ODOS os dias, ao entardecer, conduzia para casa um pastor o seu rebanho, tocando alegremente na sua flauta.

Ao atravessar uma colina sentia-se ferido sempre por sete picadas, o que, a princípio, julgava ser uma ilusão, reconhecendo mais tarde que era uma realidade.

E isso fazia-o cismar e tanto cismou que um dia pediu a seu irmão para atravessar o mesmo caminho a ver se sentia as mesmas picadas.

Passou e não sentiu, e isso espantou-o deveras.

E o pastor continuava a matutar, e não sabia se tais picadas eram um bom ou mau agouro.

Tinha ele um temperamento alegre, mas parecia que o sentimento não era dos mais delicados, pois tratava mal as suas ovelhinhas. Batia-as sem dó nem piedade e fazia chorar o coração ouvir-lhes os balidos de fome, sem as conduzir às boas pastagens.

O irmão fazia justamente o contrário. Tratava o seu rebanho com todo o carinho, e a sua alegria era viva quando tinha boas forragens para lhe dar.

Era um regalo ver os belos bois que apresentava nas feiras e que toda a gente admirava.

O pastor torturava-se com as picadas que sempre sentia no caminho e, quase com cólera, dizia ele às vezes consigo próprio:

– Ora deixa estar que mais tarde ou mais cedo hei-de desvendar este mistério. Vou mudar de caminho.

E então saltava montes e vales, para que nem a sua sombra tocasse ao de leve na misteriosa colina.

Mas tanto fazia isso como coisa nenhuma. Logo que ele chegasse a um caminho que ficasse em frente ou ao lado da tal colina, sentia sempre as mesmas picadas.

Numa tarde em que ele se entretinha a dar com tojos nas suas ovelhinhas, viu aproximar-se um homem muito alto.

/ 249 / – Que prazer sentes tu, ó pastor, em tratar assim as tuas ovelhas? – perguntou-lhe.

– Que tem você com isso, seu lobisomem? Ora vá em paz e deixe-me cá com a minha vida – respondeu o pastor encolerizado.

E o lobisomem, como ele o chamava, galgou o monte com dois gigantescos passos, proferindo bem alto, de maneira a serem ouvidas pelo pastor, estas palavras: Fugir ao dever que o pagar é certo.

Mas o pastor nada ouviu e dizia consigo mesmo: – Irra! Que intrometido aquele patusco é! Meter o bico onde não é chamado!

À hora habitual, reuniu as sete ovelhas do seu pobre rebanho e lá partiu a caminho de casa.

A certa altura sentiu as mesmas picadas.

– Safa, que desta vez chegaram-me ao coração!

Desde esse dia, o pastor foi mais jovial do que nunca, talvez por se sentir acompanhado por um mistério que considerava como bom anúncio.

Pouco depois tornou-se pensativo e reflectido, olhando o seu rebanho com compaixão: principiando os remorsos a atormentá-lo ao ver que as suas ovelhinhas não caminhavam, pelos maus tratos que recebiam.

Um dia viu-se obrigado a atravessar a misteriosa colina, para encurtar caminho, pois o seu rebanho já não podia atravessar os montes que até ali passava.

O pastor sentia-se mais humano e reuniu forças e sangue frio para seguir caminho.

Mas o desalento apoderou-se dele e começou a chorar. Todavia, marchou com o rebanho.

Quando chegou ao meio da colina sentiu as mesmas picadas, e a cada picada que sentia, viu cair mortas, a seus pés, as suas ovelhas, uma a uma.

No meio dum desespero sem limites, ouviu a voz do homem que lhe aparecera no monte, a dizer-lhe: Fugir ao dever que o pagar é certo.

Estas palavras aterraram-no e ele fugiu para casa, deixando, na colina, as suas ovelhinhas mortas.

Passaram-se dias e dias e ele a tudo ficou indiferente.

Não se importava do que via, nem fazia caso do que ouvia.

Mais tarde voltou à razão e comprou outro rebanho.

Eram umas ovelhinhas muito lindas e cuidava delas com o mesmo desvelo com que o irmão tratava do seu gado. / 250 /

Andava sempre à cata das melhores pastagens, mas, coisa singular, as ovelhinhas, em vez de se tornarem gordas, eram cada vez mais magrinhas, que até pareciam esqueletos.

Com isto se entristecia o pastor muito, vendo que ainda era o castigo a dilacerá-lo, e passava horas e horas a chorar amargamente. E numa íntima melancolia, a boca traduzia-lhe estas palavras, que o coração lhe ditava:

– Ninguém se arrependa de fazer bem. Se eu o tivesse praticado, não era o destino tão cruel para comigo, enchendo-me de fel todas as horas e instantes. Como eu desejava agora ver as minhas ovelhinhas, gordas e lindas, fazendo a cobiça de todos os pastores!

*

*   *

Uma noite, quando acabaram de comer a tigela de caldo, perguntou ele ao irmão:

– Porque é que o teu gado anda gordo e bonito e o meu não é capaz de engordar por mais esforços que eu faça?

– É o pasto que tu vês e nada mais – replicou o irmão, sem que a sombra dum remorso lhe toldasse o rosto alegre.

No dia seguinte resolveu seguir o irmão, sem ele o saber, e viu que tomava a direcção da colina onde lhe morrera o rebanho.

Para que não fosse visto, aconchegou-se a uma árvore.

 / 251 / Viu que o irmão colocou a vara a um lado e da jaqueta fez travesseiro, deitando-se a dormir sossegadamente, deixando o gado a pastar em liberdade.

Mas qual não foi o seu assombro ao ver que, quando o gado chegou à altura em que ele sentia as picadas, toda a colina ficou num brilho deslumbrante e no sítio onde as suas ovelhas caíram mortas apareceram sete línguas de ouro e de cada uma delas brotava água cristalina que os boisinhos beberam sofregamente. E à medida que iam bebendo tornavam-se gordos e luzidios, brilhando como a própria colina.

Apenas o gado acabou de beber, o brilho da colina começou a extinguir-se gradualmente e as sete línguas de ouro desapareceram, como por encanto.

O pastor quase delirava no meio daquele quadro de tamanho esplendor e tão cheio de mistério.

Depois o gado, como se porventura um instinto de bondade o animasse, bafejou o pastor adormecido. Quando acordou viu que a noite vinha tombando e que um sino lá ao longe já anunciava as Ave-marias. Levantou-se e partiu para casa.

No dia seguinte disse o pastor para o irmão:

– Amanhã quero que o meu rebanho vá junto com o teu.

– Pois sim – replicou o irmão sem hesitar.

O pastor conheceu logo que ele desconhecia a mão misteriosa que o guiava.

Ao outro dia, partiram juntos.

Quando o pastor viu que o seu irmão se dirigia para a colina, sentiu um estremecimento de terror.

– Não vou para aí, porque me custa estar no sítio onde morreram as minhas ovelhas – observou ele.

– Então foi na colina?!

– Foi, sim.

– Pois não me lembro que o meu gado por aqui pastasse.

O pastor ficou admirado com o que acabava de ouvir ao irmão.

– Mas tu ontem estiveste na colina.

– Estás enganado. Onde eu estive foi naquele campo que vês ao longe, a distância de mais de um quilómetro.

Cada vez o pastor se sentia mais espantado e reconheceu que o irmão, apenas saíra de casa, fora em sonho.

– Pois bem – replicou o pastor – Não consinto que subas ao meio da colina.

Palavras não eram ditas, já o gado que pertencia ao irmão corria, em debandada, pela colina fora, enquanto as ovelhas do pastor se sentiam atraídas por uma força desconhecida. Tentavam penetrar no interior da colina, mas estacaram logo, como se uma grande barreira as detivesse.

E desta vez, sem que o pastor e o irmão sonhassem, enxergaram bem, com os olhos esbugalhados, a colina a brilhar em ouro. Lá estavam as mesmas sete línguas de ouro, a brotar água cristalina e o gado a regalar-se com ela.

O pastor estava agora roído pelo remorso e fascinado com tanta riqueza.

O irmão, com passo firme, como quem nada teme, porque tinha a consciência serena, penetrou na colina e a poucos passos, defrontou ele com uma grande pedra, que lhe causou estranha surpresa. / 252 /

Achou o caso tão extraordinário que pegou no cajado e tocou-lhe. De repente a pedra transformou-se no mau homem que o pastor tinha visto.

E esse homem tomou o guardador do gado peja mão, conduzindo-o junto das sete línguas de ouro.

– Sabes o que eu te quero mostrar? – perguntou-lhe.

– Não – respondeu o pastor imediatamente.

– Pois olha – replicou o homem. Aqui encontras o quadro do teu destino – destino bom, ou destino mau. Tens sido bom, tens sido trabalhador, e por isso o teu futuro será de riquezas, de opulências, se continuares como até hoje. Não sucederá o mesmo ao teu irmão. Para ele serei continuamente a sua negra sombra. Nunca sentirá prazer de ver a sua vida engrandecida.

– De quem são estas ricas línguas de ouro? – perguntou o guardador.

– São das sete ovelhas que teu irmão matou à fome e à pancada.

O misterioso homem, ao pronunciar tais palavras, passou o dedo em todas as línguas, que se transformaram logo em sete lindas ovelhas.

– Aí tens essas ovelhas, são para ti – disse-lhe o homem.

– Não, não as quero. Não me pertencem. São de meu irmão. Ainda há pouco me disseste que fosse bom, mas eu tornar-me-ia mau se com as ovelhas ficasse. Não, não as quero. O que posso é entrega-las já ao dono, que é meu irmão.

O homem viu nestas palavras, pronunciadas com uma bela energia, a formosura do coração do guardador.

– Pois bem! Entrega-lhas que eu, em compensação, dar-te-ei todas estas que vês por aí além.

Olhou em torno de si por toda a colina e viu-a coberta de belos rebanhos, que pareciam um dourado formigueiro.

– Agora parte, na roda do destino e fica em paz – disse o homem.

– Senhor! – disse o guardador banhado em lágrimas – perdoai ao meu irmão e protegei-o como a mim próprio.

E o homem, voltando-se:

– Pois tanta riqueza não terá ele, como tu, mas terá metade da tua bondade e isso acariciará a sua sorte.

O guardador voou ao encontro do pastor e contou-lhe tudo o que havia sucedido.

E ambos foram ditosos, ambos bons, ambos dignos e ambos virtuosos.

Porto, 5 de Agosto de 1906

MARIA PINTO FIGUEIRINHAS
 

 

02-07-2020