Neste momento, em que ecoam ainda nos nossos ouvidos os gritos lancinantes de tantos desgraçados que pereceram nas chamas do grande incêndio da rua da Madalena, um dos mais notáveis dos últimos tempos, já pela sua origem, em que a justiça descobriu, por indicação indignada da voz pública, um dos mais repelentes atentados criminosos, já pelas peripécias terríveis, de todos conhecidas, em que catorze vítimas encontraram a mais afrontosa de todas as mortes, neste momento será talvez oportuno relembrar, num simples memento noticioso, algumas das mais memoráveis tragédias do incêndio, que têm alarmado a nossa formosa cidade de Lisboa, destruindo na sua implacável fúria edifícios, haveres e vidas dos seus cidadãos.

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 Antigos incêndios dos séculos XV e XVI

ARECEMOS de informação histórica, mas fácil é imaginar o que seriam antes do terramoto, tais sinistros na velha cidade, cujo casario informe se amontoava em apertadas ruas e vielas, de que nos dão ainda hoje pálida ideia os bairros da Alfama, da Mouraria e do Castelo; naqueles tempos em que os recursos contra o fogo, que lavrava de casa para casa, se resumiam nos processos rudimentares de cortar e atalhar a propagação do incêndio, que ou se apagava a baldes de água, ou por falta de material que ardesse, combatido numa luta estéril, anárquica, dos populares animosos que acorriam à salvação das vítimas ou à pilhagem criminosa dos bens.

Não iremos remontar às trágicas e mal conhecidas catástrofes, a que vagamente aludem as velhas crónicas, ocorridas nos séculos XIV, XV e XVI, tempos em que sabemos, por exemplo, ter ardido num pavoroso incêndio grande parte da famosa rua Nova, que corria pelos sítios da actual rua dos Capelistas. Era a rua principal da velha cidade, o Chiado daquele tempo, delineada desde o reinado de D. Dinis, com 13 metros de largo, e mais tarde guarnecida dos ricos bazares onde se vendiam as preciosidades artísticas do Oriente. Pois uma boa parte dessa rua comercial e opulenta foi devorada pelo fogo calamitoso de 30 de Janeiro de 1396, que alastrou pela Confeitaria e Ver-o-Peso, vitimando inúmeras / 404 / pessoas, e causando enormes prejuízos de prédios e de fazendas.

E contudo, naqueles tempos de costumes semi-bárbaros, e ainda depois, a justiça não raro empregava contra lugares condenados pelas leis, a pena extravagante de destruição pelo fogo, do mesmo modo que, anos passados, a Inquisição procurava exterminar ferozmente os incrédulos nos autos de fé da praça pública. Às casas de tavolagem, ainda hoje perseguidas por assaltos ridículos, aplicava-se a pena de serem reduzidas a cinzas, como em 1490, no dia 1 de Junho, se ordenou com respeito a uma da praça da Palha, casa – «que se tornava escandalosa pelas juras e blasfémias dos jogadores». – E um padre, que miudamente nos relatou mil factos curiosos na sua obra tão consultada – O ano histórico –, comentava a pena dizendo – «abrazem-se as casas de jogo já que o jogo tem abrazado muitas casas».

Deixemos também as notícias do sinistro ocorrido na antiga rua do Príncipe, ao Terreiro do Paço, em 1575 (18 de Fevereiro), no qual o fogo devorou por completo um dos lados da rua, e do incêndio que dois dias depois da partida de D. Sebastião para a África lavrou numa tercena à beira rio, junto a Santos, onde se armazenava trigo e pólvora. A explosão foi enorme, alarmando a cidade e causando grande número de vítimas.

 

Os incêndios do Hospital de Todos os Santos e da igreja do Loreto

Dos séculos XVII e XVIII temos porém notícias numerosas e pormenorizadas de temerosos incêndios.

Bastaria citar o que em 27 de Outubro de 1601, depois da meia-noite, devorou numa fogueira enorme a igreja e parte das enfermarias do grandioso Hospital Real de Todos os Santos, ao Rocio, fundação notável de D. João lI, e o outro não menos falado, que em 29 de Março de 1651 destruiu por completo a igreja italiana de Nossa Senhora do Loreto, e os prédios contíguos, onde se alojava então o depósito das décimas.

 

Ardem os conventos de S. Francisco e da Trindade

O século XVIII não alvoreceu com bons prenúncios, com relação a incêndios, visto que logo nos primeiros anos dele, grandes e pavorosos sinistros aterraram a cidade. Na noite de 9 de Janeiro de 1707, um foguete mal lançado caiu sobre o telhado da igreja do grande convento de S. Francisco da Cidade, que padeceu neste desastre graves danos.

No ano seguinte de 1708, noutro dos mais populosos e importantes conventos de Lisboa, o da Trindade, o fogo devorava, no dia 22 de Setembro vários lanços do edifício, deixando apenas incólumes o templo, e cerca de 18 celas de religiosos. Depressa porém os frades trinos reedificaram o seu convento, que o terramoto de 1755 arrasou, acabando a destruição o fogo que se seguiu.

Do que era o edifício antes do incêndio de 1708 e depois dele dão-nos ideia ligeira a gravura de Domingos Vieira Serrão no precioso livro de Lavanha e outras antigas vistas da cidade. O que ele era em 1833, antes de ser demolido para a abertura da rua da Trindade, mostra-o o desenho de Luís Gonzaga Pereira, conservado na sua memória manuscrita sobre igrejas de Lisboa, existente na Biblioteca Nacional.

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Três pavorosos fogos – Novo incêndio em S. Francisco e segundo grande incêndio do Hospital Real

O dia 10 de Agosto de 1734 é de triste memória para a cidade de Lisboa. Nada menos de três grandes incêndios a apavoraram. Assim no-lo conta Fr. Cláudio da Conceição, no Gabinete Histórico.

Foi um na rua nova do Almada, defronte dos Oratorianos do Espírito Santo, fogo tal que condenou 18 prédios, morada de 59 famílias, e chegou a ameaçar o convento, onde hoje estão os Armazéns do Chiado. O segundo muito violento também, devorou grande parte do convento das comendadeiras da Encarnação, salvando-se a igreja; o terceiro foi junto à igreja do Paraíso, na actual rua deste nome, e nele arderam algumas casas.

O convento de S. Francisco da Cidade era malfadado como o edifício do hospital real. Repetidos e violentos incêndios os assediavam a ambos. Em 1741, na madrugada de 30 de Novembro, volviam chamas sinistras a destruir o dormitório e a livraria. Baldados foram os esforços para as debelar; a voracidade do fogo, que durou até ao dia seguinte, refere o Gabinete Histórico, apenas respeitou a igreja. Reedificada logo, o terramoto arrasou-a, e a reconstrução última nunca chegou a cabo, apresentando até princípios de século XIX o aspecto que estampas antigas nos conservaram.

Às três horas da manhã de 10 de Agosto de 1750, soou o momento da mais horrível catástrofe que antes do terramoto alanceou os espíritos, em Lisboa. Ardia segunda vez o hospital real.

Resta-nos do desastre uma Relação impressa, folheto hoje raro, daquele mesmo ano. Teve princípio o fogo num monte de aparas na casa das tinas, e dali irrompeu com rapidez pelas enfermarias, casas dos enjeitados, corredores, cozinhas, igreja, casas do Provedor e da fazenda, botica e outras oficinas.

É fácil imaginar o horror deste quadro: via a cidade arder o seu grandioso hospital, onde jaziam em leitos tantos miseráveis, nada menos de 720, onde se encerravam em medonhos cárceres 17 doidos, e onde se criava avultado número de infelizes enjeitados.

Não se apura da relação o número de vítimas, que devia ser grande. Acudiram os frades das ordens religiosas, arrábidos, domínicos e outros, transportando os enfermos e as crianças aos seus conventos e às casas vizinhas, à Calçada de Sant'Ana, aos conventos de S. Domingos e do Desterro, às casas do Senado e do Conde da Ribeira. Vieram logo os soberanos e toda a nobreza opulenta da cidade a oferecer suas berlindas, coches e carruagens para o transporte dos doentes, disputando entre si sobre quem mais e melhor pudesse exercitar estes piedosos socorros de humanidade cristã.

As comunidades saíram pelas ruas em peditórios; quase todas as famílias os socorreram com os seus óbolos.

Cinco anos depois o terramoto acabava de destruir o grande hospital real, de que já restavam apenas o gracioso pórtico, cujo desenho se conserva, com seu tabuleiro e escadarias, bem como parte da fachada do edifício.

 

Outros sinistros no fim do século XVIII

Assim como deixámos em esquecimento na resenha do século XVII os incêndios que em 1651 e 1694 devoraram o convento de Santa Brígida (Santos), e o edifício do Noviciado da Companhia de Jesus, à Cotovia, também agora, no memento do século XVIII, passaremos de relance pelo fogo que em 1745, a 13 de Fevereiro, pegou nas casas da pólvora à Ribeira, causando explosão medonha, em que pereceram 28 vítimas, ficando perto de 100 pessoas feridas, das quais algumas morreram pouco depois; pelo que em 14 de Dezembro do mesmo ano rompeu violento às 4 horas da madrugada nos aposentos da rainha, no paço da Ribeira; pelo que em 1751 lavrou surdamente, como conta o sempre minucioso autor do Gabinete histórico, causando quase completa ruína naquele velho e soberbo palácio; e finalmente pelo que em 1753 a 5 de Agosto, se ateou em prédios da rua das Canastras, causando avultados prejuízos em boas casas, lojas e armazéns bem recheados.

 

O incêndio da Patriarcal

No decorrer da tarde de 10 de Maio de 1769, os habitantes da capital ouviam o desesperado rebate dos sinos, e de todos os pontos da cidade se avistava a densa coluna de fumo que se levantava do alto da Cotovia. Estava ardendo com força o enorme edifício onde se instalara a nova Patriarcal, construído havia pouco no sítio das obras do conde de Tarouca, espaçoso terreiro que depois teve as denominações / 406 / populares de Patriarcal queimada, e de Largo das pedras, e onde actualmente vicejam árvores e plantas do jardim do Príncipe Real.

Neste grande e voraz sinistro logo a voz do povo indigitou um crime: recaíram suspeitas sobre o armador antigo da igreja Alexandre Franco Vicente, que tinha a seu cargo as arrecadações dos riquíssimos paramentos e alfaias. Chamado a explicações o indiciado autor do crime fugiu, mas preso logo em Faro, e confessado o crime, praticado no intuito de encobrir avultados roubos, o Incendiário da Patriarcal condenado segundo as justiças feras do tempo, por acórdão de 28 de Janeiro de 1773, foi com baraço e pregão amarrado à cauda de um cavalo, açoitado e conduzido ao alto da Cotovia, onde no próprio sitio do seu crime o amarraram a um poste e o queimaram vivo.

Estava ainda recente o exemplo das execuções sumárias que o marquês de Pombal ordenara se fizessem pelas ruas aos malfeitores e incendiários, que aproveitavam os momentos sinistros da medonha catástrofe de 1755, para roubar as casas e activar o braseiro enorme em que se consumia a cidade. Descreveu-nos esses horrores, com a sua frase colorida e viva o ilustre escritor Pinheiro Chagas, no seu romance O Terramoto de Lisboa.

A vida do Incendiário da Patriarcal, cheia de pormenores e incidentes curiosos, foi aproveitada pelo romancista popular Leite Bastos para um dos volumes da colecção em que historiou alguns dos grandes criminosos dos últimos tempos, como o Matos Lobo, o Diogo Alves e o último Carrasco.

 

Alguns fogos com que se inicia o século XIX

Observemos agora a crónica dos sinistros pelo fogo no decurso do século que passou. Logo ao alvorecer desta quadra, em que na cidade cresce sensivelmente a população e em que os novos costumes, a iluminação a gás, os teatros, as noitadas, reuniões e soirées aumentam as facilidades e os perigos de tão funestos acontecimentos, veremos iluminar-se a cidade em 1819 com o fogaréu em que arde ao cimo da calçada da Graça o grande palácio dos duques de Loulé.

A 3 de Janeiro de 1830 ardia o prédio da arcada, no canto do Terreiro do Paço, pertencente ao barão de Sobral. O fogo foi terrível, e nele pereceu, entre outras vítimas, um conhecido pasteleiro da rua dos Capelistas, de nome Luís Ferreira da Silva.

 

Como ardeu o antigo palácio da Inquisição, ao Rossio

A revolução de 1820 tinha abolido a ominosa Inquisição, e o povo indignado invadiu o palácio, sito ao topo do Rossio, destruindo e exterminando os instrumentos de tortura, e pondo em liberdade, como na tomada da Bastilha, os míseros que ainda apodreciam em seus cárceres. O palácio passou a chamar-se Paço da Regência e a ter aplicações várias, instalando-se nele algumas repartições entre elas as do Erário régio, do crédito público e do papel selado. Assim estava, quando no dia 14 de Julho de 1836 um pavoroso incêndio o devorou, reduzindo tudo a um montão de ruínas, e deixando apenas intactas as grossas paredes, com o aspecto que gravuras da época nos conservaram.

Suspeitou-se de crime neste fogo, que tão grandes prejuízos causou aos cofres do Estado. Depois de longas hesitações, as ruínas foram demolidas, e no lugar delas se fez / 407 / em 1841 o largo de Camões e o teatro de D. Maria.

Semelhantemente persistiram por muitos anos as ruínas em que o terramoto deixara o palácio dos duques de Bragança, ao Tesouro Velho, até que um grande incêndio devorou em 1841 as barracas e construções provisórias e mesquinhos casebres, que pouco a pouco ali se tinham ido construindo, e onde vivia como nos casebres do Loreto e nas ruínas do palácio Vidigueira, a S. Roque, numerosa população de vadios e galdérios. Destruídos os casebres pelo fogo de 1841, edificaram-se os grandes prédios que hoje ali existem.

Grandes fogos destroem a Escola Politécnica e parte do Convento de Xabregas

Um dia, a 22 de Abril de 1843, pelas três horas da tarde, um incêndio, cuja causa se ignora, levanta-se de súbito num dos extremos de edifício, que antes fora o Noviciado da Companhia de Jesus (salteado pelo fogo de 1694, como dissemos) e depois transformado em Colégio dos Nobres pelo grande Marquês, e em Escola Politécnica, em 1837, por Passos Manuel.

O fogo lavra violento; os sinos da cidade dão rebate que se comunica de torre a torre, chamando ao lugar do sinistro as bombas, as tropas, os artífices, obrigados pelo seu dever, e a multidão de voluntários, populares, estudantes, militares, autoridades, e a tripulação dos navios nacionais e estrangeiros surtos no Tejo. O espectáculo, como o descreveu Castilho, na “Revista Universal Lisbonense” (Obras compl., vol. 42), era medonho: – «rolos de fumo negro que, torcidos, espedaçados e abertos em grandes florestas de nuvens, denunciavam que, ajudado do vento impetuoso de nordeste, o fogo, não só poderia em breve engolir o edifício que o borbotava, mas algum largo trato da povoação contígua e subjacente».

De facto, soprado pelo vento o incêndio recrudescia, a despeito dos esforços dedicados dos que diligenciavam atalhá-lo e salvar as preciosidades do ensino, manuscritos, livros, instrumentos, museus. Ao cabo de 5 horas estava tudo reduzido a um montão de cinzas, guardado pela tropa, e no qual se procedia às últimas operações do rescaldo.

O ano imediato de 1844 foi mais terrível ainda. Logo a 11 de Janeiro, depois da meia-noite, declarava-se fogo no antigo Convento de Xabregas, em parte do qual estava estabelecida a fábrica de fiação e tecidos. O povo atribuiu este fogo a origem malévola e criminosa, chegando a julgar-se que os ingleses, que já nos haviam queimado fábricas, pretendiam assim destruir o início da reconstituição da indústria em Portugal. Felizmente, porém, a fábrica não ardeu, e só a parte ocidental do casarão, que àquele tempo se destinava a prisão penitenciária, ficou totalmente destruída, e com ela uns 20 teares ordinários, salvando-se a igreja, que dividia a meio o edifício, e a parte oriental dele. Transformado em fábrica de tabacos, o antigo convento padeceu há dois anos novo e terrível incêndio.

 

As horrorosas catástrofes da rua da Madalena

Foi porém, em Novembro de 1844, que na malfadada rua da Madalena se ateou uma das mais horríveis tragédias que nesta rápida notícia podemos registar.

/ 408 / Altas horas, quando no prédio, então designado pelo n.º 121, todos dormiam tranquilos e descansados, sob uma calamitosa noite de inverno, de vento que rebramia furioso, de chuva que desabava em cataratas do céu, ao ribombar dos trovões, o incêndio lavrava surdamente, e só quando as ondas de fumo e o cheiro acre das madeiras ardidas se elevaram e cresceram, os habitantes espavoridos despertaram; correm às portas e janelas, e tomadas as saídas pelo fogo, soltam um alarido aterrador clamando angustiadamente por socorro.

Vinte e cinco pessoas se achavam ali perdidas; o bramir da tempestade abafava-lhes as vozes; as ruas desertas, as casas cerradas; só ao cabo de muito tempo acordaram ao sobressalto os vizinhos; acodem ao rebate, que logo se produziu, espectadores impotentes para remediar a iminente catástrofe.

Rompia a alvorada sombria, quando as bombas e escadas, desnorteadas por toques errados dos sinos da Sé, depois de perder tempo em caminhadas sem tino, chegam por fim, e em grande confusão iniciam trabalhos desordenados. As chamas recrudescem, as escadas faltam; os moradores dos andares baixos descem à rua por cordas ou salvam-se pelos prédios vizinhos; o resto perece em tristíssima hecatombe.

Mil peripécias lancinantes, dramáticas, se desenrolam neste quadro. No 2.º andar, o dono da casa tenta descer por lençóis atados uns aos outros, mas esta cadeia de salvação não chega a meia altura, e o infeliz despenha-se e morre; neste momento o sobrado da sua casa abate engolindo no fogo o resto da família. Chegam as escadas; não atingem bem o 3.º andar. Perante o primeiro salvador que desponta ao cimo da escada, oferecem-se duas mulheres aterradas, a filha e a criada da casa, que numa luta extraordinária de generosidade debatem qual delas há de descer primeiro, forcejando cada uma pelo salvamento da outra.

Desce a criada; e a ama, a aflita e gentil menina vendo subir a alterosa escada o seu destinado noivo, que corria a buscá-la nos braços vigorosos, sente-se tomada de pejo, e na diligência de buscar roupas com que se cubra, perece precipitada nas chamas.

Os moradores do quarto andar fogem pelos telhados, deixando no incêndio todos os seus haveres. O fogo irrompendo pelas janelas da traseira do prédio, passava ao lado oposto, destruindo a casa contígua, que era o n.º 4 da rua da Padaria.

Assinala uma triste fatalidade a rua da Madalena; já em 28 de Janeiro de 1787, uma vingança de ciúme causara ali horrível incêndio criminoso, em que pereceram trinta vítimas, e do qual se conservou longos anos a memória sinistra no espírito de nossos avós.

Foram estes, como o recente incêndio na mesma rua, as mais horripilantes tragédias do fogo, na cidade de Lisboa!

 

Os incêndios na Boavista e no teatro das Laranjeiras

Em 1858 ateava-se o incêndio numas carvoarias à Boavista, onde em 1826 já outro incêndio enorme abrasara e destruíra a cordoaria e algumas estâncias de madeira. Nas estâncias de Gomes & C.ª e na tipografia do Arquivo pitoresco se declarou o fogo de 9 de Dezembro de 1858, reduzindo extensos edifícios a um montão de ruínas.

Quatro anos passados, a 9 de Setembro de / 409 / 1862, pelas 2 horas da tarde, motivado talvez por alguma brasa que operários soldadores deixaram cair no forro do telhado, rompia violento fogo no teatro das Laranjeiras, esse recinto onde o opulento e artista Conde de Farrobo reunira em repetidas festas, cuja memória se não extinguirá, tudo o que havia de mais selecto na sociedade portuguesa. Teatro e sala de baile foram pasto das chamas, que se elevavam em labaredas de vistosas cores, originadas pelas tintas do cenário que ardia.

 

Ainda persistem, por detrás do severo peristilo de cantada, as ruínas daquele recinto elegante.

 

O fogo do Banco

Citaremos mais alguns destes dramas, ocorridos em tempos modernos. Em 1863, pelas nove horas da noite de 19 de Novembro, um dos mais extensos fogos de que há memória, destruiu quase todo o vasto quarteirão, que ocupava a área desde o Pelourinho à rua do Ouro, e onde estavam o Banco de Portugal, a Casa da Câmara, a Companhia das Lezírias, e nos baixos alguns estabelecimentos, como a pastelaria Coquejo, um chapeleiro, e um forrageiro.

 
 

Tudo o fogo destruiu; perderam-se os magníficos quadros a óleo e ricos panos de Arrás das salas pombalinas da Câmara; apenas escapou a casa forte do Banco e um prédio à esquina da rua dos Capelistas, defendido por sólido guarda-fogo do resto do quarteirão em que estava encravado. Conta-se que no terceiro andar morava um comerciante / 410 / que conseguira fugir, mas ao chegar à rua lembrou-se de que deixara valores grandes no cofre; subiu quando abatiam os telhados e ficou soterrado nos escombros.

 

Outros incêndios na rua do Crucifixo, Chiado e Praça de Luís de Camões

Quase do mesmo tempo temos nota dos incêndios na Madre de Deus, antigos paços reais e mosteiro anexo, em 1867, e na rua do Crucifixo, nas cocheiras da antiga Companhia dos Ónibus, fogo que se comunicou até à rua Nova do Almada, e onde morreram muitos cavalos, soltando lancinantes relinchos de dor. Abertas as portas, os sobreviventes, partindo as cadeias que os prendiam, fugiram em medonha correria, espavoridos pela cidade.

Sem poder precisar a data, lembraremos ainda o fogo num prédio ao Corpo Santo, onde havia um hotel, em que um gato se salvou saltando do 3.º andar à rua, e o corpo de bombeiros praticou actos de temeridade e valor, dignos de reparo; e o dos hotéis que estavam no palácio Barcelinhos, ao fundo do Chiado, hotel Gibraltar, da Europa e dos Embaixadores, que ficaram destruídos, bem como a fotografia Camacho.

Este fogo, muito notável, porque nos hotéis estavam hospedados grande número de ilustres estrangeiros, membros dos dois congressos de jornalistas e de antropologia, que então se reuniam em Lisboa, os quais todos teceram os maiores elogios ao serviço de socorros de incêndios, rebentou em 30 de Setembro de 1880.

Tomou logo grandes proporções, e assinalou-se tristemente pela morte de um bombeiro que caiu à rua do alto das paredes, e pelo salvamento de uma menina de 18 anos, já sufocada e atordoada pelo fumo, salvamento feito pelo polícia n.º 103.

No Chiado houve depois outro grande fogo, no prédio em frente da igreja dos Mártires, onde estava a casa de espelhos e molduras Varela, e no qual os populares prestaram a princípio valiosos socorros, como talvez sucedesse no recente incêndio da Madalena, se não fosse a inépcia da oposição do guarda-nocturno e do polícia.

Na Praça de Luís de Camões arderam também / 411 / no decénio de 1880 a 1890, o grande prédio ao fundo, propriedade do falecido e opulento capitalista Monteiro, e outro, entre a rua do Norte e a rua das Gáveas, causado por uma tocha que ardia na câmara ardente de um defunto, cujo corpo se achou depois nos escombros carbonizado.

 

O fogo da travessa da Palha. Morte de cinco vítimas

Resta-nos ainda, nos apontamentos que se nos oferecem, falar nos incêndios da rua da Betesga e de S. João da Praça No primeiro a tragédia foi horripilante, e em tudo parecida com a da rua da Madalena, excepto no crime. O prédio, de quatro andares, era o da esquina da travessa da Palha, e tinha no 1.º andar o grande guarda-roupa Cohen, onde as chamas tomaram pavoroso incremento, invadindo a escada de fumo sufocante. Deu-se às onze horas da manhã de 29 de Dezembro de 1887. Os habitantes do 3.º andar, a família Brandão, pereceram nas chamas. Quando um bombeiro chegava ao cimo da escada Magyrus, deparou com duas senhoras trazendo uma delas nos braços um cãozinho, cujo salvamento pediam.

O incidente produziu momentos de hesitação; as chamas irromperam violentas; o bombeiro recuou, e as senhoras foram engolidas pelo temeroso inimigo.

Este fogo de 1887 deu origem a longos debates na imprensa acerca do serviço de incêndios, aposentando-se o antigo e dedicado inspector Carlos José Barreiros, que publicou sobre o caso uma Memória do incêndio da travessa da Palha.

/ 412 / Em S. João da Praça, em 3 de Maio de 1896, foi destruída a grande fábrica de moagens e a igreja paroquial, hoje reconstruída.

 

Como se acudia aos incêndios antes do terramoto

Ocorre naturalmente dizer duas palavras mais, acerca do modo e processos usados no decorrer dos séculos para atalhar e extinguir os incêndios.

Primitivamente os socorros eram apenas os que a população dedicadamente sabia ou podia prestar, abafando-se o fogo a baldes de água acarretada pelos ribeirinhos, que vendiam pela cidade em cavalgaduras, pelos negros escravos e pelos soldados, marinheiros e gente do arsenal.

A Câmara tinha depósitos de machados, picaretas e baldes, que se distribuíam pelos populares. Em 1670 o senado adquiriu, à imitação, de que lhe constava haver em Paris, escadas ferradas, compridas hastes de pau, e baldes de couro, e assalariou 30 oficiais de ofícios para, de obrigação, acudirem aos fogos. Era o início do exército de salvação. Estabeleceram-se-lhes ordenados fixos de 6:000 réis e 4:000 réis anuais, fazendo uma despesa total de 104:000 réis por ano, com aquele pequeno exército incumbido por dever de ofício, de se expor a todos os perigos e trabalhos, para evitar as confusões que resultavam, como até ali, de só acudir o povo que mais confundia que remediava. Pedia a Câmara então, que os artífices da Ribeira das Naus acudissem prontos, e que as justiças policiassem devidamente o lugar dos incêndios.

Em 1681 a câmara mandou vir da Holanda baldes, picaretas, enxadas, arpéus e esguichos, o que tudo custou 470$000 réis e foi distribuído pelos bairros, cabendo 50 baldes e 12 ferramentas a cada um.

Só em 1685 se adquiriram cinco bombas, cinco! Que trabalhavam em toda a cidade, como sucedeu no memorável incêndio do Hospital Real de 1750, no qual se queimaram duas delas, ficando as outras muito deterioradas!

Neste incêndio, como nos outros daquele tempo, acudiam pressurosos – contam-no minuciosas relações, os religiosos das diferentes ordens, que acarretavam água, em bilhas e quartas, a soldadesca, a marinhagem, e a mestrança da Ribeira das Naus.

Só em 1714 a Câmara estabeleceu o primeiro regimento do serviço de incêndios, a / 413 / cargo do vereador das obras (Elementos para a história do município de Lisboa).

A reedificação da cidade, após o terramoto de 1755, tendo em vista opor àquelas calamidades sísmicas a maior resistência possível nas construções, aceitou o nosso sistema de construir, usado ainda hoje em Lisboa, ligando todo o prédio com um esqueleto de madeira. Óptimo remédio para os abalos de terra, mas veículo perigoso por onde o incêndio alastra e invade de alto a baixo um edifício. Conta-se que se apercebeu logo disso a inteligência perspicaz do grande Marquês de Pombal, e atribui-se-lhe o dito, ao aprovar o sistema proposto – «livrem-se dos incêndios que dos tremores de terra os garanto eu agora.»

 

Organiza-se o serviço de incêndios no século XIX

Muito depois, sob o novo regime político, a Câmara de Lisboa, em 1834 desejosa de reorganizar eficazmente estes serviços, tão atrasados e imperfeitos, criou 3 distritos na cidade, determinando como se deveriam ordenar os socorros nas respectivas áreas, entrando no quadro não só as bombas municipais como também as do ministério das obras públicas.

Muitos edifícios e instituições particulares de certa importância mantinham bombas suas. Citaremos por exemplo a da Santa Casa da Misericórdia, que já a possuía ao certo em 1788, servida por 16 homens, e que acudia a qualquer incêndio.

Criadas as Capatazias, ou comando do pessoal das bombas, formado na sua quase totalidade pelos aguadeiros galegos arregimentados por companhias, havia como medida preventiva a ordem de se conservarem sempre 140 barris cheios de água, para se acudir de pronto a qualquer sinistro.

Foi por esta época de 1834 que se adquiriram novas escadas, e se fizeram de lona as primeiras mangueiras de salvação. Estabeleceu-se a tabela do toque dos sinos nas freguesias, abolida depois por Carlos José Barreiras.

Aposentado este, foi nomeado em 1889 o novo inspector, o saudoso engenheiro Augusto Ferreira, a quem se deve a total reorganização dos serviços, instalação e compra do óptimo material que presentemente serve, e a orientação disciplinada do corpo de bombeiros municipais, actualmente formado por 100 bombeiros de 1.ª e 2.ª classe, 150 de 3.ª e mais 720 condutores das bombas, exército dedicado de salvação, querido da população lisbonense, que os estima e aplaude com tanto carinho como aos seus marinheiros. Forma o batalhão em 33 estações de serviço, munidas de bombas, e de escadas Magyrus, com tracção animal permanente, e a ele se adiciona ainda o das beneméritas corporações de bombeiros voluntários, com duas secções de 50 bombeiros cada uma, e o corpo auxiliar de salvados.

 

As medalhas de salvação

Para complemento destes árduos e humanitários serviços, não bastavam as provas constantes de consideração e de reconhecimento manifestadas pela população da cidade, a uma falange de heróis, que tanta vez arrancam à morte horrorosa pelo fogo as pobres vítimas espavoridas.

Não bastava nem esse reconhecimento, nem os prémios pecuniários que os regulamentos estabeleceram. Por isso, desde 1852, se entendeu por Decreto de 3 de Novembro a necessidade de criar a medalha de salvação, que se destina a ser conferida a todo aquele que por magnânimo e heróico esforço presta serviços humanitários na salvação de vidas, em naufrágios ou em incêndios.

Descreveu-as largamente o distinto conhecedor de medalhística Sr. Dr. Artur Lamas, na sua valiosa e interessante memória sobre Medalhas de salvação (1905).

É, presentemente, esta a medalha na qual se lê o significativo dístico – Ao MÉRITO, FILANTROPIA, GENEROSIDADE uma das condecorações / 414 / mais respeitáveis, conferida sempre com escrúpulo, como mercê honorífica, pelos generosos actos de salvação de vidas.

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Vemos portanto que se felizmente a cidade de Lisboa não teve nunca a lamentar dentro da sua extensa área alguma dessas medonhas hecatombes que ficaram tristemente célebres, como as do Bazar de Caridade e da Comédie Française, de Paris, como a do teatro Baquet do Porto, ou como a do Clube de Santarém, ainda assim a enumeração dos seus incêndios mais notáveis, nesta lista muito incompleta e apenas organizada com apontamentos e notícias colhidas de relance, constitui um longo sudário de desgraças sobre o, qual só nos cumpre lançar o véu de uma recordação compadecida e saudosa como epílogo desta crónica das angústias que repetidas vezes têm sobressaltado os espíritos da grande cidade, e enlutado a boa alma do povo de Lisboa.

25 de Abril de 1907

VICTOR RIBEIRO


 

 

22-07-2020