantes dos seus jornais, outras com uma forte fúria em que menosprezando a arte, alguns caricaturistas como alguns panfletários inferiores zurzia os poderosos da terra, os amesquinham exagerando-as num cúmulo de paradoxo.

Essa arte, em Portugal, começou pela insânia fúria de rebelião do cartaz da Bemposta e marcou-se nas violências anti-estéticas dos colaboradores do “Procurador do Povo” e do “Patriota” até que um dia o inigualável artista que foi Rafael, que por si só merece um artigo especial, senão um volume, tomou o ceptro dessa formidável potencia em que reinou durante a sua vida e em que jamais nenhum português o excedeu. Ele foi como um rei de que se têm muitas saudades ao verem-se os outros, um supremo artista que fez da caricatura portuguesa a obra notabilíssima e inimitável, que os próprios alvejados reconheciam como primorosa e que o publico aplaudia no seu instinto das causas belas.

Nesse período que vai da invasão francesa à morte de D. Fernando II e mesmo depois só ele foi o mestre que fazendo rir pelas contorções dos rostos, pelos defeitos exacerbados, castigou as infâmias e as trapaças em que tem sido fértil toda a politica portuguesa.

ROCHA MARTINS

 

 

25-11-2020