ASTA, ramificando-se num dédalo de canais e esteiros, em alguns pontos ampla como um mar, a ria de Aveiro estende-se a perder de vista, por entre tufos de ervagens frescas e cordões frondentes de tramagueiras. A luz, caindo em cheio sobre as suas águas, dá-lhe espelhamentos cristalinos. Ondas de pedrarias parecem boiar numa opulência oriental.

De todos os seus aspectos tão variados e originais ressalta uma alacridade vibrante e irradiando em exuberâncias intensas de cor e majestade. Murmurante e sedutor quando a viração perpassa num hálito perfumante, severo e duro quando o assaltam os embates da borrasca, aquele formosíssimo talhão da natureza manifesta nesses contrastes um atractivo que fascina e sugestiona.

Misto de graça e rudeza, de candura e arrogância, de suavidade e aspereza, é um intenso reflexo do encanto que vive em todas as coisas sãs.

Cresce e desenvolve-se no seu seio uma vida forte, quase isolada do que a cerca. Os tipos que a habitam e cuja existência por lá lhes decorre no descuidado enlevo das primitivas idades, afirmam nos seus gestos e na sua linguagem uma independência indefectível, uma altaneira característica, oposta aos preconceitos da velha sociedade. Contudo, não impera neles a barbaria grosseira, que marca um estado primitivo. Duma lhaneza quase fraterna, não há risco que os intimide, nem dedicação que não experimentem. O pescador da ria de Aveiro assume um carácter vivo e impulsivo. Incitado por uma impressão repentina, arde em exageros desabridos, quase ferozes, para de aí a instantes se transformar na ingenuidade mais terna, que o faz adorado duma criança.

Içando a vela num barco moliceiro - Cliché de Mendes da Costa, 1908

A ria é o seu predilecto campo de acção. Arrancado dali, é um ente inerte, onde não vislumbram estímulos ou se agitam iniciativas. Transfigura-se, esbate-se numa penumbra indolente, e ninguém diz, ao vê-lo assim, que esta ali o impávido herói de grandiosas proezas, o arrojado trabalhador que, na conquista dum bocado de pão para os seus, é capaz das mais audazes temeridades, sacrificando a vida e a felicidade.

Com uma prodigalidade benéfica, a ria oferece-lhe todos os elementos indispensáveis. Todas as espécies ictiológicas nela se desenvolvem com uma pasmosa fertilidade. E para as colher o pescador serve-se de meios variados e engenhosos. É o botirão, a chincha, a branqueira, a solheira, o salto ou parreira; e ainda, para nada escapar à sua cobiça insaciável, emprega o ancinho, a draga, a bolsa e a fisga. É um arsenal de aparelhos!

Uma marinha por detrás do Rossio em 1908. Autor não indicado.

Sobre tudo isso, há ainda uma numerosíssima família, a nação dos Calixtos, que faz uso das unhas para filar as enguias. Daí, o nome particular de unhantes. Com uma vista penetrante, avançando ao longo dos lameiros, de cuecas e mangas arregaçadas, mal descobrem um buraco no fundo da água, que logo conhecem ser o a brigo do peixe. Zás! Enfiam o braço, enterram a mão no Iodo, pisam com o pé junto do buraco e sacam as enguias filadas nas unhas. Quando a água, pela sua altura, lhes não permite empregar a mão, é com os próprios dedos dos pés que executam a manobra!

Esse dote peculiar da família dos Calixtos tem-se propagado através do tempo até à actual descendência. Só ela, e ninguém mais, possui essa perícia, para assim dizer, ingénita.

 

A ria de Aveiro é um manancial prodigioso e inesgotável. A sua importância económica é extraordinária. Os agricultores vão lá buscar consideráveis e ricos adubos, a indústria vê nela um proveitoso motivo de exploração e o comércio considera-a como um admirável subsídio para as suas comunicações e um valioso factor para a sua prosperidade e florescência.

Entre tantas riquezas que o nosso país contém, não será esta uma das mais queridas e cobiçadas? Decerto. Por isso, já houve quem, uma vez, ousasse tentar monopolizá-la. Mas quê? Lá estava alerta o espírito insubmisso dos seus habitantes, que se levantaria à uma para defender a todo o transe o que já considera, por direito consuetudinário, um logradouro público.

E ai daquele que estendesse a mão rapace! Cortavam-lha cerce.

RENATO FRANCO

In revista “Serões”, n.º 31, ano 1908, Vol. VI, pp. 62 a 65.

NOTA - Foi suprimida a última imagem do artigo.

 

28-02-2020